Acontecimento da maior importância para o avanço de nossas instituições republicanas e democráticas, o julgamento do mensalão pelo STF se encaminha para a finalização dos procedimentos.
Acostumado a governar sem entraves, o PT não contava com este inesperado revés. Atônito, esboçou um ataque direto ao STF e recuou, concentrando esforços nas eleições. A vitória - especialmente em São Paulo - supostamente atenuaria os estragos causados pela condenação.
Parece difícil que a eventual vitória nas urnas tenha esse efeito. Ganhando ou perdendo as almejadas prefeituras, o partido necessitará de uma estratégia para lidar com o devastador efeito do julgamento, sendo que não são muitas as alternativas à sua disposição.
Uma delas seria o acatamento às decisões do STF, a aceitação das condenações e as devidas penas, motivo para uma ampla reflexão sobre a forma como tem conduzido o poder. Ao que tudo indica, tal encaminhamento é pouco provável. Persistirá a negação pura e simples do mensalão? Continuará a tentativa de substituir os fatos sobejamente apurados por artefatos fictícios, o imaginado complô engendrado pela "direita", pela "elite", pela "imprensa comprada"? Será possível manter essa postura? Por quanto tempo e a que custo?
Há pouco, Fernando Gabeira comparou neste jornal a tática usada por Lula e outros próceres do PT, que insistiam em afirmar que o mensalão nunca existiu, à de Maluf, que, contra todas as evidências, continua negando ter dinheiro em contas no exterior. Em ambos os casos, há um deliberado ataque à verdade e sua substituição por uma mentira mais adequada a seus propósitos.
Tal prática é de rigor nos regimes totalitários, mas não apenas neles. A mentira parece ser intrínseca à prática política e fica muito explícita por ocasião das eleições, quando os candidatos fazem promessas mirabolantes, das quais têm plena consciência que jamais teriam condições de cumprir. Atualmente a situação fica ainda mais complicada quando lembramos que as campanhas seguem modelos advindos da publicidade comercial e os políticos são vendidos como produtos para o consumo.
Essa importante questão é examinada em toda sua complexidade por Derrida em História da Mentira - Prolegômenos (texto disponível na internet). Antes de abordar sua incidência no campo da política, Derrida deixa de lado o enfoque moralista e se estende sobre a mentira como uma contingência humana, indissociável das práticas sociais, discriminando-a do erro e da ignorância, caracterizando-a como o deliberado empenho de enganar o outro e levantando a questão de cunho psicanalítico sobre a possibilidade de mentir a si mesmo, o autoengano.
Não é possível resumir a amplitude de seu raciocínio, me atenho a apontar alguns itens do roteiro por ele empreendido na abordagem do tema. Partindo de um texto de Nietzsche que especula se existe um mundo "verdadeiro" em oposição a um mundo "de mentira", Derrida comenta as ideias de Platão, Santo Agostinho, Kant, Benjamin Constant, Koyré e Hanna Arendt sobre a mentira, ilustrando os argumentos com vários exemplos da história política recente.
De Hanna Arendt examina com detalhe o Truth and Politics (capítulo de Entre o Passado e o Futuro - Editora Perspectiva - e também disponível em inglês na rede), um artigo que ela escreveu para a The New Yorker em 1967, cujo disparador foi a controvérsia gerada por sua reportagem publicada como Eichmann em Jerusalém (Companhia das Letras).
Ali mostra a insuperável tensão entre o poder e a verdade, da qual decorre a importância da mentira no discurso político: "As mentiras sempre foram consideradas instrumentos necessários e legítimos, não somente do ofício do político ou do demagogo, mas também do estadista. Por que será assim? O que isso significa quanto à natureza e dignidade do campo político por um lado, quanto à natureza e dignidade da verdade e da boa fé por outro lado?"
Arendt acredita que na modernidade teria havido uma mutação na história da mentira, pois ela se tornou "completa e definitiva" no campo político, tendo chegado a um extremo que transforma a própria história em mentira absoluta: "A possibilidade da mentira completa e definitiva, que era desconhecida em épocas anteriores, é o perigo que nasce da manipulação moderna dos fatos. (...)
A tradicional mentira política, tão proeminente na história da diplomacia e dos negócios de Estado, costumava dizer respeito ou a verdadeiros segredos - dados que nunca haviam sido expostos ao público - ou intenções (...) Ao contrário, as mentiras políticas modernas lidam eficientemente com coisas que definitivamente não são segredos e sim conhecidas praticamente por todos. Isso é óbvio no caso em que se reescreve a história contemporânea na frente daqueles que a testemunharam".
A relação da mentira com a política apontada por Arendt não deve ser entendia como uma depreciação definitiva da prática política. Para ela, como sublinha Derrida, "entre mentir e agir, agir em política, manifestar a própria liberdade pela ação, transformar os fatos, antecipar o futuro há como que uma afinidade essencial. (...) A imaginação é a raiz comum à 'capacidade de mentir' e à 'capacidade de agir'. (...) A mentira é o futuro, podemos nos arriscar a dizer para além da letra, sem trair a intenção de Arendt nesse contexto. Ao contrário, dizer a verdade é dizer aquilo que é ou terá sido, seria antes dizer o passado.(...) Há uma afinidade inegável da mentira com a ação, com a mudança do mundo, ou seja, com a política".
Essa visão da onipresença multifacetada da mentira nas relações humanas, e especialmente na política, não retira dela a conotação perversa, e menos ainda anula a necessidade radical de contrapô-la à verdade, mostra que essa não é uma tarefa de pouca monta.
Fora de seu rico contexto e denso embasamento, as ideias de Arendt e Derrida talvez pareçam esquemáticas e simplistas, o que seria um equívoco. Elas mostram formas pelas quais o poder é exercido, o que nos ajuda a vê-lo de forma mais adulta e realista. Quem sabe as citações sirvam como um estímulo à leitura desses dois textos fundamentais.
28 de outubro de 2012
Sérgio Telles, O Estado de S.Paulo
Acostumado a governar sem entraves, o PT não contava com este inesperado revés. Atônito, esboçou um ataque direto ao STF e recuou, concentrando esforços nas eleições. A vitória - especialmente em São Paulo - supostamente atenuaria os estragos causados pela condenação.
Parece difícil que a eventual vitória nas urnas tenha esse efeito. Ganhando ou perdendo as almejadas prefeituras, o partido necessitará de uma estratégia para lidar com o devastador efeito do julgamento, sendo que não são muitas as alternativas à sua disposição.
Uma delas seria o acatamento às decisões do STF, a aceitação das condenações e as devidas penas, motivo para uma ampla reflexão sobre a forma como tem conduzido o poder. Ao que tudo indica, tal encaminhamento é pouco provável. Persistirá a negação pura e simples do mensalão? Continuará a tentativa de substituir os fatos sobejamente apurados por artefatos fictícios, o imaginado complô engendrado pela "direita", pela "elite", pela "imprensa comprada"? Será possível manter essa postura? Por quanto tempo e a que custo?
Há pouco, Fernando Gabeira comparou neste jornal a tática usada por Lula e outros próceres do PT, que insistiam em afirmar que o mensalão nunca existiu, à de Maluf, que, contra todas as evidências, continua negando ter dinheiro em contas no exterior. Em ambos os casos, há um deliberado ataque à verdade e sua substituição por uma mentira mais adequada a seus propósitos.
Tal prática é de rigor nos regimes totalitários, mas não apenas neles. A mentira parece ser intrínseca à prática política e fica muito explícita por ocasião das eleições, quando os candidatos fazem promessas mirabolantes, das quais têm plena consciência que jamais teriam condições de cumprir. Atualmente a situação fica ainda mais complicada quando lembramos que as campanhas seguem modelos advindos da publicidade comercial e os políticos são vendidos como produtos para o consumo.
Essa importante questão é examinada em toda sua complexidade por Derrida em História da Mentira - Prolegômenos (texto disponível na internet). Antes de abordar sua incidência no campo da política, Derrida deixa de lado o enfoque moralista e se estende sobre a mentira como uma contingência humana, indissociável das práticas sociais, discriminando-a do erro e da ignorância, caracterizando-a como o deliberado empenho de enganar o outro e levantando a questão de cunho psicanalítico sobre a possibilidade de mentir a si mesmo, o autoengano.
Não é possível resumir a amplitude de seu raciocínio, me atenho a apontar alguns itens do roteiro por ele empreendido na abordagem do tema. Partindo de um texto de Nietzsche que especula se existe um mundo "verdadeiro" em oposição a um mundo "de mentira", Derrida comenta as ideias de Platão, Santo Agostinho, Kant, Benjamin Constant, Koyré e Hanna Arendt sobre a mentira, ilustrando os argumentos com vários exemplos da história política recente.
De Hanna Arendt examina com detalhe o Truth and Politics (capítulo de Entre o Passado e o Futuro - Editora Perspectiva - e também disponível em inglês na rede), um artigo que ela escreveu para a The New Yorker em 1967, cujo disparador foi a controvérsia gerada por sua reportagem publicada como Eichmann em Jerusalém (Companhia das Letras).
Ali mostra a insuperável tensão entre o poder e a verdade, da qual decorre a importância da mentira no discurso político: "As mentiras sempre foram consideradas instrumentos necessários e legítimos, não somente do ofício do político ou do demagogo, mas também do estadista. Por que será assim? O que isso significa quanto à natureza e dignidade do campo político por um lado, quanto à natureza e dignidade da verdade e da boa fé por outro lado?"
Arendt acredita que na modernidade teria havido uma mutação na história da mentira, pois ela se tornou "completa e definitiva" no campo político, tendo chegado a um extremo que transforma a própria história em mentira absoluta: "A possibilidade da mentira completa e definitiva, que era desconhecida em épocas anteriores, é o perigo que nasce da manipulação moderna dos fatos. (...)
A tradicional mentira política, tão proeminente na história da diplomacia e dos negócios de Estado, costumava dizer respeito ou a verdadeiros segredos - dados que nunca haviam sido expostos ao público - ou intenções (...) Ao contrário, as mentiras políticas modernas lidam eficientemente com coisas que definitivamente não são segredos e sim conhecidas praticamente por todos. Isso é óbvio no caso em que se reescreve a história contemporânea na frente daqueles que a testemunharam".
A relação da mentira com a política apontada por Arendt não deve ser entendia como uma depreciação definitiva da prática política. Para ela, como sublinha Derrida, "entre mentir e agir, agir em política, manifestar a própria liberdade pela ação, transformar os fatos, antecipar o futuro há como que uma afinidade essencial. (...) A imaginação é a raiz comum à 'capacidade de mentir' e à 'capacidade de agir'. (...) A mentira é o futuro, podemos nos arriscar a dizer para além da letra, sem trair a intenção de Arendt nesse contexto. Ao contrário, dizer a verdade é dizer aquilo que é ou terá sido, seria antes dizer o passado.(...) Há uma afinidade inegável da mentira com a ação, com a mudança do mundo, ou seja, com a política".
Essa visão da onipresença multifacetada da mentira nas relações humanas, e especialmente na política, não retira dela a conotação perversa, e menos ainda anula a necessidade radical de contrapô-la à verdade, mostra que essa não é uma tarefa de pouca monta.
Fora de seu rico contexto e denso embasamento, as ideias de Arendt e Derrida talvez pareçam esquemáticas e simplistas, o que seria um equívoco. Elas mostram formas pelas quais o poder é exercido, o que nos ajuda a vê-lo de forma mais adulta e realista. Quem sabe as citações sirvam como um estímulo à leitura desses dois textos fundamentais.
28 de outubro de 2012
Sérgio Telles, O Estado de S.Paulo
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