O direito de protestar contra uma sentença – o jus sperneandi, na apropriada expressão popular – está arraigado na tradição jurídica do Ocidente. O inconformismo do réu com a condenação recebida e não mais passível de ser revertida é aceito pela razão fundamental de que ninguém pode ser obrigado a se congratular com o próprio infortúnio nem tampouco a se calar em face do castigo que teria feito por merecer. Há formas e formas de espernear, metaforicamente falando.
Nas sociedades livres, alguns espasmos começam antes mesmo do julgamento, com a desqualificação dos acusadores, e prosseguem com crescente virulência até explodir em ofensas aos juízes. Nesses casos, um limite é facilmente ultrapassado: o condenado vai das calculadas juras de inocência e do libelo teatral contra os que delas não se convenceram à incitação contra o tribunal em si – como se este tivesse subvertido as normas do Estado Democrático de Direito, em conluio com os seus inimigos.
Foi o que fez, evidentemente, o ex-ministro José Dirceu, condenado no Supremo Tribunal Federal (STF) por corrupção ativa no caso do mensalão, pelo eloquente placar de 8 votos a 2. Deu assim a senha para a nação petista, como se jactam os companheiros, reverberar a sua aparentemente justa ira, proclamando a deslegitimação da Alta Corte por estar a serviço dos setores conservadores do País, entre os quais, por sua vez, avultariam os meios de comunicação.
Mas, pragmático à medula como sempre foi, Dirceu houve por bem desaconselhar a militância a brandir tochas e punhos cerrados defronte ao Supremo já agora. A prioridade, ensinou à direção do partido, anteontem, é ganhar as eleições municipais, principalmente em São Paulo. "O mensalão será uma batalha para muitos anos", antecipou, pregando, segundo relatos, a criação de controles para a mídia e o Judiciário. É de lembrar que, pouco antes do início do julgamento, ele atiçou a UNE contra o STF. Deu em nada.
Na véspera, enquanto se alicerçava no tribunal a convicção da maioria absoluta de seus membros de que o homem mais poderoso do governo Lula, entre 2003 e 2005, foi também o mentor da compra de apoio parlamentar ao Planalto e o supervisor do esquema, ele distribuiu uma nota não menos escandalosa, embora por outra razão, do que a sua indelével obra política daqueles anos.
Depois de reviver as provações por que passou sob a ditadura militar, em especial o banimento do País e a cassação de sua nacionalidade – de fato, uma "ignomínia" do regime, mas da qual não foi a única vítima -, acusou a Suprema Corte, "sob forte pressão da imprensa", de produzir "um juízo político e de exceção". Ou seja, equiparou o STF – onde, não custa repetir, têm assento oito ministros indicados ou por Lula ou por sua sucessora Dilma Rousseff, onde o contraditório faz parte da ordem natural das coisas e cujas sessões a população pode acompanhar ao vivo – às instâncias do período autoritário.
A composição do tribunal não foi esquecida nos despachos dos correspondentes estrangeiros no País e nas análises dos respectivos órgãos de mídia, para ressaltar a ausência de parti pris no julgamento dos petistas Dirceu, José Genoino e Delúbio Soares – este último condenado por corrupção ativa pela unanimidade dos ministros, incluindo portanto Ricardo Lewandowski e Dias Toffoli, os únicos a absolver o réu principal. Acrescente-se que o chefe do Ministério Público, Roberto Gurgel, autor da acusação, foi nomeado pelo ex-presidente e reconduzido ao cargo pela atual.
O que a imprensa do exterior destacou, a par do registro da teoria conspiratória petista, foi o resultado literalmente extraordinário do processo. O New York Times, por exemplo, chamou a atenção para a "rara ruptura" nos padrões de impunidade "a que os brasileiros estão acostumados". Para o Wall Street Journal, na mesma linha, as sentenças serviram "para que a população volte a confiar no Poder Judiciário".
O esperneio de Dirceu, em suma, oscila entre o patético e o injurioso. Era o que faltava para ele borrar com a própria mão os vestígios de respeito que o jovem radical de outros tempos possa ter conseguido mesmo entre os seus adversários.
12 de outubro de 2012
Estadão
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