Dias antes das eleições, Hugo Chávez dirigiu-se a uma multidão com as seguintes palavras:
“Algumas pessoas podem estar insatisfeitas por falhas de nosso governo, porque não consertaram a sua rua, não chegou a luz, falta água, não têm emprego, não receberam a casa.
Mas o que está em jogo no 7 de outubro é maior que a eficiência na gestão do governo, camarada. Estamos jogando a vida da pátria”.
Chávez identificou a pátria com ele mesmo e interpretou a eleição como uma guerra patriótica. É por isso que esta pode ter sido a derradeira eleição livre na Venezuela.
Na noite do 7 de outubro, o opositor Henrique Capriles reconheceu o triunfo chavista enfatizando que o derrotado não foi o povo: “Aqui, quem não obteve a vitória fui eu. Para saber ganhar é preciso saber perder. Acato e respeito a decisão do povo”.
Política é, antes de tudo, linguagem. Capriles, ao contrário de Chávez, usou a linguagem do pluralismo. Eleições não são guerras. São disputas entre partidos que representam correntes de opinião diferentes, mas igualmente legítimas.
Nelas a pátria não está em jogo. A linguagem do candidato evidencia que, enfim, se construiu uma oposição democrática ao chavismo. Talvez seja muito tarde.
“Ninguém chegou tão facilmente ao poder como Chávez – e, por isso, sua revolução não tem epopeia”, disse um analista do chavismo.
O caudilho assumiu o poder, 14 anos atrás, numa eleição emoldurada pelo colapso interno da democracia oligárquica venezuelana. A epopeia acontecera uma década antes, e sem a participação de Chávez, na forma do Caracazo, o levante do povo de Caracas contra o governo de Carlos Andrés Pérez.
A “revolução bolivariana” é uma sucessão de iniciativas oriundas de cima, sob estrito controle do presidente que se imagina o pseudônimo da pátria. A linguagem chavista tem um discernível tom farsesco, pois precisa fabricar uma epopeia por meio, exclusivamente, de metáforas.
Chávez não triunfou porque o povo acredita que ele seja Simón Bolívar. A vitória eleitoral de domingo deve-se à memória da injustiça, aos preços do petróleo e à força do Estado.
Os pobres não esqueceram a longa era de governos oligárquicos que operavam como agentes da apropriação da riqueza nacional por uma elite orgulhosa e avarenta.
Tracionado pelas cotações do barril de petróleo, o PIB do país cresce à taxa anual de 5%, proporcionando recursos para as políticas distributivistas da “revolução bolivariana”.
As eleições foram livres, mas não justas: o regime chavista manda no Judiciário, controla a Comissão Eleitoral e utiliza os principais meios de comunicação como ferramenta partidária. Capriles escalava uma montanha alta demais.
A Venezuela já não é uma democracia, mas ainda não é uma ditadura. Chávez usa os instrumentos da democracia para manufaturar uma tirania. Contudo, até hoje, extraiu do voto majoritário a legitimidade de seu regime.
O chavismo construiu seu poder por meio de eleições e plebiscitos. Nas democracias eleições servem para o exercício da alternância. Na “revolução bolivariana” funcionam como alavancas de mobilização popular em torno da figura do caudilho que simbolizaria a pátria. Há indícios, porém, do esgotamento da era eleitoral.
No discurso de domingo Capriles dirigiu-se aos “setores radicais” da oposição, “que queiram se tornar criativos”, recordando-lhes os “grandes danos ao país” causados pelos radicalismos.
A referência era à greve da PDVSA e ao frustrado golpe de Estado de 2002, ao locaute patronal de 2002-2003, ao boicote oposicionista das eleições parlamentares de 2005.
A oposição organizada ao redor de sua candidatura completa a ruptura com a elite política degenerada pré-chavista.
No cenário de declínio da “revolução bolivariana”, que se revela incapaz de oferecer “luz”, “água”, “emprego” e “casa”, as urnas transformam-se em terreno demasiado perigoso para o chavismo.
“Espero que um projeto que já tem 14 anos entenda que mais da metade do país não está de acordo”, disse Capriles na hora da derrota, apontando para a soma dos eleitores da oposição com o contingente dos ni-ni, que preferiram a abstenção.
A expectativa do candidato choca-se com a interpretação oficial que traduz a concorrência eleitoral como uma guerra patriótica. Desde o pleito parlamentar de 2010, quando os votos oposicionistas superaram os do partido de Chávez, intensificou-se a criação de estruturas paralelas de “poder popular”.
Os conselhos comunais, em número já superior a 20 mil, são controlados por militantes do PSUV, o partido chavista, e financiados por bilhões de dólares transferidos do orçamento nacional. O “socialismo do século 21″ parece-se cada vez mais com o “socialismo real” do século passado.
A alma do chavismo repousa na figura indispensável do caudilho, o que explica a obsessão do regime pelo direito à reeleição ilimitada. De modo geral, os eleitores que lhe deram um novo mandato pouco se importam com as proclamações ideológicas do PSUV e sabem reconhecer a corrupção que grassa, sem freios, na “burguesia bolivariana” (a boliburguesia).
Entretanto, nos barrios das cidades venezuelanas, Chávez é objeto de veneração, pois, na História recente do país, ninguém antes se preocupara com os despossuídos. A novidade explosiva é o câncer em recidiva, cujas características permanecem recobertas pelo manto do mistério de Estado.
A doença de Chávez inocula sensações de insegurança e urgência nos altos círculos bolivarianos. Na hipótese de desaparecimento do condottiere, o chavismo provavelmente se fragmentaria em cliques políticas irreconciliáveis – e, de qualquer forma, é quase impossível imaginar um presumível sucessor capaz de passar pelo teste das urnas.
Do ponto de vista da “revolução bolivariana”, uma saída tentadora para o impasse é a “cubanização” da Venezuela. Desse modo nunca mais se jogaria “a vida da pátria” na roleta das eleições livres.
12 de outubro de 2012
Demétrio Magnoli
Fonte: O Globo
“Algumas pessoas podem estar insatisfeitas por falhas de nosso governo, porque não consertaram a sua rua, não chegou a luz, falta água, não têm emprego, não receberam a casa.
Mas o que está em jogo no 7 de outubro é maior que a eficiência na gestão do governo, camarada. Estamos jogando a vida da pátria”.
Chávez identificou a pátria com ele mesmo e interpretou a eleição como uma guerra patriótica. É por isso que esta pode ter sido a derradeira eleição livre na Venezuela.
Na noite do 7 de outubro, o opositor Henrique Capriles reconheceu o triunfo chavista enfatizando que o derrotado não foi o povo: “Aqui, quem não obteve a vitória fui eu. Para saber ganhar é preciso saber perder. Acato e respeito a decisão do povo”.
Política é, antes de tudo, linguagem. Capriles, ao contrário de Chávez, usou a linguagem do pluralismo. Eleições não são guerras. São disputas entre partidos que representam correntes de opinião diferentes, mas igualmente legítimas.
Nelas a pátria não está em jogo. A linguagem do candidato evidencia que, enfim, se construiu uma oposição democrática ao chavismo. Talvez seja muito tarde.
“Ninguém chegou tão facilmente ao poder como Chávez – e, por isso, sua revolução não tem epopeia”, disse um analista do chavismo.
O caudilho assumiu o poder, 14 anos atrás, numa eleição emoldurada pelo colapso interno da democracia oligárquica venezuelana. A epopeia acontecera uma década antes, e sem a participação de Chávez, na forma do Caracazo, o levante do povo de Caracas contra o governo de Carlos Andrés Pérez.
A “revolução bolivariana” é uma sucessão de iniciativas oriundas de cima, sob estrito controle do presidente que se imagina o pseudônimo da pátria. A linguagem chavista tem um discernível tom farsesco, pois precisa fabricar uma epopeia por meio, exclusivamente, de metáforas.
Chávez não triunfou porque o povo acredita que ele seja Simón Bolívar. A vitória eleitoral de domingo deve-se à memória da injustiça, aos preços do petróleo e à força do Estado.
Os pobres não esqueceram a longa era de governos oligárquicos que operavam como agentes da apropriação da riqueza nacional por uma elite orgulhosa e avarenta.
Tracionado pelas cotações do barril de petróleo, o PIB do país cresce à taxa anual de 5%, proporcionando recursos para as políticas distributivistas da “revolução bolivariana”.
As eleições foram livres, mas não justas: o regime chavista manda no Judiciário, controla a Comissão Eleitoral e utiliza os principais meios de comunicação como ferramenta partidária. Capriles escalava uma montanha alta demais.
Saída tentadora para o impasse é a ‘cubanização’ da Venezuela: nunca mais se jogaria ‘a vida da pátria’ na roleta das eleições livres
O chavismo construiu seu poder por meio de eleições e plebiscitos. Nas democracias eleições servem para o exercício da alternância. Na “revolução bolivariana” funcionam como alavancas de mobilização popular em torno da figura do caudilho que simbolizaria a pátria. Há indícios, porém, do esgotamento da era eleitoral.
No discurso de domingo Capriles dirigiu-se aos “setores radicais” da oposição, “que queiram se tornar criativos”, recordando-lhes os “grandes danos ao país” causados pelos radicalismos.
A referência era à greve da PDVSA e ao frustrado golpe de Estado de 2002, ao locaute patronal de 2002-2003, ao boicote oposicionista das eleições parlamentares de 2005.
A oposição organizada ao redor de sua candidatura completa a ruptura com a elite política degenerada pré-chavista.
No cenário de declínio da “revolução bolivariana”, que se revela incapaz de oferecer “luz”, “água”, “emprego” e “casa”, as urnas transformam-se em terreno demasiado perigoso para o chavismo.
“Espero que um projeto que já tem 14 anos entenda que mais da metade do país não está de acordo”, disse Capriles na hora da derrota, apontando para a soma dos eleitores da oposição com o contingente dos ni-ni, que preferiram a abstenção.
A expectativa do candidato choca-se com a interpretação oficial que traduz a concorrência eleitoral como uma guerra patriótica. Desde o pleito parlamentar de 2010, quando os votos oposicionistas superaram os do partido de Chávez, intensificou-se a criação de estruturas paralelas de “poder popular”.
Os conselhos comunais, em número já superior a 20 mil, são controlados por militantes do PSUV, o partido chavista, e financiados por bilhões de dólares transferidos do orçamento nacional. O “socialismo do século 21″ parece-se cada vez mais com o “socialismo real” do século passado.
A alma do chavismo repousa na figura indispensável do caudilho, o que explica a obsessão do regime pelo direito à reeleição ilimitada. De modo geral, os eleitores que lhe deram um novo mandato pouco se importam com as proclamações ideológicas do PSUV e sabem reconhecer a corrupção que grassa, sem freios, na “burguesia bolivariana” (a boliburguesia).
Entretanto, nos barrios das cidades venezuelanas, Chávez é objeto de veneração, pois, na História recente do país, ninguém antes se preocupara com os despossuídos. A novidade explosiva é o câncer em recidiva, cujas características permanecem recobertas pelo manto do mistério de Estado.
A doença de Chávez inocula sensações de insegurança e urgência nos altos círculos bolivarianos. Na hipótese de desaparecimento do condottiere, o chavismo provavelmente se fragmentaria em cliques políticas irreconciliáveis – e, de qualquer forma, é quase impossível imaginar um presumível sucessor capaz de passar pelo teste das urnas.
Do ponto de vista da “revolução bolivariana”, uma saída tentadora para o impasse é a “cubanização” da Venezuela. Desse modo nunca mais se jogaria “a vida da pátria” na roleta das eleições livres.
12 de outubro de 2012
Demétrio Magnoli
Fonte: O Globo
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