A mania que o ex-ministro José Dirceu ainda cultiva, mesmo depois de cassado pela Câmara e de ser réu do processo do mensalão, de relatar suas atividades políticas passadas e presentes com toques de megalomania que as transformam em verdadeiras proezas acabou virando-se contra ele mesmo neste julgamento do mensalão.
Não há quem não saiba, vivendo no Brasil naquele ano de 2003 ou nos dias de hoje, que Dirceu sempre foi o grande articulador político do governo Lula, com ingerência em praticamente todas as áreas do governo, a exemplo do que fazia quando liderava o PT em acordo com Lula.
Centralizador, quando deixou a Casa Civil, presidia dezenas de conselhos interministeriais, tratando dos mais variados assuntos. Sua fome de explicitar o poder que detinha era tamanha que a ordem de precedência dos ministros foi alterada, e ele passou a ser sempre o primeiro nas solenidades.
Pelo decreto 70.724, que trata de “normas do cerimonial público e a ordem geral de precedência” de autoridades em eventos oficiais, a sequência de entrada era determinada pelo critério histórico de criação do respectivo ministério, sendo o da Justiça o mais antigo. Na época de Dirceu, surge uma regra interna, ainda em vigor no Planalto, de que a Casa Civil teria precedência.
Ele era considerado o primeiro-ministro do governo, aquele que realmente governava, realidade que até irritava o presidente Lula, o que não o impediu de classificar Dirceu de “o capitão do time”.
Pois foi esse poder exercido sem a menor discrição, com fome de exibição, que transformou Dirceu em “chefe da quadrilha” quando o Ministério Público denunciou o esquema.
Ele até que tentou montar um Ministério partidário cooptando o PMDB para o primeiro governo. Fechou um acordo, mas foi desautorizado por Lula, que naquele início de governo dizia não se sentir confortável ao lado do PMDB.
A indicação do então deputado federal Eunício Oliveira para uma das vagas do PMDB, por exemplo, provocou a ira de Lula. Mais adiante, depois da crise que quase o tirou do poder, Lula refez seus conceitos, colocou todo o PMDB no governo e deu um ministério ao hoje senador Eunício Oliveira.
Em 2003, para dar a maioria ao governo, o PT, ao comando de Dirceu, foi atrás de adesões e montou esquema para esvaziar os partidos oposicionistas. Tanto que o PT quase não aumentou sua bancada na Câmara, mas os vários partidos que foram para a base, esses, sim, cresceram bastante.
O PTB de Roberto Jefferson aderiu ao governo e teve aumento de cerca de 20 deputados em sua bancada; o PL de Valdemar da Costa Neto, hoje PR, ganhou outros 20. Já o PFL perdeu 26 deputados, e o PSDB, outros 19.
Essa migração da oposição para o governo teve um custo, traduzido no mensalão. Mas o processo de redução da oposição, através da cooptação de deputados para a base governista, continua em ação, agora com troca de cargos no governo ou a perspectiva de poder, caso do novo PSD, que praticamente desidratou o DEM e deve ser incorporado ao Ministério de Dilma após o 2º turno das eleições.
Pois toda essa movimentação partidária foi iniciada por Dirceu quando ainda estava na Casa Civil, o que o transformou aos olhos de todos como o “todo-poderoso” do governo Lula, fama que ele cultivava, mas ao mesmo tempo fez dele o réu mais óbvio quando estourou o escândalo do mensalão.
Suas bravatas eram tão explícitas que tornaram factível que fosse ele o elo final da cadeia criminosa. Bem que José Dirceu avisou várias vezes que nunca fizera qualquer movimento político sem que Lula soubesse, mas sua figura já ganhara dimensões épicas que fizeram dele o figurino perfeito para a tese do domínio do fato, que acabou levando à sua condenação.
Entretanto, o presidente do Supremo, Ayres Britto, disse que encontrou no depoimento de Dirceu à Justiça elementos que claramente o incriminavam, por suas próprias palavras, como o comandante da operação, sem que fosse necessário usar a teoria do domínio do fato.
Ayres Britto pinçou declarações de Dirceu em juízo: “O papel do articulador é levar a que o governo tenha maioria na Câmara, que aprove seus projetos, discutir com a Câmara, com os governadores, prefeitos e conversar com a sociedade. Esse é o papel que tenho até hoje. Me reunia com todos os partidos.”
Era um líder “extremamente centralizador”, definiu Ayres Britto, para concluir por sua culpa.
12 de outubro de 2012
Merval Pereira, O Globo
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