(Continuação
do prefácio para o livro sobre Mário David Andreazza, ministro dos Transportes
nos governos Costa e Silva e Garrastazu Médici e ministro do Interior no
governo João Figueiredo.)
Medici virou presidente
ANOS DOURADOS
DESEMPREGADO
Naqueles
dias em que ainda se ignorava a extensão da doença do presidente, Andreazza
passava a maior parte do dia no palácio Laranjeiras, onde Costa e Silva
permanecia, preso ao leito, sem voz e sem movimentos. Era a trombose,
caracterizada por inteiro. Lá, pudemos conversar horas a fio, sem muitas
informações clínicas, mas aferrados ao princípio de que “o presidente está
doente, mas o cargo não está vago” – frase que ele repetia a todo instante. Os
três ministros militares haviam usurpado o poder, mandando prender o
vice-presidente Pedro Aleixo, para que não assumisse. Ousaram dizer que assim
agiam autorizados pelo velho e enfermo presidente, que de nada tomava
conhecimento.
A
confusão, que era grande, tornou-se incontrolável quando a esquerda radical e
furibunda fornece à direita condições de botar a pata em cima das instituições
que sobravam. Sequestraram o embaixador dos Estados Unidos, Charles Burke
Elbrick. Sem know-how para situações como aquela, a Junta Militar atende as exigências
dos sequestradores e até do governo de Washington, que era de salvar a vida de
seu representante a qualquer custo.
Lembro-me
de um domingo bem cedo, sete horas da manhã, haver levado jornalistas à casa de
Andreazza, para que ele pudesse enfatizar a importância de se aguardar os
derradeiros laudos médicos a respeito da possibilidade ou não de recuperação do
presidente. A repórter Regina Coelho, da “Veja”, reproduziu a conversa e, dias
depois, Andreazza era repreendido pela Junta Militar e pelos Altos Comandos.
Nada de política, deveria cuidar apenas de estradas, sob pena de ser punido…
A
crise desembocou em ferrenha luta pelo poder, surgindo o nome do general
Garrastazu Médici para novo presidente. Dei a notícia a Andreazza que,
emocionado, retrucou: “Ele é um homem de bem, conseguirá botar ordem na
confusão”.
E
colocou, ainda que pela truculência, formando um governo com ministros de Costa
e Silva e com ministros novos. Andreazza foi confirmado no ministério dos Transportes,
como Delfim Netto na Fazenda e Jarbas Passarinho deslocado do Trabalho para a
Educação. Retornei a O Globo, depois fui para a Manchete, mas continuava
frequentando casa e gabinete de Andreazza, sempre um excepcional informante e
analista do que se passava no governo. A seu pedido, a Manchete mandou-me
percorrer toda a região por onde se implantava a Transamazônica. Foram quinze
dias a bordo de um monomotor, descendo em cada campo de futebol em meio à
floresta, entrevistando engenheiros, trabalhadores e, em especial, caboclos
extasiados com aquelas máquinas diabólicas de cortar o verde.
ANOS DOURADOS
Começaram
para o ministro os anos da colheita, os anos dourados que nenhuma intriga
conseguiu empanar. A Transamazônica foi inaugurada, a ponte Rio-Niterói também,
além de a indústria naval se haver afirmado e muitas ferrovias, recuperadas.
Era o tempo em que a economia funcionava bem, não havia desemprego, a ditadura,
por ironia, era popular e um bem montado esquema de propaganda vendia a ilusão do
milagre brasileiro.
Aproximava-se
o término do mandato de Médici e a ebulição nas Forças Armadas voltava a níveis
indescritíveis. Do que mais a imprensa especulava era sobre a possibilidade de
o presidente ser sucedido, senão por um civil, ao menos por um anfíbio, ou
seja, alguém de origem militar com garra e condições de imprimir um passo
adiante naquele regime, de resto politicamente fechado e obscuro. Jornais
dedicavam os espaços não censurados a ilações a respeito, surgindo dois nomes
principais: Mário David Andreazza e Jarbas Passarinho.
Mero
sonho de noite de verão, pois nem Médici pretendia arriscar e nem os Altos
Comandos dispunham-se a ceder espaço. Tudo ficou claro quando, em conversa com
o presidente, o ministro do Exército, general Orlando Geisel, resumiu tudo numa
frase: “Eu não bato continência para coronel!” Coincidência ou não, o escolhido
foi o irmão do ministro, general Ernesto Geisel. Médici desinteressou-se, a
ponto de um de seus filhos haver comentado com o jornalista Carlos Castello Branco:
“meu pai escolheu o sucessor como se escolhe uma bailarina num cabaré.”
Bailarina foi um termo cortês…
DESEMPREGADO
O
terceiro governo da Revolução, de Ernesto Geisel, foi cópia do primeiro, com o
retorno ao poder dos integrantes dos tempos de Castelo Branco. Dispensaram-se
os auxiliares de Costa e Silva e de Médici, até com certo rancor. Andreazza foi
dos primeiros a limpar as gavetas. Estava desempregado, recebia apenas a
aposentadoria de coronel do Exército e precisou ganhar o pão de cada dia.
Imagine-se
a frustração daqueles que anos antes o acusavam de haver enriquecido às custas
de obras públicas. Foi para São Paulo, vender seguros. Quando nos
encontrávamos, comentava sempre estar passando pela melhor fase de sua vida,
podendo conviver com a família, acompanhar o desenvolvimento dos filhos e
abandonar a sina de mestre de obras.
Chegou
a ser convidado para entrar na política. A Arena, partido oficial, queria
faze-lo senador pelo Rio de Janeiro. Não aceitou.
Ao
se abrir a sucessão de Geisel, ainda militarizada, o foco iluminou singular
personagem, o único que conseguiu exercer funções de importância em todos os
governos revolucionários. Chefe da Agência Central do SNI e comandante da
Polícia Militar de São Paulo no governo Castello Branco, chefe do Estado-Maior
do III Exército no governo Costa e Silva, chefe do Gabinete Militar no governo
Garrastazú Médici e chefe do SNI no governo Ernesto Geisel. Um gênio ou um
equilibrista?
Tanto
faz, porque íntimo amigo de Mário Andreazza. Era o João. João Baptista de
Oliveira Figueiredo, último general-presidente do ciclo militar. Indicado por
Geisel, começou a montar seu ministério compondo uma síntese das administrações
anteriores. Golbery do Couto e Silva continuaria no Gabinete Civil, Mário David
Andreazza, costista, seria ministro do Interior, como Mário Henrique Simonsen,
castelista, no Planejamento, e Delfim Netto, costista e medicista, primeiro na
Agricultura, depois na chefia da equipe econômica. Um mágico, aquele
Figueiredo, que surpreendeu o Brasil e o mundo levantando a censura à imprensa,
promovendo a anistia política, acabando com o bipartidarismo forçado e
permitindo a eleição de governadores oposicionistas como Leonel Brizola, no
Rio, Miguel Arraes, em Pernambuco, Franco Montoro, em São Paulo, Tancredo
Neves, em Minas, e muitos outros.
Depois,
a partir do escândalo do Riocentro e da tentativa da extrema direita de impedir
a abertura, entregou-se. Teve enfartos, desinteressou-se do poder. Não quis, ou
não pode, levar seus mais íntimos assessores ao banco dos réus, como o chefe do
SNI, Octávio Medeiros, e o ministro do Exército, Walter Pires.
Só
para concluir: Figueiredo e Andreazza eram contemporâneos dos tempos de cadete,
amigos do peito. Iniciou-se um novo período para o ex-ministro dos Transportes,
tornado gestor de projetos maiores, responsáveis pela integração nacional. Os
tempos já eram bicudos, o milagre brasileiro sucumbira há muito, afogado nas
sucessivas crises do petróleo. Mesmo assim, na Península dos Ministros, em
Brasília, onde se concentravam as mansões dos principais integrantes do
governo, era comum assistir um deles, às seis e meia da manhã, de tenis e
calções largos atravessar a rua e entrar direto no quarto de dormir do outro,
que apenas despertava.
Andreazza
sentava-se na beira da cama de Delfim Netto e, cheio de papéis, impunha a
assinatura do todo-poderoso csar da economia, liberando montes de verbas para
todo o tipo de iniciativas do ministério do Interior. Para os demais
companheiros do ministério, eram a “dupla dinâmica”, Batman e Robin, que faziam
o sucesso material da administração Figueiredo.
Mesmo
assim, quando lembrado o nome de Andreazza para presidente da República, o
presidente titubeou. Aceitou a pressão de Paulo Maluf, afinal feito candidato
do partido oficial. Ganhou Tancredo Neves, é claro, pois a nação estava farta
de governos militares. Andreazza retirou-se do palco, foi ganhar a vida mas
logo depois adoeceu. Seus amigos precisaram cotizar-se para levar seu corpo de
um hospital em São Paulo para ser sepultado no Rio. Evidência maior de sua
honestidade não houve.
18
de novembro de 2012
Carlos Chagas
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