Como
profissional da saúde, pesquisa com adolescentes usuários de drogas/moradores de
rua, além de ter desempenhado a função de educadora social por um ano numa
unidade 'socioeducativa'l para adolescentes em conflito com a lei – conflito
este em sua maioria pelo tráfico ou uso de entorpecentes, tendo como carro chefe
o crack, dividirei o que constatei em minha vivência com os “crackeiros” nos
últimos anos.
Vivenciamos um
caso de saúde pública e de educação, principiada no individualismo, no caos
social, e, em hipótese alguma podemos enxergar no usuário de crack, objeto
criminal.
Creio haver
fases e momentos em nossas vidas. Eu, por exemplo, usei droga quando adolescente
e não fiquei maculada como “drogada” ou “toxicomona”, porque o que houve comigo
e com a grande maioria dos adolescentes de minha geração foi passageiro.
Continuei estudando, trabalhando, e, como muitos amigos, vivenciando meus
projetos e ideais.
A droga ficou como um momento de desacerto emocional,
psíquico, entre mim e o mundo que me rodeava, uma fuga momentânea,
rápida.
Mas, há casos em
que a dor do viver é tão profunda, tão penetrante, que o indivíduo se torna
dependente daquele torpor, daquele estado que ameniza seu sofrimento de viver e
é ali num mundo de “viagens” que lhe é mais suave estar.
E a mensagem que ele
quer passar à família e à sociedade é a de que está doente. E a droga é o meio
que encontra para pedir socorro, ajuda, pois quer a suspensão da dor de estar
vivo.
O viciado em
crack busca um sofrimento menor do que o vivenciado sem a droga, uma proteção
para sua decadência moral e emocional.
O crack passa a ser o analgésico para
enfrentar o dia a dia, pois viver é muito doído, custoso e difícil, ainda mais
de forma íntegra e digna. Integridade, dignidade: ... famílias desestruturadas,
barracos deslizando morro abaixo, segregação racial e social, desemprego, latas
vazias, violência policial, necessidades várias e excessos de faltas. Resiste-se
por algum tempo nas migalhas do Estado, inserindo-se nas franjas sociais, até
que se sucumbe e ponto.
O jovem pobre,
negro, favelado e morador das periferias está fora do mercado digno de trabalho,
está fora dos espaços sociais, está fora de ter, de ser alguém, ele está fora,
ele está fora...
Ele só está dentro é do “movimento” das bocas, dos “centros
socioeducativos” e das cadeias, ajudando em sua superlotação. E saem e voltam
para esses espaços com uma facilidade assustadora, provando para quem queira
ver, o fracasso da penalização do traficante e do usuário de drogas.
E se
conseguir se manter sem recaídas aqui fora, ainda assim, continuará excluído,
porque isso de 'reinserção social' é balela, letra morta, coisa de ONGs com
outros interesses, pois não se reinsere quem nunca esteve
inserido.
As drogas sempre
foram usadas por todas as classes sociais, por ricos e pobres, mas associadas às
minorias: ópio aos chineses, maconha aos mexicanos, cocaína aos negros e
favelados, crack aos miseráveis. Daí, explicam-se tantas prisões de pobre e
preto.
Estamos
caminhando para o caos social e a situação é dramática. Esses meninos e meninas
pobres com as pontas dos dedos amareladas pelo uso do crack, nada mais são que o
efeito colateral de uma sociedade omissa para com a população que vive em
favelas e periferias dos grandes centros, que sobrevivem e se viram como
camelôs, traficantes, gerentes de bocas, prostitutas, “catireiros” e tantas
outras "funções".
A vida digna é inviabilizada devido a este sistema excludente,
que coloca à deriva essa parcela – dentre outras - de jovens e adolescentes
pobres e miseráveis. Não faltam leis, não faltam planos, faltam debates
políticos sérios.
Os discursos que tenho ouvido acerca desse problema, são
simplistas demais e soam ainda como ferramenta para a legitimação das
desigualdades sociais, numa retórica conservadora e preconceituosa, que apenas
demonstra a irracionalidade política que inferioriza e criminaliza a pobreza.
Os
jovens pobres e negros sofrem então duas vezes: uma pela mão do Estado e outra
pela criminalização de sua condição social e cor.
Em 1994, havia
cerca de 110 mil presos no Brasil. Hoje, este número é cinco vezes maior. Creio
se dever a uma política preventiva, que trabalha o conflito social pelo olhar
penal. Confundem justiça com punição e punição com privação de liberdade e nem
imaginam o que rola dentro das prisões.
Essa política de prender leva-me a crer
na imagem da demonização das áreas faveladas, o “grande vetor para
encarceramento da população pobre”. E, aos usuários presos, não é dado novas
oportunidades, nem quando estão sob liberdade, pois ficam de fora de todas as
dimensões de reparação para com ele, que também é vítima, apesar de transgressor
de leis e regras do convívio social.
É preciso
retomar discussões mais sérias acerca deste assunto, de forma menos reacionária
e eleitoreira.
Talvez penas
alternativas para o pequeno e médio traficante, controle sobre o consumo
pessoal, redução de danos de quem usa o crack e acolhimento no tratamento
voluntário seja o início de uma discussão real, voltada não para as elites, mas
para os interessados em modificar este quadro triste que estamos ajudando a
esboçar com nossa visão torpe, defeituosa, ignorante e
egoísta.
Essa galera que
está aí pelas ruas, perambulando como zumbis, nada mais são que vítimas desta
esquizofrenia da era moderna, desse sistema que a muitos mata e a poucos basta.
Necessário se faz outra visão e outro viés discursivo.
O acesso ao crack é fato,
tornando-se impossível controlar a demanda de compra e venda, o mercado de
oferta e procura... é o capitalismo né?! Mesmo para os miseráveis há que existir
o consumo. Precisamos analisar em que contexto seria menos mal lidar com a
realidade do acesso a esta droga, focando os usuários como objeto de saúde
pública e educação e não como casos de polícia.
Não nos
livraremos dos efeitos destrutivos do crack, mas poderemos aprender a conviver
melhor com seus usuários e tentar minimizar o sofrimento humano que seu abuso
provoca.
Eu convivi com
eles, os “crackeiros”, ouvi suas histórias, suas dores, suas neuroses, seus
choros, gritos e desesperos. Vi seus surtos, suas insônias, suas saídas, suas
misérias, suas recaídas, seus retornos, suas tristezas e suas mortes.
Acho-os
sobreviventes do caos urbano e social, guerreiros confusos que não aceitaram de
pronto o papel que a sociedade lhes deu, preferindo muitas vezes o ato
infracional, a fuga através da droga ou a morte à indignidade de viver sem
integridade. Honestamente... não sei se faria diferente no lugar deles...
18 de novembro de 2012
Mônica Simões
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