"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



domingo, 18 de novembro de 2012

TUDO EM JAVANÊS



O artigo 13 da Constituição em vigor determina que "a língua portuguesa é o idioma oficial da República Federativa do Brasil".
É um mandamento de utilidade duvidosa, considerando-se que todo mundo sempre soube que aqui se fala o português — até 1988, aliás, o Brasil não tinha nenhum "idioma oficial" estabelecido em lei, e jamais se notou problema algum por causa disso durante os 500 anos anteriores.
Tudo bem: numa Constituição que tem 250 artigos e mais uma prodigiosa quantidade de "incisos" — só o artigo 5o tem 78 —, umas palavras a mais ou a menos não vão machucar ninguém.
 
Mas, já que nossa lei mais importante determina que o português é a língua oficial do país, obrigatória nos atos públicos, no ensino, nas placas de trânsito e assim por diante, imagina-se que ela deveria ser falada e escrita corretamente, ou pelo menos de maneira compreensível, por todos os que tenham a responsabilidade de resolver alguma coisa. Eis aqui, porém, mais uma questão na qual se faz, na vida prática, justamente o contrário do que a lei manda fazer.
O curioso é que esse tipo de postura comece justamente onde menos deveria começar — nas nossas altas cortes de Justiça. É o caso, como milhões de brasileiros estão sentindo justamente agora, e com direito a transmissão ao vivo, da linguagem utilizada pelos ministros do Supremo Tribunal Federal no julgamento do mensalão.
Nunca, em toda a sua história, o STF viveu um momento de maior prestígio. Nunca tantos brasileiros viram com os próprios olhos o tribunal em ação. Nunca ele foi tão aplaudido por mostrar-se independente, capaz de condenar gente poderosa na máquina do governo e provar que não se assusta com ameaças ao tomar suas decisões.
 
Deveria ser uma oportunidade de ouro, assim, para a população entender como a Justiça pode de fato funcionar no Brasil.
A chance foi desperdiçada. O STF realizou seu trabalho essencial, sem dúvida — mas os ministros fizeram tanta questão de falar "difícil" durante o julgamento que acabaram se tornando perfeitamente incompreensíveis para quem os via e ouvia.
Os dez ministros do STF sabem muito bem que três quartos da população brasileira não são capazes de entender direito o que leem — que esperança poderiam ter, então, de que alguém conseguisse entender o que estavam dizendo? Falou-se, no julgamento, em "vértice axiológico", "crivo probatório" e "exordial acusatória". Ouviram-se as palavras "subsunção", "vênia" e "colendo".
 
Apareceu o verbo "infirmar". Em certo momento, um dos ministros falou em "egrégio sodalício". Que raio de língua seria essa? Latim não é, mesmo porque os ministros não sabem falar latim. Não é nenhum idioma estrangeiro que se conheça. Também não é português. Os sons lembram vagamente a língua falada no Brasil, e as palavras utilizadas estão nos dicionários do nosso idioma oficial.
 
Mas, se nem o 1% mais instruído da população nacional entende algo desse patuá, o resultado prático é que o julgamento mais importante da história do STF acabou sendo feito numa linguagem desconhecida.
Daria na mesma, no fundo, se tivessem falado em javanês — tanto que foi indispensável, para os meios de comunicação, armar uma espécie de serviço de tradução simultânea para as pessoas ficarem sabendo se o réu, afinal, estava sendo condenado ou absolvido.
O português tem cerca de 200000 palavras — mais do que o suficiente, portanto, para Suas Excelências encontrarem termos de compreensão mais fácil. Decidiram fazer justo o contrário: não perderam uma única oportunidade de substituir toda e qualquer palavra clara por outra que ninguém entende.
 
Para que isso? Uma sentença não fica mais justa porque é escrita nessa linguagem torturada. É óbvio que num congresso de física molecular, cirurgia neurológica ou prospecção de petróleo os participantes têm de usar termos técnicos em sua conversa; são até obrigados a isso, para trabalhar com eficiência.
 
Juristas podem fazer exatamente o mesmo, nos seus encontros profissionais. Mas magistrados exercem uma função pública — e isso exige que falem para o público, e não apenas para si mesmos.
Um dos mais antigos princípios do direito universal determina que ninguém pode alegar, em sua defesa, que desconhece a lei.
Mas para conhecer a lei é indispensável que o cidadão entenda o que está escrito nela - e nossos juristas, com o seu linguajar, fazem o possível para tomá-la incompreensível.
Imaginam, com isso, que estão exibindo sua sabedoria para o mundo. Estão apenas mostrando sua recusa, ou incapacidade, de se expressar no idioma oficial do país.

18 de novembro de 2012
J.R. Guzzo
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