O artigo 13 da Constituição em vigor determina que "a língua portuguesa é o idioma oficial da República Federativa do Brasil".
É um mandamento de utilidade duvidosa,
considerando-se que todo mundo sempre soube que aqui se fala o português — até
1988, aliás, o Brasil não tinha nenhum "idioma oficial" estabelecido em lei, e
jamais se notou problema algum por causa disso durante os 500 anos anteriores.
Tudo bem: numa Constituição que tem 250 artigos e mais uma prodigiosa quantidade
de "incisos" — só o artigo 5o tem 78 —, umas palavras a mais ou a menos não vão
machucar ninguém.
Mas, já que nossa lei mais importante determina que o
português é a língua oficial do país, obrigatória nos atos públicos, no ensino,
nas placas de trânsito e assim por diante, imagina-se que ela deveria ser falada
e escrita corretamente, ou pelo menos de maneira compreensível, por todos os que
tenham a responsabilidade de resolver alguma coisa. Eis aqui, porém, mais uma
questão na qual se faz, na vida prática, justamente o contrário do que a lei
manda fazer.
O curioso é que
esse tipo de postura comece justamente onde menos deveria começar — nas nossas
altas cortes de Justiça. É o caso, como milhões de brasileiros estão sentindo
justamente agora, e com direito a transmissão ao vivo, da linguagem utilizada
pelos ministros do Supremo Tribunal Federal no julgamento do mensalão.
Nunca, em
toda a sua história, o STF viveu um momento de maior prestígio. Nunca tantos
brasileiros viram com os próprios olhos o tribunal em ação. Nunca ele foi tão
aplaudido por mostrar-se independente, capaz de condenar gente poderosa na
máquina do governo e provar que não se assusta com ameaças ao tomar suas
decisões.
Deveria ser uma oportunidade de ouro, assim, para a população entender
como a Justiça pode de fato funcionar no Brasil.
A chance foi desperdiçada. O
STF realizou seu trabalho essencial, sem dúvida — mas os ministros fizeram tanta
questão de falar "difícil" durante o julgamento que acabaram se tornando
perfeitamente incompreensíveis para quem os via e ouvia.
Os dez
ministros do STF sabem muito bem que três quartos da população brasileira não
são capazes de entender direito o que leem — que esperança poderiam ter, então,
de que alguém conseguisse entender o que estavam dizendo? Falou-se, no
julgamento, em "vértice axiológico", "crivo probatório" e "exordial acusatória".
Ouviram-se as palavras "subsunção", "vênia" e "colendo".
Apareceu o verbo
"infirmar". Em certo momento, um dos ministros falou em "egrégio sodalício". Que
raio de língua seria essa? Latim não é, mesmo porque os ministros não sabem
falar latim. Não é nenhum idioma estrangeiro que se conheça. Também não é
português. Os sons lembram vagamente a língua falada no Brasil, e as palavras
utilizadas estão nos dicionários do nosso idioma oficial.
Mas, se nem o 1% mais
instruído da população nacional entende algo desse patuá, o resultado prático é
que o julgamento mais importante da história do STF acabou sendo feito numa
linguagem desconhecida.
Daria na mesma, no fundo, se tivessem falado em javanês
— tanto que foi indispensável, para os meios de comunicação, armar uma espécie
de serviço de tradução simultânea para as pessoas ficarem sabendo se o réu,
afinal, estava sendo condenado ou absolvido.
O português tem
cerca de 200000 palavras — mais do que o suficiente, portanto, para Suas
Excelências encontrarem termos de compreensão mais fácil. Decidiram fazer justo
o contrário: não perderam uma única oportunidade de substituir toda e qualquer
palavra clara por outra que ninguém entende.
Para que isso? Uma sentença não
fica mais justa porque é escrita nessa linguagem torturada. É óbvio que num
congresso de física molecular, cirurgia neurológica ou prospecção de petróleo os
participantes têm de usar termos técnicos em sua conversa; são até obrigados a
isso, para trabalhar com eficiência.
Juristas podem fazer exatamente o mesmo,
nos seus encontros profissionais. Mas magistrados exercem uma função pública — e
isso exige que falem para o público, e não apenas para si mesmos.
Um dos mais
antigos princípios do direito universal determina que ninguém pode alegar, em
sua defesa, que desconhece a lei.
Mas para conhecer a lei é indispensável que o
cidadão entenda o que está escrito nela - e nossos juristas, com o seu
linguajar, fazem o possível para tomá-la incompreensível.
Imaginam, com isso,
que estão exibindo sua sabedoria para o mundo. Estão apenas mostrando sua
recusa, ou incapacidade, de se expressar no idioma oficial do
país.
18 de novembro de 2012
J.R. Guzzo
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