Artigos - Terrorismo
O conto de que as FARC “abandonaram” seus “ideais políticos” faz parte de um esforço de propaganda que procura legitimar a criação dessa maquinaria da morte.
O Partido Comunista Colombiano entrou em contato com os “bandoleiros” mais sanguinários dos anos 50 e 60, e conseguiu ganhar alguns deles para suas fileiras, precisamente os piores, para dar forma final a seu aparato armado ofensivo que mais tarde, em 1964, chamará de FARC.
Com freqüência, alguns porta-vozes da esquerda afirmam que as FARC, ao se dedicar ao narcotráfico, ao seqüestro e à extorsão, deixaram de ser uns “rebeldes com causa”, e “abandonaram” seus “princípios ideológicos” e seus “ideais políticos”. Essa mesma frase é empregada às vezes por colunistas, acadêmicos e religiosos. Alguns acrescentam que as FARC “traíram” o marxismo e as táticas revolucionárias. Inclusive e muito lamentavelmente, certos líderes uribistas exibem essa mesma crença.
Em 16 de dezembro de 2010, o diário calenho El País publicou as declarações do ex-presidente Álvaro Uribe durante uma visita a Buenos Aires. O ex-mandatário asseverou que as FARC trocaram sua “ideologia marxista” para se converter em “mercenários em busca dos recursos do narcotráfico”.
Salud Hernández-Mora, em sua coluna de El Tiempo, dizia dias atrás: “É inegável que as FARC tiveram princípios ideológicos em seu início, mas os abandonaram pelo caminho para se re-encarnar em um vulgar bando de delinqüentes. As FARC são mais uma Bacrim, com a diferença de que não pagam salário às crianças de dez, doze, treze anos que são recrutadas em manadas e cujos comandantes executam quando cometem infrações ‘graves’ (como roubar rapadura). Extorquem, contratam sicários, se assassinam entre eles em suas vendettas, são um poderoso cartel com conexões em outros países, se apropriam de fazendas e as entregam a testas-de-ferro, os chefes violentam as jovenzinhas, corrompem autoridades e contam com políticos afeitos a elas”.
La Nación, de Neiva, divulgou em 7 de janeiro de 2012 umas declarações de Monsenhor Rubén Salazar, presidente da Conferência Episcopal. O prelado manifestou que as FARC “deixaram de ser uma guerrilha que tinha ideais políticos e se converteram em um bando terrorista, deveriam ter permanecido em seu status e as coisas teriam sido diferentes. Desafortunadamente se deixaram contagiar pela criminalidade”.
Cristina de la Torre afirmou, em 5 de março de 2012, em El Espectador, que o narcotráfico é “um negócio que as FARC absorveram a mudou-as de rebeldes com causa em organização repleta de malfeitores. Finalmente, a perversidade inqualificável do seqüestro. Nas três fases bélicas que marcam a história desta guerrilha (a violência liberal-conservadora, a guerra contra-insurgente e a do narcotráfico) esta última transtorna seu natural político. E deposita na contraparte o desafio de conjurá-la apostando na despenalização da droga”.
O caso mais avançado de amnésia e revisionismo o apresenta Carlos Ossa Escobar que, em uma entrevista a El Espectador, em 4 de novembro de 2012, estimou que durante o governo de Virgilio Barco Vargas (1986-1990), “chegamos a pensar em um projeto de colonização dirigida na zona de La Macarena com os possíveis desmobilizados. Eram 400 mil hectares. Nos reunimos com a cartografia do lugar e inclusive levou-se assessores do Agustín Codazzi para fazer o levantamento topográfico. (...) Agora, observem que nessa época as FARC não destruíam pontes nem atentavam contra ambulâncias, não seqüestravam funcionários nem assassinavam crianças”.
Esses curiosos pontos de vista repousam sobre uma falsa representação: a de que as FARC um dia tiveram alguns “princípios ideológicos” que foram “abandonados” depois quando se meteram no narcotráfico e no seqüestro. Alguns tratam de fazer crer que esses “princípios ideológicos” eram legítimos e que, graças a eles, houve uma época feliz em que as FARC não cometiam crimes.
Entretanto, os adeptos dessa impostura são incapazes de dar uma data, nem aproximada nem exata, de quando as FARC romperam com seus “princípios ideológicos” tão bons e caíram na negatividade, no crime, na mentira, no narcotráfico.
Essa confusão vem de longe. Vários anos atrás, Francisco Mosquera, o falecido fundador do grupo maoísta MOIR, em seu livro Resistência Civil, afirmou que “na Colômbia a guerrilha (...) acabou se permitindo a licença indesculpável de recorrer ao seqüestro e ao ‘ingresso’ como confessaram seus próprios comandantes”. Nesse livro ele disse:
“Algo comparável acontece com os procedimentos criminosos como o seqüestro, elevado pelo fundador do M-19 à categoria de método proletário de combate, que desacreditam a causa revolucionária e fream a ascensão popular. O irrefutável de todo este longo período de confusão, do qual ainda restam liberais que vêem na sombra de Bateman o maior ideólogo da revolução, é que o MOIR se opôs só e resolutamente a tais desvios”.
Em que pese haver dito isso, Mosquera faz nesse mesmo texto a apologia de um chefe de Estado genocida e totalitário ao chamar Joseph Stalin de “chefe formidável” e o diretor do primeiro Estado socialista que “chegou a descolar, aquela idade madura e brilhante da revolução bolchevique”. Mosquera inclusive recomenda ao “proletário colombiano” a leitura dos discursos de Stalin, e rotula Krushchev de palhaço porque “renegou” o marxismo e porque “desfigurou” a memória de Stalin. Mosquera exigiu sempre que se “educasse as massas” na “compreensão dos misteres da luta de classes”.
O enfoque é absurdo. É como se alguém dissesse: estou contra o antissemitismo e a destruição dos judeus, e ato contínuo, exigisse que “as massas” sejam educadas “na compreensão dos misteres do nacional-socialismo”.
As FARC nunca tiveram “princípios ideológicos” decentes, nem foram uns “rebeldes” com uma causa “aceitável”. As FARC conceberam, desde o princípio, que a violência e todo tipo de crimes e mentiras eram instrumentos fundamentais para se impor sobre os demais. Desde o começo foram um vulgar bando de delinqüentes.
As FARC sempre proclamaram que o fim justifica os meios, que a supressão de centenas, milhares ou inclusive milhões de vidas humanas pode ser justificada se isso conduz ao socialismo. Essa é a moral leninista, a que desembocou na matança de dezenas de milhões de pessoas na URSS e no bloco comunista. As FARC não deixaram de ser leninistas. Essa moral lhes abriu precisamente as portas para que, desde o começo, se lançassem ao lodo de todos os crimes imagináveis, desde o assalto a um grupo de soldados, até a matança de civis, o assassinato de crianças, o êxodo de milhares de pessoas, a extorsão e o tráfico internacional de drogas.
Pois o marxismo nunca impediu que o delito comum fosse posto ao serviço da meta política. Ao contrário: justificou essa convergência.
Cristina de la Torre pretende, entretanto, que duas das três “fases bélicas” que ela atribui às FARC, quer dizer, “a violência liberal-conservadora” e a “guerra contra-insurgente”, seriam fases “políticas” (isto é, legítimas) e que a terceira, “a do narcotráfico”, seria ilegítima.
Quer dizer, que até abril de 1984, quando estoura o escândalo de “Tranquilandia”, um enorme laboratório de droga do Cartel de Medellín que estava sendo protegido pelas FARC, estas haviam atuado corretamente, “politicamente”. Em sua sexta conferência, de maio de 1982, com efeito, as FARC escreveram em um documento que os guerrilheiros deviam arrecadar uma gramagem - imposto por grama - de 80 pesos sobre o grama de cocaína refinada nas zonas onde eles tinham presença. Nessa reunião, as FARC adotaram a tática de concentrar suas ações “sobre os grandes capos, apoderar-se das mercadorias ou exigir fortes somas, velando para que o movimento não apareça como implicado nisso”.
Então, desde 1982, segundo Cristina de la Torre, as FARC teriam se “enchido de malfeitores”, pois antes eram uns “combatentes políticos honestos”. Essa análise é ridícula!
Quando o embrião das FARC participava e atiçava a luta fratricida entre liberais e conservadores, já nessa época esse embrião, orientado por Moscou, queimava vilarejos, assaltava fazendas, se apoderava de terras, seqüestrava e assassinava civis, sobretudo camponeses indefesos, recrutava bandoleiros e atacava a força pública. Durante a fase posterior, que Cristina de la Torre chama de “contra-insurgente”, esse embrião atuava e guiava, discretamente, os bandoleiros mais sanguinários do país, como “Sangrenegra”, “Desquite”, etc.
As FARC em formação, mesmo antes de seu aparecimento sob essa sigla, e depois, roubaram, perpetraram massacres, queimaram vilas, extorquiram, seqüestraram e assassinaram civis, prefeitos, políticos de todo tipo, empresários, pecuaristas, operários, mulheres, sindicalistas, indígenas, estudantes, e emboscaram patrulhas do Exército e da Polícia, e impuseram o terror em vários estados. Nunca houve umas FARC que lutaram pela justiça social, nem pela reforma agrária, nem em defesa dos camponeses. Esse mito não tem justificativa. As vítimas das FARC dessa época não podem ser lançadas ao esquecimento.
O conto de que as FARC “abandonaram” seus “ideais políticos” faz parte de um esforço de propaganda que procura legitimar a criação dessa maquinaria da morte. Tratam de fazer crer que esse ato político fundador (nem sequer decidido por colombianos) foi um ato “justo” que tinha “raízes sociais”. Nada disso é certo. As FARC não foram a emanação de nenhum movimento agrário. Tratam, por isso mesmo, de conseguir que a Operação Marquetalia seja vista por todos, pela direita e pela esquerda, como um “erro” de Guillermo León Valencia, o presidente que conseguiu salvar o país de uma boa parte dos grupos “bandoleiros”. É o mesmo que tratam de fazer hoje com a política de segurança democrática do ex-presidente Álvaro Uribe: que seja vista como outro “erro”, como um “crime”.
Por motivo do chamado “processo de paz” em Oslo e Havana, essa falsa lenda volta a tomar força. Não por acaso, Luciano Marín Arango, cognome ‘Iván Márquez’, em sua perorata de Oslo, insistiu nesse ponto e escandalizou o país quando disse que o Estado colombiano havia “atacado” humildes camponeses em Marquetalia, que as FARC são “inocentes”, que elas não são uma força agressora senão que são as “vítimas” do governo.
Essa impostura não pode ser consolidada se antes não se consegue amordaçar a imprensa e mutilar e deformar a história recente do país. Um exemplo do que se faz hoje nesse sentido tem a ver com o papel do Partido Comunista da Colômbia (PCC) na fundação, orientação e desenvolvimento das FARC. Procura-se esconder tudo isso. Para regozijo do PCC, essa amnésia foi-se instalando pouco a pouco na opinião pública, de sorte que alguns pensam que as FARC são uma coisa e o PCC é outra. Alguns chegam a admitir, como grande coisa, que entre essas duas organizações há só um ponto ideológico comum: o marxismo.
Foi esse partido quem entrou em contato com os “bandoleiros” mais sanguinários dos anos 50 e 60, e conseguiu ganhar alguns deles para suas fileiras, precisamente os piores, para dar forma final a seu aparato armado ofensivo que mais tarde, em 1964, chamará de FARC. Assim, os mais sanguinários “bandoleiros” chegaram a estar sob a tutela do PCC. Trata-se de criminosos como ‘Sangrenegra’, ‘Desquite’, ‘Chispas’, ‘Pedro Brincos’, ‘Capitán Ceniza’, ‘Capitán Tolima’, ‘Capitán Veneno’, ‘Capitán Richard’, ‘Calzones’, ‘El Mosco’ e, certamente, Pedro Antonio Marín Marín, cognome ‘Tirofijo’, entre outros. O período mais intenso desse “trabalho” ocorreu entre os anos 1960-1964. ‘Pedro Brincos’ também teve contatos com o FUAR e com o MOEC.
José William Ángel Aranguren, cognome ‘Desquite’, era membro do PCC. Pedro Antonio Marín era membro do PCC desde 1952 e dez anos depois foi eleito membro do Comitê Central do PCC. Seu antigo chefe, e conotado assassino, Jacobo Prías Alape, ou Fermín Charry, cognome ‘Charronegro’, foi eleito membro do Comitê Central do PCC em 1958. Durante esses anos, ‘Tirofijo’ utilizou o seqüestro, a extorsão e todo tipo de crimes para escapar da justiça e construir seu bastião na “república independente de Marquetalia”. Do mesmo modo fez seu chefe ‘Charronegro’. Todos eles contaram com a colaboração da grande delinqüência do momento, dos “bandoleiros” que alguns tratam de apresentar agora como bandidos “sem partido” e sem ambições políticas.
Nessa época (e nos anos que se seguiram) os comunistas praticaram o terrorismo urbano. As autoridades, a classe política, e a imprensa liberal e conservadores da época, chamavam esses atos de terrorismo. Atentados como a explosão sucessiva de 19 bombas em uma só noite em Bogotá, e a série de explosões simultâneas de bombas em Barranquilla, Cali, Santa Marta foram muito freqüentes nesses anos. Agora foram esquecidas. Outras facções marxistas radicalizadas, como o MOEC e o FUAR, também praticaram o terrorismo.
O bando M-19, uma emanação das FARC e a ANAPO, se apresentou em público com um ato delinqüencial: o roubo da espada de Bolívar da Quinta de Bolívar em Bogotá, em 17 de janeiro de 1974. Em 1975 seqüestrou o empresário norte-americano e gerente dos armazéns Sears, Donald Cooper; em 1976 seqüestrou, torturou e assassinou o presidente da CTC, ferrenho anti-comunista, José Raquel Mercado. Em 1977, seqüestrou o gerente de Indupalma, Hugo Ferreira Neira. Em 1978 seqüestrou, torturou e assassinou em cativeiro, Nicolás Soto Escobar, gerente da Texas Petroleum. Em 19 de janeiro de 1981, seqüestrou e assassinou o norte-americano Chester Allan Bitterman.
Desde sua fundação, o M-19 cometeu atos criminosos - aqui enumeramos uns poucos, pois a lista é longa. Em junho de 1988, seqüestrou o líder conservador Álvaro Gómez Hurtado, depois de assassinar sua escolta. O M-19 se “desviou” de seus objetivos “políticos” ao incorrer nesses delitos? O ato mais bárbaro e cruel que o M-19 cometeu foi o assalto ao Palácio da Justiça, em 6 de novembro de 1985. Fez isso em combinação com uma potência do narco-tráfico: o Cartel de Medellín. Os tratos com Pablo Escobar vinham desde o início dos anos 80. Em seu livro Razones de vida, Vera Grave narra como esse capo emprestava suas fazendas para dar refúgio aos militantes do M-19. Ela conta como nessas fazendas houve hospitais improvisados para atender os feridos do M-19. O M-19 se “desviou” de seus objetivos políticos por ter tratos com Pablo Escobar? “Desviou-se” de seus “ideais políticos” ao assaltar o Palácio da Justiça? “Desviou-se” de sua aventura “política” quando seu “batalhão América” assassinava camponeses no Valle del Cauca?
Os politólogos e os jornalistas deveriam voltar-se sobre esse período e admitir a realidade dos fatos, e reconsiderar esse ponto de vista tão errado. O seqüestro, a extorsão, os massacres, o terrorismo, não são crimes “recentes” das FARC. Essa organização e seus grupos satélites sempre utilizaram esses métodos, e lhes deram o epíteto errado e desinformador de “formas de luta”.
Não, as FARC não se “desviaram” nem “abandonaram” sua ideologia inicial. Esta é a mesma de hoje e é a mesma que os leva a fazer o que fazem. As atrocidades de hoje lembram tristemente as atrocidades de ontem. A única diferença é, talvez, de ordem quantitativa, mas não qualitativa. Admitir a verdade histórica poderia ser decisivo para os que irão a Havana em nome do governo. Lá deveriam tratar de dialogar com os chefes das FARC sobre uma base real, e não sobre uma plataforma de amnésia e de paisagens fictícias.
22 de novembro de 2012
Carlos Romero Sánchez & Eduardo Mackenzie
Tradução: Graça Salgueiro
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