OU "OS NÚMEROS SÃO COMO BAIONETAS.PODE-SE FAZER TUDO COM ELES, MENOS SENTAR EM CIMA."
Na fábula de Hans
Christian Andersen apenas as pessoas inteligentes poderiam ver o tecido especial
(que não existia) com o qual se faria a "roupa nova do imperador". Mas sem ser
avisada, uma criança notou que o imperador estava sem roupa. Desde a sua
criação em 1990, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) tem feito o papel da
criança na fábula ao chamar a atenção das sociedades para como elas estão
"vestindo-se" com as peças básicas do desenvolvimento humano.
Com a notícia oficial de que o Brasil continua estável no ranking do IDH, parece que o imperador continua vestido, mas uma olhada mais detalhada nos números trazidos pelo IDH e sua nova metodologia sugere pelo menos a existência de três conjuntos de razões para preocupar-nos com a roupa do imperador, mesmo correndo o risco de parecermos pouco inteligentes para a corte.
O primeiro conjunto de razões é sobre a tendência agregada do ranking do Brasil no longo-prazo.
Quando comparamos a evolução do IDH desde a sua criação notamos que o Brasil já esteve muito melhor posicionado no ranking, por exemplo 51º em 1990, 58º em 1996 e 63º em 2005.
De fato, desde esse último ano, o ranking do Brasil no IDH vem caindo, atingindo o seu ranking mais baixo de toda a história justamente em 2012. Pode-se contra-argumentar que em outros anos não foram incluídos 187 países como em 2012 e 2011 (a média histórica é de 175 países), mas o fato é que a maior parte das inclusões ao longo do tempo foram abaixo do Brasil.
Enquanto o país não investir pesadamente em saúde e educação, não haverá evolução relativa no ranking. Nos últimos 10 anos, o Peru ultrapassou o Brasil no ranking e em 2012 o Brasil ultrapassou o Equador.
Outros países, aparte das quedas da Argentina e Costa Rica, se mantiveram estáveis no ranking, o que não é uma boa notícia para o Brasil:
a desaceleração do crescimento do IDH do país é mais significativa do que a de outros países latino-americanos e não se vislumbra possibilidades do Brasil alcançar o IDH de países como Chile,
Argentina,
Uruguai,
Cuba,
Panamá,
México,
Costa Rica e mesmo Venezuela no médio prazo.
Argumentos do tipo "a taxa de crescimento do IDH brasileiro de 1990 a 2012 foi de 24%, maior que a do Chile, Argentina e México" infelizmente ignoram que se considerados outros períodos, por exemplo nos últimos 5 anos, a taxa de crescimento do IDH da Argentina e de outros 7 países latino-americanos é superior a do Brasil.
O problema não é que o Brasil não tenha melhorado no longo-prazo, o problema é a desaceleração recente do crescimento do IDH brasileiro, principalmente levando-se em consideração que países como o Brasil na 85º posição deveriam crescer mais do que países como Chile (40º) e Argentina (45º) pela simples razão que têm mais espaço para crescer dentro da escala zero a um do IDH.
O segundo conjunto de razões é sobre as deficiências estruturais que seguem no país, principalmente nas áreas da saúde e da educação. Dentro de um conjunto de 12 países latino-americanos que estão no mesmo grupo de desenvolvimento do Brasil, mais Chile e Argentina, pode-se notar que o Brasil é o país que tem a taxa de expectativa de vida mais baixa de todos.
Enquanto vivemos em média 74 anos, pessoas que vivem no Chile vivem 79,3 anos, na Argentina 76,1 anos, no Uruguai 77,2 anos, etc.
O Brasil é um dos países latino-americanos onde a distribuição da expectativa de vida é mais desigual, com perdas de 14,4% no IDH-saúde.
Também é o país com o pior índice de satisfação com a saúde, com apenas 44% de aprovação. Na educação, temos a maior taxa de abandono do primário (24,3%) e uma das menores taxas de matrícula no terciário (36,1%) dentre os países latino-americanos no mesmo grupo de desenvolvimento.
O dados do IDH revelam que enquanto o país não investir pesadamente em saúde e educação, não deve haver evolução relativa no ranking do IDH.
Associado ao primeiro conjunto de razões, não deve haver convergência também em relação aos países latino-americanos melhor posicionados no ranking.
O terceiro conjunto de razões é metodológico.
Atualmente há muita dificuldade para se entender e interpretar o índice.
Existem dois problemas principais que explicam essa dificuldade:
o IDH passou a ser calculado em 2010 a partir de "postos variáveis", isto é, com base nos valores máximos e mínimos observáveis anualmente para todos países.
Com isso, o valor absoluto per se do IDH deixou de ter valor.
É preciso agora um recálculo do índice para que ele possa ser comparado ano a ano. E aí vem o segundo problema.
Quando esse recálculo é feito, grande parte da variação do IDH que poderia ser observada esse ano (já que não foi registrada no ano anterior), fica computada no ano contra-factual, ou seja, no ano ajustado, que de fato nunca existiu e nem vai existir. O recálculo do valor absoluto do índice em si não é o problema, mas o do ranking sim. Com isso passa desapercebida a queda do Brasil no ranking do IDH no longo prazo. Por que não dizemos que caímos uma posição no ranking em 2012 e caímos 11 posições em 2011? (parcialmente pela entrada de 7 novos países a frente do Brasil?) Fica o medo talvez de dizermos que o imperador está sem roupa.
Seria injusto qualificar os programas sociais brasileiros de uma "linda roupa" feita com o tecido especial do alfaiate de Christian Andersen. Há muita coisa boa feita no país e elogios são devidos às várias políticas públicas nacionais, principalmente as que se preocupam com as pessoas mais pobres.
A questão não parece ser "o quê", mas o "como" dessas políticas, porque vistas sob a ótica do IDH elas têm produzido o impacto do imperador sem roupa. Possivelmente os programas sociais focam demais na renda como critério de seleção e avaliação de impacto dos mesmos.
Moral da história:
olhe, olhe de novo, olhe de novo, de novo, precisamos da coragem das crianças e do que é dito pelo IDH para que enfrentar o óbvio e para que todos tenhamos um futuro melhor no nosso país.
O IDH e o conto do imperador sem roupa
Flavio Comim Valor Econômico Flavio Comim é professor de economia da UFRGS e da Universidade de Cambridge.
Com a notícia oficial de que o Brasil continua estável no ranking do IDH, parece que o imperador continua vestido, mas uma olhada mais detalhada nos números trazidos pelo IDH e sua nova metodologia sugere pelo menos a existência de três conjuntos de razões para preocupar-nos com a roupa do imperador, mesmo correndo o risco de parecermos pouco inteligentes para a corte.
O primeiro conjunto de razões é sobre a tendência agregada do ranking do Brasil no longo-prazo.
Quando comparamos a evolução do IDH desde a sua criação notamos que o Brasil já esteve muito melhor posicionado no ranking, por exemplo 51º em 1990, 58º em 1996 e 63º em 2005.
De fato, desde esse último ano, o ranking do Brasil no IDH vem caindo, atingindo o seu ranking mais baixo de toda a história justamente em 2012. Pode-se contra-argumentar que em outros anos não foram incluídos 187 países como em 2012 e 2011 (a média histórica é de 175 países), mas o fato é que a maior parte das inclusões ao longo do tempo foram abaixo do Brasil.
Enquanto o país não investir pesadamente em saúde e educação, não haverá evolução relativa no ranking. Nos últimos 10 anos, o Peru ultrapassou o Brasil no ranking e em 2012 o Brasil ultrapassou o Equador.
Outros países, aparte das quedas da Argentina e Costa Rica, se mantiveram estáveis no ranking, o que não é uma boa notícia para o Brasil:
a desaceleração do crescimento do IDH do país é mais significativa do que a de outros países latino-americanos e não se vislumbra possibilidades do Brasil alcançar o IDH de países como Chile,
Argentina,
Uruguai,
Cuba,
Panamá,
México,
Costa Rica e mesmo Venezuela no médio prazo.
Argumentos do tipo "a taxa de crescimento do IDH brasileiro de 1990 a 2012 foi de 24%, maior que a do Chile, Argentina e México" infelizmente ignoram que se considerados outros períodos, por exemplo nos últimos 5 anos, a taxa de crescimento do IDH da Argentina e de outros 7 países latino-americanos é superior a do Brasil.
O problema não é que o Brasil não tenha melhorado no longo-prazo, o problema é a desaceleração recente do crescimento do IDH brasileiro, principalmente levando-se em consideração que países como o Brasil na 85º posição deveriam crescer mais do que países como Chile (40º) e Argentina (45º) pela simples razão que têm mais espaço para crescer dentro da escala zero a um do IDH.
O segundo conjunto de razões é sobre as deficiências estruturais que seguem no país, principalmente nas áreas da saúde e da educação. Dentro de um conjunto de 12 países latino-americanos que estão no mesmo grupo de desenvolvimento do Brasil, mais Chile e Argentina, pode-se notar que o Brasil é o país que tem a taxa de expectativa de vida mais baixa de todos.
Enquanto vivemos em média 74 anos, pessoas que vivem no Chile vivem 79,3 anos, na Argentina 76,1 anos, no Uruguai 77,2 anos, etc.
O Brasil é um dos países latino-americanos onde a distribuição da expectativa de vida é mais desigual, com perdas de 14,4% no IDH-saúde.
Também é o país com o pior índice de satisfação com a saúde, com apenas 44% de aprovação. Na educação, temos a maior taxa de abandono do primário (24,3%) e uma das menores taxas de matrícula no terciário (36,1%) dentre os países latino-americanos no mesmo grupo de desenvolvimento.
O dados do IDH revelam que enquanto o país não investir pesadamente em saúde e educação, não deve haver evolução relativa no ranking do IDH.
Associado ao primeiro conjunto de razões, não deve haver convergência também em relação aos países latino-americanos melhor posicionados no ranking.
O terceiro conjunto de razões é metodológico.
Atualmente há muita dificuldade para se entender e interpretar o índice.
Existem dois problemas principais que explicam essa dificuldade:
o IDH passou a ser calculado em 2010 a partir de "postos variáveis", isto é, com base nos valores máximos e mínimos observáveis anualmente para todos países.
Com isso, o valor absoluto per se do IDH deixou de ter valor.
É preciso agora um recálculo do índice para que ele possa ser comparado ano a ano. E aí vem o segundo problema.
Quando esse recálculo é feito, grande parte da variação do IDH que poderia ser observada esse ano (já que não foi registrada no ano anterior), fica computada no ano contra-factual, ou seja, no ano ajustado, que de fato nunca existiu e nem vai existir. O recálculo do valor absoluto do índice em si não é o problema, mas o do ranking sim. Com isso passa desapercebida a queda do Brasil no ranking do IDH no longo prazo. Por que não dizemos que caímos uma posição no ranking em 2012 e caímos 11 posições em 2011? (parcialmente pela entrada de 7 novos países a frente do Brasil?) Fica o medo talvez de dizermos que o imperador está sem roupa.
Seria injusto qualificar os programas sociais brasileiros de uma "linda roupa" feita com o tecido especial do alfaiate de Christian Andersen. Há muita coisa boa feita no país e elogios são devidos às várias políticas públicas nacionais, principalmente as que se preocupam com as pessoas mais pobres.
A questão não parece ser "o quê", mas o "como" dessas políticas, porque vistas sob a ótica do IDH elas têm produzido o impacto do imperador sem roupa. Possivelmente os programas sociais focam demais na renda como critério de seleção e avaliação de impacto dos mesmos.
Moral da história:
olhe, olhe de novo, olhe de novo, de novo, precisamos da coragem das crianças e do que é dito pelo IDH para que enfrentar o óbvio e para que todos tenhamos um futuro melhor no nosso país.
O IDH e o conto do imperador sem roupa
Flavio Comim Valor Econômico Flavio Comim é professor de economia da UFRGS e da Universidade de Cambridge.
18 de março de 2013
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