"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



segunda-feira, 22 de abril de 2013

COBRAR RESPONSABILIDADE


No início do mês, um assaltante matou um jovem em São Paulo com um tiro na cabeça, mesmo depois de a vítima ter lhe passado o celular. Identificado por câmeras do sistema de segurança do prédio do rapaz, o criminoso foi localizado pela polícia, mas — apesar de todos os registros que não deixaram dúvidas sobre a autoria do assassinato — não ficará um único dia preso.

Menor de idade, foi “apreendido” e levado a um centro de recolhimento. O máximo de punição a que está sujeito é submeter-se, por três anos, à aplicação de medidas “socioeducativas”.

Não é um caso isolado na crônica de crimes cometidos por menores de idade no país. Mas houve, nesse episódio de São Paulo, uma circunstância que o transformou em mais um exemplo emblemático do equivocado abrigo legal que o Estatuto da Criança e do Adolescente confere a criminosos que estão longe de poderem justificar suas ações com o argumento da imaturidade: ao disparar friamente contra o estudante paulista, o assaltante estava a três dias de completar 18 anos.

Pela selvageria do assassinato, o caso remete à barbárie de que foi vítima, no Rio, o menino João Hélio, em 2007. Também nesse episódio, um dos bandidos que participaram do martírio do garoto estava a pouco tempo de atingir a maioridade.

Nos dois casos, convencionou-se, ao anteparo do ECA, que a diferença de alguns dias — ou, ainda que o fosse, de alguns meses — teria modificado os padrões de discernimento dos assassinos. Eles não saberiam o que estavam fazendo.

É um tipo de interpretação que anaboliza espertezas da criminalidade, como o emprego de menores em ações — inclusive armadas — de quadrilhas organizadas, ou serve de salvo-conduto a jovens criminosos para afrontar a lei.

O raciocínio, nesses casos, é tão cristalino quanto perverso: colocam-se jovens, muitos dos quais mal entraram na adolescência, na linha de frente de ações criminosas porque, protegidos pelo ECA, e diante da generalizada ruína administrativa dos órgãos encarregados de aplicar as medidas socioeducativas, na prática eles são inimputáveis. Tornam-se, assim, personagens de vestibulares para a entrada em definitivo, sem chances de recuperação, numa vida de crimes.

É dever do Estado (em atendimento a um direito inalienável) prover crianças e adolescentes com cuidados, segurança, oportunidades, inclusive de recuperação diante de deslizes sociais. Neste sentido, o ECA contém dispositivos importantes, que asseguram proteção a uma parcela da população em geral incapaz de discernir entre o certo e o errado à luz das regras sociais.

Mas, se estes são aspectos consideráveis, por outro lado é condenável o viés paternalista de uma lei orgânica que mais contempla direitos do que cobra obrigações daqueles a quem pretende proteger.

O país precisa rever o ECA, principalmente no que tange ao limite de idade para efeitos de responsabilidade criminal. É uma atitude que implica coragem (de enfrentar tabus que não se sustentam ao confronto com a realidade) e o abandono da hipocrisia (que tem cercado esse imprescindível debate).

22 de abril de 2013
O Globo, Editorial

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