João foi um dos homens de minha vida. Por homens de minha vida entenda-se os garçons, os profissionais com quem mais convivi, de dia ou de noite, no verão ou no inverno, no Brasil ou no Exterior. Geralmente, é a primeira relação que estabeleço em uma cidade. E se nem sempre fui fiel a minhas amadas, sempre o fui com meus garçons.
João era um destes seres atentos a meu menor gesto, que acompanhou minhas noites no Baronesa, restaurante mais próximo de onde resido. Como eu, foi contemplado com aquele presente que o bom Deus, nos últimos anos, me manda a cada Natal. Em nossas conversas, sempre tratávamos de confidências sobre nossas peripécias.
João recidivou, mas hoje passa bem, gozando o convívio de sua companheira, aposentado e de volta a seu Nordeste natal. Em uma das últimas vezes que conversamos, tinha de fazer uma tomografia. Em São Paulo, João morava na rua Cesário Motta Jr, aqui perto de casa. Nesta rua há dois hospitais, a Santa Casa – centenário centro de referência hospitalar em São Paulo – e o Santa Isabel. A Santa Casa, mesmo que você não esteja doente, merece uma visita, por sua arquitetura gótica. Muitas vezes atravessei o hospital para cortar caminho, me sentindo na Inglaterra do século XVIII. Mas não é disto que pretendia falar.
João morava a dez minutos de caminhada da Avenida Angélica, onde há pelo menos meia dúzia de laboratórios. Mais dez minutos do Baronesa, onde trabalhava, e temos o hospital Samaritano, outro centro de referência da cidade. Pois bem: João teve seu exame marcado, para dali a dois meses, em Carapicuíba, a 35 km de distância, na rodovia Castello Branco. João é atendido pelo SUS.
Falta de leitos, pacientes atirados em corredores ou amontoados em salas, até que se entende, é o excesso de pacientes por leitos hospitalares. Que mandem um homem doente fazer exames a 35 km de distância, quando tem dois hospitais frente à sua casa, já não é fácil de entender.
Dito isto, dona Dilma não acerta uma. Desesperada com a assim chamada voz rouca das ruas – que, a bem da verdade, nem queriam sua cabeça – embutiu em sua fórmula mágica de acalmar multidões, além das idéias de Constituinte e plebiscito, a exótica proposta de importar seis mil médicos do Exterior. No fundo, estratégia para abrigar um antigo projeto do PT, dar guarida aos médicos que vivem na miséria sob o regime dos irmãos Castro.
A Constituinte foi pras cucuias em menos de 24 horas, o plebiscito seguiu o mesmo caminho alguns dias depois e a malfadada idéia de importar médicos não convenceu ninguém. O que se precisa não é exatamente de médicos, mas de mais verbas aos hospitais, que muitas vezes têm de reciclar até mesmo luvas. Dadas as péssimas condições do ensino de medicina em Cuba, o PT pretendia desonerar os camaradas do exame exigido aos médicos brasileiros para o exercício da profissão. A idéia não vingou. O puchero dos médicos cubanos pareceu por demais gordo. Passou-se então a falar em médicos mais palatáveis, os portugueses e espanhóis.
Remendando um remendo a outro, surgiu agora a panaceia: exigir dois anos de trabalho no SUS de cada estudante para a obtenção do diploma de médico. Como idéias brilhantes puxam idéias brilhantes, já se fala em estender a medida aos estudantes de odonto, psicologia, nutrição, enfermagem e fisioterapia. O pretexto é formação profissional. A razão é outra: o governo quer obrigar, como nas antigas ditaduras comunistas, o cidadão a trabalhar para o Estado a preço vil. O PT pode perder a pose, mas não perde os antigos reflexos.
Ocorre que, tanto no caso da Constituinte, como neste do trabalho escravo junto ao SUS, o governo parece ter esquecido uma providência elementar: examinar se a medida é legal, ou pelo menos constitucional. No primeiro caso, era inconstitucional e dona Dilma não sabia. No segundo caso também, e dona Dilma também não sabia.
O problema ainda é mais grave: segundo o advogado Carlos Ari Sundfeld, professor da Escola de Direito da Faculdade Getúlio Vargas (FGV), “o sujeito será obrigado a trabalhar no SUS sem direito a férias remuneradas, 13º ou licença maternidade, pois ele não será um profissional, mas sim estudante. O governo quer arrumar profissionais no SUS pagando uma bolsa, mas sem direitos trabalhistas. São, portanto, profissionais mais baratos.”
O que caracteriza as tais de condições análogas a trabalho escravo. Que governo é esse – estará se perguntando o leitor – que não tem assessoria jurídica? Não é bem o caso. Petistas nunca se importaram com ordenamento jurídico. O que importa para PT é manter-se no poder, ao arrepio ou não das leis. As esquerdas gostam de citar Getúlio Vargas como exemplo do descaso à legislação: “a lei... ora, a lei....” – dizia Vargas. O PT não ousa ser tão sincero, mas constitucionalidade ou não de uma lei é o que menos importa ao governo. Primeiro a gente propõe, depois veremos se cola ou não cola.
“Ninguém é obrigado a exercer uma função por força de lei, a única exceção é o serviço militar obrigatório, previsto na nossa Constituição”, disse hoje o jurista Miguel Reale Júnior, em entrevista à Veja on line -. “A medida fere a Constituição na medida em que estabelece um constrangimento ilegal, de serviço obrigatório.”
Há quem alegue que a proposta do governo impõe uma condição para a obtenção do diploma, e não exatamente para o exercício profissional, já que estamos falando de estudantes. Para Reale Júnior, a medida fere, sim, a Constituição brasileira, mesmo se tratando de algo específico da grade curricular do curso de medicina — e não de um serviço profissional.
"A medida seria inconstitucional mesmo se os médicos fossem obrigados a trabalhar no SUS depois de formados" – diz o jurista. A questão não difere para alunos que cursam faculdades públicas ou privadas: nos dois casos, a obrigatoriedade do serviço é inconstitucional.
Só dona Dilma não sabia disso. Há alguns meses eu dizia que o país avança em ritmo de ganso, um passo e uma cagada. Agora, o passo não mais existe.
11 de julho de 2013
janer cristaldo
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