Sabemos que a figura do dragão é um tema recorrente em várias culturas, com significados até opostos. Assim, no Ocidente, é negativo: representa o mal e o mundo ameaçador das sombras. No Oriente, é positivo: símbolo nacional da China, senhor das águas e da fertilidade. Não raro, os pobres entre nós dizem: “Para me manter, tenho que matar um dragão por dia”.
Muitos antropólogos e psicólogos que trabalham sobre o tema dos arquétipos afirmam que o dragão representa uma das figuras transculturais mais ancestrais da história humana.
É a percepção de que a nossa identidade profunda não nos é dada simplesmente pelo fato de sermos humanos. Ela tem que ser conquistada numa luta diuturna. Essa situação é representada pelo dragão.
Por isso, junto com o dragão, sempre vem o cavaleiro são Jorge, que, com ele, se confronta numa luta renhida. À luz dos estudiosos referidos acima, tanto um como o outro são partes de nossa realidade humana.
Isso é assim porque a nossa vida é sempre feita de luz e de sombras. Quem vai triunfar, São Jorge ou o dragão? Ambos coexistem, e sentimos suas presenças em cada momento: às vezes, na forma de raiva ou de amor etc. É aqui que entra a importância de uma identidade forte, um são Jorge que possa enfrentar as nossas sombras e maldades, o dragão, e fazer triunfar nossa parte melhor.
GUERREIROS E VENCEDORES
São Jorge é o que nos mostra como, nessa luta, podemos ser guerreiros e vencedores. Ele enfrentou o dragão: mostra a força do eu, da própria identidade, garantindo a vitória. Mas essa vitória não se conquista de uma vez por todas. Ela tem que ser renovada a cada momento, à medida que as amarras vão surgindo.
Há, contudo, um drama ao qual não nos podemos furtar. Por mais que lutemos e vençamos, o dragão está sempre nos espreitando. Ele nos acompanha. Mais ainda: é uma parte de nós mesmos.
Por essa razão, nas muitas lendas existentes sobre São Jorge, ele não mata o dragão, mas o vence, mantendo-o domesticado, amarrado e submetido aos imperativos do eu e da identidade pessoal.
Ele não pode ser negado e eliminado, apenas integrado de tal forma que perca seu lado ameaçador e destruidor. Pode até nos ajudar a sermos humildes e evitar a autoconfiança demasiada.
A pessoa que não renega o dragão, mas o mantém sob seu domínio, consegue uma síntese feliz dos opostos presentes em sua vida. Essa pessoa emerge como um ser humano mais rico, mais sereno, mais compreensivo, tolerante e compassivo, irradiando uma aura boa ao seu redor.
DUAS DIMENSÕES
Repetimos: importa reconhecer que o dragão amedrontador e o cavaleiro heróico São Jorge são duas dimensões de nós mesmos. Nosso desafio é fazer com que são Jorge tenha a primazia e não deixe que o dragão nos derrote e tire o sentido e o gosto de viver.
Por fim, cabe uma observação de ordem filosófica: seguramente, aqueles que veneram São Jorge não sabem nada disso que explanei acerca da coexistência dos dois em nossa vida. Nem precisam saber. Basta que tenham consciência de que a vida é uma permanente luta entre o que é bom para mim e para os outros e o que é mau e deve ser evitado e combatido, e que acreditem que a virtude é preferível ao vício e que a palavra final terá de são Jorge, e não do dragão.
Nessa fé, saímos todos fortalecidos para os embates que ocorrerão pela vida afora com a assistência poderosa do guerreiro vencedor, São Jorge. (transcrito de O Tempo)
27 de abril de 2013
Leonardo Boff
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