"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



terça-feira, 27 de setembro de 2011

O MUNDO SEM O ONZE DE SETEMBRO: EXPLORANDO HIPÓTESES


Imaginemos, por um momento, que não tivesse ocorrido o Onze de Setembro. As duas torres gêmeas ainda fariam parte do skyline do sul de Manhattan e o Pentágono não teria sido renovado, continuando, portanto, a exibir sua horrível arquitetura stalinista (que, por sinal, ele ainda tem, a despeito das fachadas mais limpas e menos cinzentas). Mais importante, três mil pessoas não teriam sido barbaramente eliminadas – e me desculpo imediatamente por não mencionar isso em primeiro lugar – por um dos mais espetaculares (e cinematográficos) atentados jamais ocorridos na história.

Claro, outras matanças “terroristas” produziram muito mais vítimas, algumas delas até em doses concentradas (ou delongadas, como os crimes igualmente bárbaros ou genocídios perpetrados por déspotas e tiranos como Hitler, Stalin, Mao e outros candidatos menores), mas nenhuma, até aqui, frequentou tanto os espaços da mídia quanto aquela perpetrada numa bela manhã de céu azul do final do verão americano. Nenhuma dessas outras matanças – historicamente mais relevantes – foi vista ao vivo por milhões de pessoas ao redor do mundo; a repetição contínua, nos canais de TV, dos ataques às torres gêmeas ainda nos enche de horror e de estupefação (ainda que sem mais a completa surpresa daqueles momentos terríveis).

Imaginemos, então, que não tivessem ocorrido esses ataques – aliás dotados de “tecnologia” relativamente ingênua, cujos autores poderiam ter sido detectados e interceptados a caminho de seu intento criminoso – ou que, simplesmente, o cérebro que esteve por trás de seu planejamento pudesse ter continuado suas ações “normais” de terrorismo localizado, sem conceber tal tipo de ação verdadeiramente espetacular. O mundo não teria esse “marco fundador do século XXI” assim classificado por cronistas e observadores contemporâneos (e que talvez seja confirmado pelos historiadores). Não teria deixado de existir Al Qaeda e atentados terroristas, mas teríamos sido poupados do horror desse marco simbólico do terrorismo fundamentalista da era contemporânea.

Sem esses ataques o mundo teria sido muito diferente? Vejamos, por meio de um exercício de imaginação, como seria, ou como poderia ser, o mundo atual, sem o Onze de Setembro.

O Afeganistão, em primeiro lugar, seguiria por alguns anos mais – não sabemos exatamente quanto tempo mais – com o horrível regime dos talibãs, que continuaria a oprimir as suas mulheres (e os homens também), seguiria desmantelando estátuas e símbolos iconoclastas em sua concepção (como a lamentável destruição dos budas gigantes de Bamian), e continuaria, obviamente, a abrigar bases de treinamento de grupos terroristas ao estilo da Al Qaeda (que continuaria planejando ataques contra alvos americanos e ocidentais, como o do U.S.S. Cole, nas costas do Iêmen, ou das embaixadas em Nairóbi e em outros lugares).

O Paquistão vizinho, em segundo lugar, continuaria abrigando grupos terroristas, que continuariam atacando alvos na Cachemira ocupada ou na própria Índia. Palestinos e israelenses continuariam se matando uns aos outros, em pequenos e grandes atentados. A teocracia iraniana também continuaria oprimindo seus dissidentes e sustentando grupos terroristas e nacionalistas da região, como os do Hamas ou do Hesbollah. A violência anticristã dos fundamentalistas islâmicos do norte da Nigéria continuaria produzindo vítimas entre os habitantes de pequenas aldeias no centro do país. As ditaduras árabes continuariam oprimindo seus povos, na indiferença geral...

Os Balcãs, com exceção do Kossovo, continuariam talvez pacificados pelas forças da OTAN, mas se encaminhariam progressivamente para a integração europeia, como já parecia inevitável. Mas os grupos antiglobalizadores continuariam, na Europa, nos EUA e em outros lugares, a perturbar as reuniões multilaterais, provando, mais uma vez, que não é difícil reunir multidões de ingênuos em torno de teses idiotas que pretendem lutar contra a globalização, como se fosse possível interromper marés, maremotos e furacões...

A Europa e talvez o mundo continuariam, por alguns anos mais, como efetivamente ocorreu, a enfrentar a doença da vaca louca, assim como a Ásia continuaria a se debater com epidemias animais que ocasionalmente ameaçam transmigrar para a espécie humana. Terremotos, maremotos e outros acidentes naturais continuariam a produzir seu lote de enormes desastres humanos nos lugares e países mais desprovidos de condições materiais para minimizar seus efeitos catastróficos.

Ecologistas ingênuos e ambientalistas científicos continuariam a anunciar as catástrofes decorrentes da ação industrial do homem, dizendo que o “fim está próximo” se não nos arrependermos de nossos progressos tecnológicos e não gastarmos algumas centenas de bilhões de dólares em medidas “preventivas” de duvidoso efeito real. O bug do milênio e a paranoia que ele despertou já teriam passado, mas hackers, crackers e outros cyber-terrorists continuariam a trazer preocupações aos órgãos de defesa e de inteligência, assim como aos simples webmasters de sites oficiais de governos e de empresas...

A América Latina continuaria com o seu cortejo de miséria, de desigualdades sociais, de corrupção e, claro, com o seu lote habitual de caudilhos histriônicos e de demagogos candidatos a qualquer coisa, a dilapidar os recursos públicos e a enganar populações de pobres e dependentes. O Haiti, provavelmente, não teria conseguido evitar sua trajetória de desastres naturais e humanos, e continuaria a depender da ajuda humanitária para evitar cenários ainda mais pavorosos.

A África, muito pior, continuaria seu itinerário horroroso de conflitos étnicos, guerras civis, ditadores bilionários e doenças endêmicas, com alguma recuperação aqui e ali, e muita assistência pública internacional, como tem sido o caso no último meio século. Russos e cidadãos das repúblicas da Ásia central ainda teriam remanescentes dos antigos aparatchiks comunistas no poder, sobrevivendo na “maldição do petróleo” e continuando a construir o “modo capitalista-mafioso de produção”, uma modalidade não exatamente prevista por Marx.

O mundo, enfim, não seria muito diferente do que ele foi, na década que passou desde o Onze de Setembro, e do que ele é, hoje, com seu desfile de grandezas e misérias, grandes invenções e pequenos acidentes de percurso, filmes de Hollywood (e, cada vez mais, de Bollywood), prêmios Nobel e prêmios igNobel (alguns imerecidos, numa e noutra categoria), avanços dramáticos nas ciências, nas artes e na tecnologia (certamente iPod, iPhone e iPad), outros recuos não menos dramáticos na ética pública e na gestão governamental.

Ou seja, certos desenvolvimentos naturais, certos processos sociais e alguns eventos contingentes teriam sido inevitáveis, em função da flecha do tempo e da roda impessoal da História. Resta ver, então, o que o mundo NÃO seria, no sentido de poder ter sido melhor do que ele foi, efetivamente, ou, eventualmente, de ter sido mais “ameno” ou simplesmente mais tranquilo, pelo menos potencialmente, na ausência daqueles fatídicos ataques.

Bem, os EUA não teriam atacado o Afeganistão – devidamente autorizados pelo Conselho de Segurança, relembre-se – e provavelmente não teriam tido “escusas” para invadir o Iraque e derrubar Saddam Hussein – não autorizados pelo CSNU, relembre-se – e não estariam envolvidos, com alguns aliados da OTAN, em duas guerras intermináveis, que já provocaram mais vítimas inocentes do que vários atentados terroristas reunidos.

Claro, George Bush talvez tivesse buscado outras escusas, e outros expedientes, para terminar a missão inconclusa de seu pai na primeira guerra do Golfo. Mas provavelmente não teria ocorrido uma revisão radical nas estratégias de segurança dos EUA, como a “doutrina Bush” e a noção de “guerra preventiva”. Guantánamo não teria sido convertida em prisão para “inimigos combatentes”, à margem das convenções multilaterais relativas à guerra e “prisioneiros” de guerra. A própria noção de “guerra ao terror” provavelmente não teria existido, continuando apenas o trabalho habitual das agências de inteligência na prevenção aos ataques terroristas, seguido de uma ou outra ação tópica, de caráter militar, no desmantelamento de bases e eliminação de agentes em alguns hotspots do planeta.

Mais importante, talvez, para os cenários econômicos da globalização capitalista, os EUA não teriam acumulado cinco ou seis trilhões de dólares adicionais de dívida pública e não estariam em tão má postura, como atualmente, para continuar a servir de “locomotiva econômica planetária”, nos momentos de recuperação da sempre esquizofrênica economia mundial.

A ciclotimia habitual do capitalismo continuaria igual, claro, e crises financeiras continuariam a ocorrer com sua regularidade habitual, e nem sequer seríamos poupados dos desastres da bolha imobiliária, da crise financeira de 2008-2009 e da atual crise do endividamento público dos países avançados, que obedecem a uma lógica própria, sem nada dever a qualquer tipo de ataque terrorista de qualquer grupo religioso ou político. O capitalismo financeiro sempre produz seus próprios desastres, com quedas espetaculares dos valores das ações, sem necessidade de derrubada física dos papéis.

O único vínculo entre a crise atual e os ataques terroristas talvez seja o excessivo endividamento americano, mas o enorme buraco provavelmente não existiria, se Bush não tivesse lançado o país, irresponsavelmente, em duas custosas guerras de nation building e de construção de democracias em países já por si problemáticos.

Os EUA, que obtiveram, espontaneamente, a imediata solidariedade de todo o mundo, no imediato seguimento dos ataques – Nous sommes tous américains!, escreveu em letras garrafais o Le Monde de 12 de setembro de 2001 – e que tiveram o apoio na luta contra o terror mesmo de competidores estratégicos, passaram a ser odiados em vários quadrantes, por causa de ações arrogantes, irrefletidas, unilaterais. Obviamente que não se pode combater grupos terroristas apenas com base no diálogo, na cooperação e na coordenação multilateral – que são instâncias ineficientes, ineficazes ou inexistentes, simplesmente –, mas a escolha de uma estratégia de “enfrentamento imperial” dilapidou rapidamente o crédito de confiança que eles tinham conquistado na conjuntura dos ataques.

Não é seguro que uma estratégia de maior coordenação e consulta com aliados habituais e parceiros circunstanciais teria evitado, por exemplo, os ataques terroristas de Madrid e de Londres – para ficar apenas em dois dos mais mortíferos – mas talvez fosse possível obter um ambiente de luta clandestina, nos bastidores e por ações mais de inteligência do que pelo uso da força bruta, que evitasse o antiamericanismo militante que surgiu a partir da invasão do Iraque. Grupos militantes e outros fundamentalistas espalhados ao redor do mundo talvez não tivessem se organizado em torno do rótulo Al Quaeda para perpetrar alguns desses ataques e tentativas de ações terroristas que foram, em parte, estimuladas pela resposta imperial americana.

O próprio conceito de “guerra ao terror” e o caráter punitivo a que esse tipo de enfrentamento conduz superestimam a capacidade dos grupos terroristas e realçam um hipotético status de combatentes, no plano do direito internacional, o que eles obviamente não são, no sentido próprio da palavra. O inteiro arcabouço jurídico internacional da luta contra o terrorismo poderia ter avançado mais, na ausência de uma resposta militar dos EUA aos ataques, ou mais exatamente, na ausência da estratégia americana de “guerra preventiva”, materializada especialmente pela invasão do Iraque. Ditadores e ditaduras foram poupados em certos cenários de “cooperação” na “guerra ao terror”, e muitos deles sobreviveram e sobrevivem ainda hoje, em função das tensões acumuladas nesse ambiente unilateralista criado pelos EUA.

Em qualquer hipótese, é extremamente difícil dizer se o mundo, sem o Onze de Setembro, teria sido muito diferente do que ele foi, pois forças impessoais continuam se movimentando na mesma direção, provocando, talvez, efeitos semelhantes, ou processos similares, aos que ocorreram a partir dos ataques terroristas e das respostas imperiais.

Deve-se, em todo caso, relevar a parte dos fatores contingentes, dos imponderáveis humanos no desenvolvimento que efetivamente tivemos, desde antes do Onze de Setembro. Na ausência de homens como Osama Bin Laden e de George W. Bush – este aqui cercado dos “falcões” do unilateralismo americano, pois o próprio presidente era conceitualmente muito fraco e intelectualmente débil para conceber a sua “guerra ao terror”– provavelmente não teríamos tido nem os ataques do Onze de Setembro, nem as respostas desproporcionais que se seguiram, e que marcaram indelevelmente estes dez anos como uma das mais problemáticas décadas desde o final da Segunda Guerra Mundial.

A vida continua, os impérios se sucedem, o capitalismo se renova, os governos continuam acertando e errando na construção de sociedades mais seguras e mais estáveis, a prosperidade se instala lentamente num mundo de mercados cada vez mais unificados, e é este último fator, finalmente, que vai conduzir, senão à eliminação do terrorismo, pelo menos à atenuação das vocações, ao arrefecimento dos ardores militantes e à diminuição do número de candidatos a ações terroristas.

Quando todos os jovens miseráveis do planeta tiverem sido alçados a uma pobreza aceitável, e passarem a desfrutar dos equivalentes dos iPhones e iPads da atualidade, todos eles devidamente conectados, poderemos ter certeza de que o mundo terá menos ditadores, menos miséria e menos terrorismo. Minha visão é, sim, economicista a este respeito, pois acredito que o espaço das crenças irracionais – e o terrorismo fundamentalista é basicamente uma crença irracional – será diminuído pela educação universal. E não existe melhor antídoto contra esses fenômenos reacionários, e melhor remédio à miséria educacional do que o processo irrestrito da globalização de mercados.

Mais um pouco e eu diria que os antiglobalizadores são os inocentes úteis do terrorismo fundamentalista, mas não vou ofender gratuitamente uma tribo de jovens ingênuos (ainda que animados por velhacos de má-fé e intelectualmente desonestos). Vou apenas torcer para que essas “crenças irracionais” da globalização – aliás, animadas pelas próprias ferramentas da globalização – sejam rapidamente revertidas e colocadas a serviço do único processo que vai diminuir, progressivamente, os fervores terroristas.

Brasília, 10 setembro 2011
Paulo Roberto de Almeida é diplomata, professor universitário e autor de Globalizando.

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