"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



terça-feira, 18 de outubro de 2011

O OCIDENTE ENTRE A GRANDE PEDALADA E A GRANDE FREADA

Há uma nova ordem econômica mundial em formação. O colapso da ordem socialista deserdou 3 bilhões de eurasianos. O mergulho dessa mão de obra e de seus fluxos de poupança nos mercados globais criou simultaneamente uma oportunidade de enriquecimento acelerado e um formidável desafio de integração da economia mundial.

A ampliação dos mercados com a globalização criou um universo econômico em expansão, com a possibilidade de ganhos para todos, mas também trazendo a ilusão de que não haveria dramáticos impactos sobre a antiga ordem ocidental. Os benefícios de um crescimento econômico sincronizado em escala global foram desfrutados no período de 2003 a 2007.
A partir da crise de 2008-2009, porém, as modernas democracias liberais passaram a enfrentar uma guerra mundial por empregos. Percebe-se agora, em 2010-2011, que o mundo mudou – e não voltará a ser o mesmo.

A crise contemporânea resulta, de um lado, do afoito mergulho eurasiano nos mercados globais e, de outro, das tentativas de escape dos ocidentais às exigências de adaptação à nova ordem global. Com o Ocidente em transe dos dois lados do Atlântico, prossegue o comovente espetáculo de uma Grande Sociedade Aberta esvaindo-se, numa sangria desatada por seus próprios excessos financeiros.

A quebradeira imobiliária, as crises bancárias, o mergulho das Bolsas, a contração do crédito, a falência de governos nacionais e o colapso das dívidas soberanas são sintomas desses excessos – que foram muitos e cometidos por longo tempo. Foram devastadores os atentados de financistas anglo-saxões e de políticos social-democratas europeus contra o moderno regime de moeda fiduciária e o financiamento sustentável das redes de solidariedade que alicerçam nossa civilização.

Os americanos insistem em pedalar sistemas financeiros como bicicleta. Tentam evitar com dinheiro barato o fim de um longo ciclo de crescimento. Como se os juros baixos de Ben Bernanke pudessem substituir as inovações de Steve Jobs. O Federal Reserve (Fed), banco central americano, tornou-se um soprador serial de bolhas. Abusa do poder de emitir a moeda reserva da economia mundial. Levanta pontes de papel para a riqueza, inflando e reinflando preços de ativos.
As operações de salvamento de instituições financeiras excessivamente endividadas significam que os contribuintes americanos terão de garantir todo tipo de má aplicação de recursos, socializando perdas e transferindo riscos dos financistas para o governo. O excesso de poupança dos asiáticos financiou por décadas o extravagante consumo dos americanos, seus deficits fiscais e comerciais. Chegou a hora de pagar a conta.

Os europeus querem viver do Estado. Ou seja: à custa dos impostos pagos pelo trabalho alheio. Abusaram de promessas feitas por governos demagógicos, que terão agora de ser bancadas por seus contribuintes. Empreguismo, corporativismo, inchaço burocrático, benefícios e aposentadorias irrealistas engordaram sem limites as despesas orçamentárias no paraíso perdido da social-democracia. E acordam agora trancados na jaula do euro.
Os países da Europa descobrem, frustrados, que não dispõem sequer das alavancas keynesianas para a manutenção dos padrões de vida irrealistas prometidos pelos sociais-democratas. Diarreia monetária como os americanos? Nem pensar. Os alemães controlam a moeda e têm a memória das hiperinflações. Desvalorizações cambiais? Não há como. Não há sequer moedas nacionais. E também não há como expandir os gastos públicos, evangelho do brilhante Keynes em seu manual de combate às crises das sociedades em declínio em busca de paliativos de curto prazo. Pois, afinal, o longo prazo chegou… e estamos todos ainda vivos. Em tempos tão conturbados e extraordinários como os de hoje, diagnosticava Keynes, às portas da Grande Depressão: “O mundo enfrenta a maior catástrofe econômica já ocorrida, a maior ameaça à ordem social existente”. Naquela época, “discutiu-se francamente a possibilidade de que a civilização ocidental tivesse sofrido colapso terminal”, segundo o historiador Arnold Toynbee.

O pavor dos americanos é mergulhar de novo na Grande Depressão. Eles são ainda os mais empreendedores e inovadores representantes da Grande Sociedade Aberta ocidental. Mas são insensatas as doses cavalares de liquidez aplicadas pelo Fed ante a exaustão do mais longo ciclo de crescimento americano. Levaram ao estouro das bolhas, ao colapso das finanças públicas, à descrença nas autoridades pela socialização das perdas, à radicalização entre republicanos e democratas e a uma taxa de desemprego de quase dois dígitos.

Enquanto isso, o Banco Central Europeu (BCE) é criticado por não atuar de forma tão decisiva quanto o Fed para impedir o agravamento de crises de liquidez. A arquitetura de uma moeda supranacional como o euro dificulta operações de “salvamento” no curto prazo. Mas, ao mesmo tempo, impede uma rota de escape inflacionária que drible a disciplina fiscal de longo prazo. Com a austeridade, os alemães desfrutam a mais baixa taxa de desemprego dos últimos 20 anos. A moeda continental sob influência alemã funciona como um regime de metas de inflação e também como uma lei de responsabilidade fiscal entre os países europeus. Não será fácil tributar alemães para financiar gregos.

O sistema monetário americano é o da Grande Pedalada, que infla preços de ativos tentando escapar à insolvência. A inflação mundial perde suas âncoras, e em poucos anos viveremos o pesadelo do baixo crescimento econômico em meio a taxas de inflação crescentes. O sistema monetário europeu é o da Grande Freada, que exige desinflar as dívidas ante a perda de lastro causada pela queda de preço dos ativos. As expectativas inflacionárias permanecem ancoradas, mas as pressões deflacionárias mantêm a sombra das crises bancárias e a ameaça de uma grande recessão no futuro próximo. Os europeus sofrem mais no presente, os americanos sofrerão no futuro.

18 de outubro de 2011
Paulo Guedes
Fonte: revista “Época”

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