"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

MORRE UM DEUS AO NORTE

Leitor me pergunta se não vou escrever sobre a morte do ditador norte-coreano Kim Jong-il.

“Repare como a idéia de deus é simplesmente substituída pela de um "grande líder". Entre as façanhas do grande líder nas quais todo comunista coreano deve acreditar, afirma-se que ele teve o nascimento pressagiado por um duplo arco-íris; começou a andar aos 4 meses e a falar aos 6; e em 3 anos escreveu 1.500 livros e 6 óperas - melhores que as de qualquer Mozart ou Verdi, claro.
Há relatos de observadores internacionais que afirmam que ele e o filho já são adorados como deuses nas escolas da Coréia. Será isto algo fácil de explicar? Quando um país passa pela experiência comunista, ele resolve abraçar um ópio ainda pior, o cristianismo. O caminho mais rápido para o obscurantismo é o comunismo ou o cristianismo?”

Confesso que sobre a morte do grande líder pouco ou nada tenho a dizer. Os jornais estão divulgando amplamente suas loucuras. Nelas não há nada de novo. Não poucos articulistas trabalham com a falsa hipótese de que os comunistas são ateus. Nunca foram. Apenas trocaram o deus cristão por um outro.
No caso, uma deusa, a História. Essa deusa teve uma encarnação humana, Stalin. Tanto que, em 1953, havia comunistas que não acreditavam em sua morte, afinal um deus não pode morrer. A fé absoluta na doutrina marxista era tal que um comunista sempre olhava com piedade para quem quer que dele discordasse: o coitado nada entendia do mundo.
A Parusia proletária era dada como inelutável e a humanidade toda caminhava rumo ao comunismo. Poderíamos encher páginas e páginas listando os pensadores que perceberam este caráter religioso da nova doutrina. Vou ficar em apenas dois, Camus e Kazantzakis, que acompanharam de perto o grande embuste do século passado.

Retomo alguns momentos de minha tese Mensageiros das Fúrias, defendida em 1981 na Université de la Sorbonne Nouvelle:

Escreve Camus, em O Homem Revoltado:

"O ateísmo marxista é absoluto. No entanto, ele restabelece o ser supremo ao nível do homem. A crítica da religião chega a esta doutrina na qual o homem é para o homem o ser supremo. Sob este ângulo, o socialismo é um empreendimento de divinização do homem e adquiriu certas características das religiões tradicionais".

"...o socialismo autoritário, que vai dessacralizar o cristianismo e incorporá-lo a uma Igreja conquistadora".

"O messianismo científico de Marx..."

O proletariado, "por suas dores e lutas, é o Cristo humano que resgata o pecado coletivo da alienação".

"O movimento revolucionário, no final do século XIX e no começo do XX, viveu como os primeiros cristãos, à espera do fim do mundo e da Parusia do Cristo proletário".

"A revolução russa continua só, viva contra seu próprio sistema, longe das portas celestes, com um apocalipse a organizar. A Parusia ainda está longe. A fé está intacta, mas se curva a uma enorme massa de problemas e descobertas que o marxismo não havia previsto. A nova igreja está de novo frente a Galileu: para conservar a fé, ela vai negar o sol e humilhar o homem livre".


Um outro escritor do início de século, que viveu este confuso noivado bem antes que Camus, será ainda mais incisivo nesta aproximação. Em Voyages - Russie, Nikos Kazantzakis lembra como se fez a luz em seu espírito.
Para ele, todos os apóstolos do materialismo davam às questões respostas grosseiras, de uma evidência simplória. Como em todas as religiões, tentavam difundir aquelas respostas tornando-as compreensíveis para a multidão.
Kazantzakis fala da existência, na Rússia, de um exército fanático, implacável, onipotente, constituído de milhões de seres, que tinha em mãos milhões de crianças e as instruía como bem entendia. Esse exército, continua o cretense, tinha seu Evangelho, O Capital. Seu profeta, Lênin, e seus apóstolos fanatizados que pregavam a Boa Nova através do mundo.
Esse exército possuía também seus mártires e heróis, seus dogmas, seus padres apologistas, escolásticos e pregadores, seus sínodos, hierarquia, liturgia e mesmo a excomunhão: "somos contemporâneos deste grande momento em que nasce uma nova religião".

Ou seja, não estamos diante de ateus e sim de crentes que cultuam um novo deus. Não é pois de espantar que no passado de quase todos os antigos marxistas temos um cristão que renegou a própria religião. Tampouco causa espécie que o Partido Comunista sempre tenha sido forte em países católicos. A Rússia, é bom lembrar, era um dos maiores países católicos do mundo nos albores do século passado.

Que mais não seja, em O Idiota, através da boca do príncipe Mychkine, o ortodoxo Dostoievski há muito previra que o catolicismo romano originaria um socialismo ateu. Ateu em relação ao Deus dos céus e dos infernos, mas religioso em relação ao homem enfim divinizado. Morto o Deus judaico-cristão, deus nenhum outro à vista para sucedê-lo, o homem ocidental, órfão e carente de fé, irá criar um deus vivo.

Os russos, excitados pelo messianismo chauvinista e anti-semita de Dostoievski, já andavam procurando o seu. Por volta de 1850, Vladimir Soloviev erige o movimento revolucionário "Os Buscadores de Deus", que acaba não achando nada. Mas a semente está lançada. Será após o fracasso da revolução de 1905, que Maxim Gorki e Lunatcharski (futuro escritor oficial da era staliniana) fundarão o movimento "Os Construtores de Deus".

Gorki, que julgava a mentira necessária contra as "verdades nefastas", diz em uma carta de 1908, dirigida a Gregor Alexinski, que o "socialismo deve se transformar em culto". Em A Mãe, escrito nos Estados Unidos em 1906, um militante diz aos operários em cortejo: "nossa procissão agora marcha em nome de um deus novo".
Em uma novela de 1908, A Confissão, o incipiente deus já ensaia seus poderes: à passagem de uma manifestação de operários, um paralítico deitado em uma maca se levanta e anda. E antes de morrer envenenado por seu "Deus"), Gorki afirma: "Lá onde reina o proletariado não há lugar para uma querela entre o saber e a fé, pois a fé neste caso é o resultado do conhecimento pelo homem do poder da razão".

Os tempos estão maduros para a emergência da nova fé. Marx e Engels fornecem o Livro, pois toda religião que se preze se fundamentará em um livro. Os revolucionários de 17 conquistam um território. Só faltava o Deus feito carne. Em Gori, na Geórgia, nasce o Menino. É sintomático o maravilhamento de um Graciliano Ramos quando visita a casa onde nasceu Stalin: “Eu vi o berço do Menino”.

Mao também foi cultuado como deus. Kim Jong-il exagerou na dose. Mas numa sociedade pequena e fechada como a Coréia do Norte, onde até hoje estrangeiros não podem entrar com celular, tudo é possível. Tenho visto fotos de multidões chorando pela morte do deus. São sintomáticas estas fotos, as pessoas parecem chorar em ordem unida, todos com a mão esquerda sobre a boca. Pelo jeito, o grande líder regulamentou até mesmo o pranto em seu país. Nada vejo de espantoso que um duplo arco-íris tenha anunciado seu nascimento. Se o Cristo nasceu de uma virgem e uma estrela o anunciou, duplo arco-íris é uma homenagem até modesta ao novo deus ao norte.

Mas o leitor quer saber qual o caminho mais rápido para o obscurantismo, se o comunismo ou o cristianismo. O mais rápido, não sei. Mas o mais perverso é sem dúvida o cristianismo. O comunismo não chegou a emplacar um século. O cristianismo vige há dois milênios.

janer cristaldo

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