"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



sábado, 25 de fevereiro de 2012

A PRIVATARIA DOS INCOERENTES

Diz o saber popular que nada como um dia depois do outro. Abrir a boca ou usar a virgindade do papel em branco para lançar acusações levianas ou oportunistas é muito fácil; aliás, facílimo, coisa que até um tolo é capaz de fazer. O bom da vida é que suas sinuosidades incandescentes rompem com a linearidade do discurso, cobrando coerência e retidão para aquilo que é falado ao vento. O homem público tem que cuidar do que diz; uma vez dito, virou pedra em letras de bronze. É claro que a todos é dada a possibilidade de evoluir, avançar em ideias e rever conceitos. Mas, na política, a retomada ou mudança de posicionamentos passados deve ser publicamente justificada, sob pena de tornar a palavra em mero joguete dos interesses momentâneos.

Pois, então, que somos surpreendidos com uma notícia, no mínimo, sui generis: o governo do PT, incansável crítico e combatente voraz da “privataria tucana”, concedeu à iniciativa privada três dos principais aeroportos do país (Guarulhos, Brasília e Viracopos) pela assustadora quantia de R$ 24,5 bilhões. O valor, notadamente, não é de bagatela; a cifra impressiona até a mais preparada e superior personalidade. Visto isso, será que os tempos mudaram, trazendo consigo novas convicções e posturas? Será que bandeiras políticas históricas, sempre exaltadas em alto estandarte, poderiam ser silenciosamente baixadas ao sol do novo ano? Seria isso coerente e politicamente elevado?

Bem, as perguntas poderiam prosseguir ao infinito dos mares, mas o que importa para a vida vivida são as soluções efetivas. No caso, não posso dizer que a mudança foi boa ou má; não tenho competência institucional nem legitimidade divina para emitir tais juízos de valor; mas, sem dúvida, algo mudou no sentido literal da expressão. E mudou porque aquilo que era apontado como fato odioso se transformou em política de governo. Sem cortinas, aqueles que condenavam a entrega do patrimônio nacional, agora, quando investidos no poder, também foram mordidos pela mosca do tal “entreguismo estatal”. Ou será que a privataria atual deixou de ser entreguismo e virou “concessão”, “leilão” ou outro termo bonitinho para justificar o injustificável?

Frisa-se que os méritos ou deméritos da medida estão fora da presente análise. Até mesmo porque, se houve a privatização dos aeroportos, é de supor que a medida foi implementada por ser positiva e necessária; seria impensável raciocinar de forma diversa. Logo, a discussão aqui é de outra natureza; diz respeito com a necessária coerência interna do discurso político de envergadura. Afinal, é a firmeza da palavra que garante a crença da soberania popular e sua inerente confiança na autoridade das instituições republicanas. Já foi dito que ideias não são metais que se fundem, assim como lideranças não são construídas com metais maleáveis. Na verdade, é difícil falar em líderes ou em formação de lideranças em uma sociedade incolor, cuja nota alta tem sido uma preocupante apatia homogênea; os que se atrevem a respeitar a individualidade do seu ser e não se curvam para os discursos e esquemas de planificação mercantil do indivíduo são vistos como reacionários ou conservadores de plantão. Nesse ambiente servil, a sociedade vai perdendo sua identidade crítica para aceitar, calada, as mais absurdas estultices.

Não há dúvida de que mudança faz parte da marcha cambiante da vida. Portanto, se o PT mudou e passou a vestir um vistoso bico tucano, é importante que seja dito, que seja explicado, que seja esclarecido. Até mesmo porque é inaceitável pensar que o povo não está vendo o que está acontecendo. E qual seria a diferença entre os tipos e estilos de “privataria”? Ora, uma é feita de estrela, enquanto a outra segue o voo dos pássaros. Talvez uma seja mais coerente do que a outra, pois alguns parecem ter esquecido o que diziam lá atrás. Infelizmente, em um país de memória curta, todos, salvo honrosas exceções, cintilam no céu da incoerência política perante uma sociedade descrente e passiva. Aliás, quanto vale a privataria da consciência política dos brasileiros?

24 de fevereiro de 2012
Sebastião Ventura Pereira da Paixão Jr

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