"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



segunda-feira, 13 de agosto de 2012

ERROS DE CORREÇÃO

    
          Artigos - Conservadorismo 
stovebookEm sua autobiografia, Bertrand Russell menciona as várias pessoas brilhantes que ele conheceu em Cambridge no começo do século XX. Mas uma dessas pessoas, John Maynard Keynes, deixou nele uma impressão única de força intelectual. “O intelecto de Keynes foi o mais claro e afiado que eu já conheci. Quando eu discuti com ele, eu senti minha vida em minhas mãos e dificilmente eu emergia sem me sentir uma espécie de tolo”.[1]

Esse é de fato um testemunho impressionante. Foi confirmado em algo dito por Keynes sobre Russell no ensaio “My Early Beliefs” onde ele versou sobre o círculo Cambridge-Bloomsbury que ambos pertenceram no início do século XX.

Recordando esses acontecimentos de trinta e poucos anos antes, Keynes vê com desdém a superficialidade das ideias políticas e psicológicas desse círculo. Mas as ideias políticas de Russell, diz ele, destacavam-se pela tolice, mesmo para o nível daquele círculo. “Bertie em particular sustentou simultaneamente um par de opiniões ridiculamente incompatíveis. Ele declarou que as relações humanas eram exercidas de uma maneira irracional, mas que o remédio era muito simples e fácil, uma vez que tudo o que tínhamos a fazer era levá-las de forma racional”.[2]

Duas fáceis sentenças, e ainda assim o quão fatal elas são a qualquer crença na sabedoria política de Russell, ou mesmo sobre seu próprio juízo! Elas são como uma investida de baioneta através do coração e uma puxada de volta. Russell não era apenas um tolo em Helsinki em 1967 “julgando” a América por seus “crimes de guerra” no Vietnã: ele era um tolo já em 1903.

Lógicos profissionais podem perguntar – eu sei de alguém que certamente faria essa pergunta – se as duas opiniões que Keynes atribui a Russell são incompatíveis, estritamente falando. Bem, esse tipo de coisa é o sustento dos lógicos e seria desagradável tentar privá-los disso. Vamos chamar a conjunção das duas opiniões de Russell de absurdas em vez de incompatíveis, se isso nos comprar o silêncio da descendência russelliana, ou seja, os lógicos contemporâneos. E absurda, pelo menos, essa conjunção é.

Mas a absurdidade é algo que está longe de ser peculiar a Russell. Ela afligiu inúmeras pessoas também, e seu tipo favorito de vítima são pessoas como Russell: inteligentes, educadas e “interessadas”. Essa é, de fato, a absurdidade característica do utopismo que tomou conta do Iluminismo do século XVIII

O passado, de acordo com o utopismo, é indizivelmente obscuro e, o futuro, indizivelmente brilhante. Como pode ser isso? A menos que se tenha operado um milagre, deve haver alguma causa natural (ou mais de uma) digna de se verificar. Se o passado é tão uniformemente obscuro, como pode ele ter nos trazido às “praias de luminosidade”? Não é bom apontarmos em um evento ou pessoa em particular: Newton, Lutero, Colombo ou a invenção da impressão. Quanto mais se sabe sobre quaisquer tais aparentes singularidades, mais elas se fundem insensivelmente em seu pano de fundo histórico. O utopismo, para justificar sua própria destrutibilidade, teve de pintar o passado como algo ruim e o futuro como algo bom, de modo a criar um mistério insolúvel sobre como um pode fazer nascer o outro.

Condorcet e Godwin – para pegar dois dos mais típicos utopistas do Iluminismo – estavam totalmente desprotegidos em face dessa simples, porém fundamental, objeção. Eles estavam tão expostos como Russell esteve à devastadora exprobração de Keynes. Eles simplesmente não tinham explicação onde eles mais precisavam: como da escuridão surge a luz. Qualquer explicação teria sido melhor que nenhuma. Por exemplo, eles poderiam dizer que Deus, em um determinado tempo, simplesmente mudou o coração dos homens para melhor. Essa não teria sido uma boa explicação, é claro, e esse é exatamente o tipo de coisa ao qual o Iluminismo reivindica ter superado. Mas ainda assim teria sido melhor que nada.

A esse respeito, os utopistas da geração seguinte, tais como Saint-Simon e Comte, representaram pouco avanço. Marx, porém, em seu favor, ofereceu uma explicação em termos naturalísticos sobre a transição da escuridão para a luz. Esse é um resultado, diz ele, de causas econômicas, que vêm se auto formulando independentemente da crença ou desejo de qualquer um; e as causas econômicas instaurarão a sociedade sem classes com a mesma inevitabilidade que instauraram as sociedades feudais e, mais tarde, as burguesas.

Não precisa nem ser dito que a teoria de Marx não sobreviveria cinco minutos a um exame minucioso. Sua distinção entre a “base” econômica e a “superestrutura” ideológica simplesmente não se mantém, e sua ideia de “relações dos meios de produção e relações produtivas” é embaraçosamente vaga. Mas Marx teve o grande mérito de perceber que seus predecessores utopistas e rivais não tinham nenhum tipo de mecanismo a sugerir.
Eles apenas pensaram, como Russell, que seria muito mais agradável se tudo fosse muito mais agradável, e que não há nada, apesar de tudo, que possa nos impedir de fazer tudo ficar mais agradável, pois tudo o que precisamos é sermos pessoas mais agradáveis, racionais, bondosas, etc. Isto é, com certeza, uma lógica dos sonhos e uma religião pueril. Em O Peregrino, por exemplo, o Cristão, depois de estar muito tempo encarcerado no Castelo da Dúvida do Grande Desespero, acorda de manhã e de repente descobre que ele tinha as chaves da prisão em seu bolso o tempo todo.
***
As observações anteriores têm aplicação tanto contemporânea quanto histórica, pois o utopismo do Iluminismo é agora a religião inoficial de todos, ou quase todos, governantes do mundo livre.

Todo mundo sabe quem eram os verdadeiros governantes do mundo livre vinte anos atrás: eram aqueles estudantes e professores das universidades americanas lutando pela retirada das tropas de seu país do Vietnã. Observadores superficiais imaginam que as coisas são diferentes agora: que esses governantes foram reduzidos a um número muito menor e mais impotente. Não foram. A catástrofe do Vietnã não foi devido a qualquer derrota ou deslealdade das Forças Armadas, mas a uma enorme revolução no sentimento de estar em casa: uma revolução comparável em escala àquela que dividiu a Era do Jazz do mundo pré-1914. Revoluções em sentimento nessa escala são mudanças tão irreversíveis quanto às mudanças nas placas tectônicas dos continentes, e essas últimas certamente não reverteram suas mudanças.

Em 1987, como em 1967, os governantes do mundo livre são os professores, graduados e estudantes das moralmente – e intelectualmente – universidades perniciosas, que leem e escrevem o New York Times, o The Guardian na Grã Bretanha, e o Sydney Morning Herald na Austrália, e quem controla os conteúdos veiculados na televisão. Muitas dessas pessoas desprezam esses órgãos de publicidade como sendo incuravelmente reacionários. Ainda assim, tanto eles como esses órgãos de publicidade são de fato da mesma religião.

A substância dessa religião é a seguinte: o mundo – ou melhor, o mundo livre, pois essa religião nada tem a dizer sobre os demais – é uma grande e infectada massa de erros: erros contra as populações nativas, minorias raciais, mulheres, crianças, animais, meio ambiente, etc. todos eles levados a cabo por homens, brancos, pais, empresários, etc.; erros profundos e imemoriais, inevitáveis no passado, sem dúvida, mas injustificáveis agora. Todos esses erros devem ser corrigidos agora. Nós estamos livres para fazer isso e, afinal, os erros não devem ser corrigidos? De fato (tal como na lógica utopista), quanto mais inevitável um erro foi no passado, mais imperativa é a necessidade de corrigi-lo no presente.

Você pode ver o precipício metafísico implicado nessa religião, entre o passado de um lado e o presente e o futuro de outro; em particular entre todos os seres humanos do passado e Nós, os iluminados do presente. Eles estavam sujeitos à Necessidade, mas Nós Somos Livres. Eles viveram sob a Natureza, Nós vivemos sob a Graça. Eles não eram agentes, mas meros pacientes, enquanto Nós somos puros agentes e nem um pouco pacientes. Eles, na escuridão, não podiam fazer nada além das coisas erradas que fizeram, mas Nós, os iluminados, somos livres para corrigir esses erros.

Essa absurdidade do utopismo é apenas, claro, a absurdidade defendida por um Clarence Darrow em larga escala: “Meritíssimo, quando meu cliente atirou no bancário, ele era apenas uma incurável vítima das suas circunstâncias, seu meio opressor etc., exatamente tão desprovido de sorte quanto o bancário foi. Mas você e Eu, Meritíssimo, não somos: nós somos livres e devemos exercer essa liberdade não punindo meu cliente, mas absolvendo-o e reformando-o”.

O que se pode dizer sobre uma religião absurda, exceto que ela é absurda? No final das contas, os pais que trouxeram ao mundo o ladrão de bancos também tiveram pais, então se seu rebento não era um agente livre, tampouco eles poderiam ser. Se os ladrões de banco são pobres vítimas das circunstâncias, então também são os juízes que os punirem; mas se os juízes são livres, então também são os ladrões de banco. Todos os seres humanos, em qualquer tempo, vivem sob a mesma Natureza ou sob a mesma Graça. Imaginar que para Eles havia Necessidade, e para Nós agora existe a Liberdade, é dividir a vida humana e a história em duas partes completamente descontinuadas: uma divisão onde nada se corresponde, ou poderia se corresponder, na realidade.

Mas essa religião, diferente das outras, é muito mais perigosa que absurda. Pois ela licencia seus devotos, ou na verdade requer deles, a satisfazer a “fome e sede de justiça”, independente se as possibilidades de suas ações possam ser imprevisíveis ou vierem a ter consequências indesejadas. Na verdade, ela faz da imprudência uma virtude: fiat iustitia ruat caelum, “Que seja feita a justiça mesmo que caiam os céus”. Ainda uma das lições mais certas da nossa vida é que nas nossas ações corriqueiramente ocorrem imprevistos e consequências indesejadas, mesmo – ou especialmente – quando elas são bem intencionadas.

13 de agosto de 2012
David Stove

Notas:
[1] Bertrand Russell, The Autobiography of Bertrand Russell, Vol. 1: 1872-1914, Boston, Toronto: Little, Brown and Co., 1967, p. 97.
[2] John Maynard Keynes, Essays and Sketches in Biography (1951), New York: Meridian Books, 1956, p. 255.

Sobre David Stove (1927-1994), v. Who was David Stove?, por Roger Kimball.


Leia também O Argumento de Colombo
e Por que você deveria ser um conservador, que fazem parte da obra On Enlightment.
Agradecimentos a Andrew Irvine (editor dos livros supracitados) e James Franklin (executor literário de David Stove), que permitiram a tradução e divulgação destes ensaios.


Tradução: Leonildo Trombela Junior

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