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Profissional de múltiplas atividades – conferencista, professor, consultor, colunista de jornal, produtor de TV – Roberto DaMatta é acima de tudo antropólogo. Estudioso do Brasil, de seus dilemas e de suas contradições, mas também de seu potencial e de suas soluções, DaMatta não se afasta de seu país mesmo quando desenvolve outros temas. A comparação com o Brasil é inevitável.
DaMatta revela o Brasil, os brasileiros e sua cultura através de suas festas populares, manifestações religiosas, literatura e arte, desfiles carnavalescos e paradas militares, leis e regras (quando respeitadas e quando desobedecidas), costumes e esportes. Daí surge um Brasil complexo, que não se submete a uma fórmula ou esquema único.
Para DaMatta, o Brasil é tão diversificado como diversificados são os rituais, conjunto de práticas consagradas pelo uso ou pelas normas, a que os brasileiros se entregam. Todos esses temas são abordados em sua relação com duas espécies de sujeito, o indivíduo e a pessoa, e situados em dois tipos de espaço social, a casa e a rua.
A distinção entre indivíduo e pessoa é bem demarcada em seu original trabalho sobre a conhecida e ameaçadora pergunta: você sabe com quem está falando?. Os seres humanos que se sentem autorizados a se dirigir dessa forma aos outros, colocam-se na posição de pessoas: são titulares de direito, são alguém no contexto social. Os seres humanos a quem tal pergunta é dirigida são, para as pessoas, meros indivíduos, mais um na multidão, um número.
A rua é o espaço público. Como é de todos, não é de ninguém, logo, tem-se ali um espaço hostil onde não valem as leis e os princípios éticos, a não ser sob a vigilância da autoridade. A convivência na rua depende de uma negociação constante, entre iguais e desiguais. A casa, considerada num sentido amplo, é o espaço privado por excelência, onde estão "os nossos", que devem ser protegidos e favorecidos, e aqui DaMatta retoma e atualiza o conceito de homem cordial de Sérgio Buarque de Holanda.
Com 18 livros lançados, entre os quais o famoso "Carnavais, malandros e heróis", de 1979, o antropólogo é um dos grandes debatedores da situação nacional. Além de sua obra em livro, DaMatta tem centenas de artigos e ensaios em revistas científicas e coletâneas, bem como verbetes em dicionários e enciclopédias publicados no Brasil e no exterior a partir de 1963. Mantém uma coluna semanal em O Globo, do Rio de Janeiro. Na entrevista a seguir, ele discorre de Lula a Marx, com uma grande capacidade de reflexão.
Panorama Mercantil - O senhor foi professor por quase duas décadas na Universidade de Notre Dame, nos EUA. Com essa experiência adquirida, poderia nos dizer como anda a qualidade do ensino nas universidades brasileiras na comparação com as norte-americanas?
Roberto DaMatta -Nas universidades americanas nas quais estudei e ensinei (Harvard, Wisconsin-Madison, Califórnia-Berkeley e Notre Dame), a comparação fica um tanto quanto fora de ordem, porque não se pode comparar com devido bom-senso uma Harvard (fundada no século 16 e com um fundo de bilhões de dólares) com uma pequena universidade Federal ou estadual do Brasil. Essas universidades nas quais os professores são funcionários públicos e não há promoção por obra ou mérito, mas por tempo de serviço e idade, numa negação absoluta da boa meritocracia universitária estabelecida na Idade Média, na Europa que produziu um Lutero, um Newton e, nos Estados Unidos, a modernidade tecnológica na qual vivemos bem como os ideais de democracia aplicados na política e na sociedade. Mas mesmo assim, é preciso ressaltar que em certos campos vamos bem, e temos centros que se igualam aos seus irmãos no exterior. Refiro-me especialmente ao campo das Ciências Sociais e da Literatura com os seus devidos descontos.
Panorama - O senhor disse que a corrupção no Brasil é um mal que tem raízes muito antigas. Então isso quer dizer que a corrupção infelizmente sempre existirá, de uma forma ou de outra?
DaMatta - Em todo grupo humano há corrupção. E, além de antiga, existe ao lado da dimensão transparente, clara e honesta do ser humano. Sobretudo quando ele não é mais governado somente pela religião mas igualmente pelo "estado democrático de direito", como se diz aqui no Brasil, e, assim, por normas impessoais, escritas e que devem valer para todos. No Brasil, a malandragem, a esperteza relativamente aos bens e cargos públicos, vem de longe, e o nosso problema não é saber desse fato, mas não tomar as providências devidas, reagindo a ele de modo proativo. Estou certo que a luta entre o bem e o mal sempre vai existir nos universos humanos. Sem ela não existiria consciência humana, que é feita de oposições definidas no combate entre o que sabemos claramente e o que nos é ocultado, seja pelo destino, pela história e pelas forças que atuam no nosso inconsciente. As próprias relações sociais promovem o "mal" ou o mal-entendido, mesmo quando queremos que elas sejam boas. Agora, não punir e aceitar o mal como um valor é uma outra coisa! No nosso caso, precisamos começar tornando todos iguais perante a lei: inclusive e sobretudo os governantes.
Panorama - Muitos dizem que o entrave para o Brasil progredir de fato é depender do Estado em suas ações. O senhor concorda com essa afirmação?
DaMatta - Eu diria que a resposta passa pelo papel do Estado. Temos atualmente um Estado que não administra. Ele gerencia os seus aliados e aristocratiza seus agentes ou funcionários. A rigor não é um Estado republicano, mas monárquico-escravocrata, como, aliás, não poderia deixar de ser, já que a monarquia dos Bragança foi seu modelo e sua inspiração cultural e social. Os escravos não existem mais formalmente, mas os funcionários públicos, dependendo do segmento, são nobres. Entram no Estado e dele jamais saem, como ocorre com as grandes famílias patriarcais descritas por Gilberto Freyre. É uma vergonha, como se dizia. Agora, dizer isso não significa liquidar o Estado. De modo algum. O Estado precisa, isso sim, cumprir seu papel de gerenciar oportunidades e de criar igualdade de modo perene, dirimindo injustiças antigas e modernas. Em suma, é preciso democratizar também o Estado.
Panorama - Alguns políticos que entrevistamos recentemente nos disseram que Lula foi uma fraude. O senhor concorda?
DaMatta - Eu acho que ele foi a mais importante experiência do sistema político brasileiro, precisamente porque ajudou a liquidar com a teoria que ligava o Estado à mudança social e a um ideal de justiça e honestidade. Lula demonstra que há um longo caminho a percorrer, porque seu governo foi o que mais se atuou com mendacidade no Brasil. Ele não é uma fraude, é uma prova concreta de que as utopias enganam.
Panorama - Afinal, esquerda e direita ainda existem no Brasil?
DaMatta - Existem. A "esquerda" diz respeito a quem quer mudar sem medir consequências e imaginando que a sociedade não exerce nenhum papel no processo de transformação. Basta um decreto ou uma lei e tudo muda. A "direita" sabe do volume e do peso das forças sociais em jogo e das suas reações. Falar em mudança é mais fácil do que efetivá-las sem despotismos ou força. Hoje, felizmente, há um enorme ponto de encontro entre esses lados e todos têm consciência do problema e do ideal que é juntar o lado positivo da esquerda com o da direita. Ademais, pode-se ser de direita para certas coisas (por exemplo, para prender, fuzilar e exilar os inimigos da democracia) e ser de esquerda para outras (por exemplo: fornecer escolas impecáveis para todos).
Panorama - O PT ainda pode ser considerado um partido de esquerda ou isso se esfacela quando a legenda se junta a figuras como José Sarney e Paulo Maluf?
DaMatta - Não conheço bem o PT. Conheço e quero bem a muitos petistas. Penso que devemos diferenciar o PT do lulismo. Mas, por outro lado, o lulismo é o petismo na sua prática não antevista pelos seus fundadores: o exercício do poder federal. Nessa prática cujo lema sempre é deter o poder e ampliá-lo, as alianças são um ponto chave. E, se os meios justificam os fins que jamais chegam e não são ditos claramente, o Rei está sempre certo e ele faz as alianças com quem quer, inclusive com o Diabo (que tem mais caráter do que muitos políticos brasileiros), o que desmancha, adia ou destrói as propostas mais sérias ou ideológico-religiosas do partido. E aí voltamos ao ponto de partida e o PT passa a ser um partido normal, com bons e maus momentos, como todos os outros.
Panorama - O senhor disse certa vez que nós, de forma geral, temos uma verdadeira alergia ao igualitarismo, segundo o qual todos dão a largada do mesmo ponto e cada um chega a um determinado lugar dependendo do seu esforço. Brasileiro não gosta de uma palavrinha mágica chamada 'meritocracia'?
DaMatta - Temos uma formação histórica aristocrática e burocrática no sentido de garantir desigualdades. Toda a nossa história até 1889 foi monárquica, e os padrões de conduta e relacionamento de nossas elites e do sistema em geral era hierarquizado como tenho dito na minha obra. Mas não ficamos somente nisso. Adotamos a igualdade republicana e a levamos a sério em muitos momentos. Temos, então, um movimento de modernização semelhante ao de outros sistemas: um diálogo quase sempre tenso e conflituoso entre um ideal do 'cada coisa em seu lugar' e o ideal da 'igualdade de todos perante leis universais'. Reconheço que a fórmula é simples demais, mas a caricatura ajuda a definir o caráter. E o nosso cerne contém isso que chamei de dilema brasileiro em "Carnavais, malandros e heróis", que é um livro de 1979 e, portanto, velho. Todos os estudos sobre meritocracia dizem o seguinte: de boca, todos a desejam; na prática, todos a consideram um veneno, porque ela estimula a competição. Agora, por que a competição é lida como negativa no Brasil? Porque, digo eu, separamos recursos públicos (da rua) e íntimos (casa) de modo radical. Não temos uma tradição de participação política local. Nossa tendência é entregar tudo ao Estado ou ao governo. Não conseguimos, exceto no esporte, compreender como a meritocracia é uma fonte positiva de inovação e de igualdade.
Panorama - Por gentileza, nos explique o porquê de no Brasil ainda termos a ridícula e infeliz frase: "Você sabe com quem está falando?". É só em nosso país ou ela também é dita fora do Brasil?
DaMatta - Leia o meu livro "Carnavais, malandros e heróis", onde explico a expressão como um rito autoritário, usado em situações igualitárias e radicais, para revelar, dentro do aparente cidadão comum, o nobre (filho de Sicrano ou marido de Fulana, etc...). Trata-se do dilema entre ser igual ou distinguir-se para cima.
Panorama - O senhor fez uma pesquisa sobre o comportamento do brasileiro no trânsito, na qual diz que a igualdade poderia solucionar os problemas nesse setor. Como conseguir essa igualdade?
DaMatta - Por meio de debates, entrevistas, seminários e campanhas. O Brasil precisa de uma campanha para a igualdade. Ele precisa livrar-se de uma carga aristocrática que permeia o fundo do nosso sistema social.
Panorama - O senhor acredita que a religião é o ópio do povo, como disse Karl Marx?
DaMatta - Sem ópio não haveria humanidade. Marx acreditava que a razão levava a uma vida livre de outras crenças, inclusive as religiosas, e não tinha paciência com desvios ou semi-soluções para os problemas da sociedade, centrados na luta de classe. Penso que Marx era tão religioso quanto os religiosos que ele criticava. Penso que hoje temos o uso da razão tanto quanto tememos sistemas de crenças absolutos.
Panorama - A descriminalização das drogas é uma saída benéfica para o país?
DaMatta - Sem dúvida. A questão é como realizar isso num país continental, com a Polícia e com as demais autoridades brasileiras.
Panorama - "Brasil, o país do futuro", essa frase está com os dias contados?
DaMatta - A frase não tem mais sentido num mundo que não se vê mais com um futuro. E num Brasil cansado de promessas.
31 de agosto de 2012
Por Eder Fonseca, do Panorama Mercantil
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