"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



domingo, 2 de setembro de 2012

COMÉDIA INVOLUNTÁRIA - OS DELÍRIOS DA REVISTA "EGO CAPITAL" SOBRE O MENSALÃO

 
Confesso que fui fazer uma coisa feia, que não recomendo a ninguém: comprar cigarro. E vi lá na banca de jornais o semanário sobre o estado mental de Mino Carta, a tal revista “Ego Capital”.
 
Na capa, uma formulação intrigante, abaixo da foto de alguns mensaleiros: “O que vem agora?”. Sim, dei a minha contribuição e comprei um exemplar. Sou católico, como sabem. Dou esmolas, ainda que digam que isso não é bom e não contribui para que o necessitado aprenda a pescar.
Mas “Ego” já passou da idade de aprender algumas coisas e é teimoso demais para esquecer outras tantas. Então depositei na caixinha os meus R$ 9,90.
 
Não fui enganado porque sabia que a revista não diria, como não disse, “o que vem agora”. Limitou-se a repetir uma síntese vesga do julgamento e a atacar os seus desafetos de sempre — Gilmar Mendes, por exemplo.
O duro foi a bronca de Dona Reinalda: “Gastou dinheiro com droga?”.
E eu: “Pô, eu nunca prometi parar de fumar, você sabe!”.
E ela: “Eu não estou falando dos seus hollywoods, embora também sejam uma droga!”.
Entendi.
 
Assim como não lhes recomendo cigarro, também não recomendo a “Ego Capital”… Que coisa impressionante aquilo! Todo mundo sabe que opino muito, não é? Sobre um monte de assuntos.
 
Alguns se irritam com isso. Um professor de meteorologia, ou algo assim, ficou furioso uma vez porque escrevi sobre um tal “tornado extratropical” que me parecia ser um furacão… Nunca vi ninguém tão apaixonado pelos ventos. Fiquei quase comovido.
Mas volto. Opino muito, sim. Mas tenho um compromisso com os fatos. Sem eles, qual a salvação? Como eu poderia me atrever a ser judicioso sobre o que não aconteceu, tentando trapacear com o leitor?
 
Pois é… Na revista “Ego Capital”, leio sobre o mensalão esta maravilha, que vai em vermelho:

“Os ministros só podem abrir mão do ato de ofício para condenar Dirceu se resolverem revogar o Código Penal”, analisa uma fonte do tribunal. Detalhe: em seu relatório de acusação, o procurador-geral, Roberto Gurgel, admitiu a falta de evidências da participação do ex-ministro no esquema.
 
A hipótese levantada por Luiz Fux em seu voto, de que o ônus da prova também caberia à defesa, causou furor entre os advogados de defesa.
“Os ministros caminham numa linha de profunda flexibilização, tanto do Direito Penal quanto do processo penal, afastando garantias caríssimas à própria democracia”, criticou Alberto Zacharias Toron, defensor de [João Paulo Cunha] Cunha.
 
Voltei

Muito bem! Pessoas podem ser favoráveis à condenação; outras podem ser contrárias. Num grupo e noutro, as intelectualmente honestas lidam com os fatos. Então vamos a eles.
Um dos crimes de que Dirceu é acusado é “corrupção passiva”, artigo 333 do Código Penal, cuja redação é esta:

“Oferecer ou prometer vantagem indevida a funcionário público, para determiná-lo a praticar, omitir ou retardar ato de ofício:

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e multa.

Parágrafo único – A pena é aumentada de um terço, se, em razão da vantagem ou promessa, o funcionário retarda ou omite ato de ofício, ou o pratica infringindo dever funcional.
 
Para começo de conversa, Dirceu, ele mesmo, não tem de praticar, ou deixar de praticar, ato de ofício nenhum para consumar o crime. O ato, se praticado, seria por outro — e, nesse caso, basta que exista a perspectiva!
A prática efetiva de tal ato, como está explícito, é um agravante. Dirceu é acusado também de formação de quadrilha. Nesse caso, diga-se, nem mesmo se discute a questão de ato de ofício. A redação do Artigo 288 é esta:

“Art. 288 – Associarem-se mais de três pessoas, em quadrilha ou bando, para o fim de cometer crimes:

Parágrafo único – A pena aplica-se em dobro, se a quadrilha ou bando é armado.”
 
Huuummm… Se há coisa que o STF tem demonstrado até agora é a associação de mais de três pessoas para cometer crime, não é mesmo? Mas sigamos com a “Ego Capital”:
 
Mentira sobre a Procuradoria

Escreve o semanário: “Em seu relatório de acusação, o procurador-geral, Roberto Gurgel. admitiu a falta de evidências da participação do ex-ministro no esquema”. É UMA MENTIRA DESLAVADA. O que não falta ao relatório de Gurgel são as “evidências”, os “indícios”, da participação de José Dirceu. E lembro suas palavras:

“José Dirceu, sendo líder do grupo, exerceu papel de fundamental importância para o sucesso do esquema ilícito. Sem risco de cometer injustiça, foi a principal figura de todo o apurado. Foi José Dirceu que formatou sistema ilícito da formação da base aliada mediante pagamento ilícito. [...] Comandou os demais integrantes para a consecução de seus objetivos.”
Mentira sobre Luiz Fux

Escreve a “Ego Capital”:

A hipótese levantada por Luiz Fux em seu voto, de que o ônus da prova também caberia à defesa, causou furor entre os advogados de defesa. “Os ministros caminham numa linha de profunda flexibilização, tanto do Direito Penal quanto do processo penal, afastando garantias caríssimas à própria democracia”, criticou Alberto Zacharias Toron, defensor de [João Paulo] Cunha.
 
Luiz Fux jamais disse no tribunal que o ônus da prova cabe à defesa, e Toron, que é um dos pré-candidatos à Presidência da OAB-SP, com o apoio do PT e de Márcio Thomaz Bastos, poderia ter evitado esse mico.
 
Fux apenas citou o Artigo 156 do Código de Processo Penal, a saber:

Art. 156. A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado ao juiz de ofício: (Alterado pela L-011.690-2008)

I – ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida; (Acrescentado pela L-011.690-2008)

II – determinar, no curso da instrução, ou antes de proferir sentença, a realização de diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante.
 
O ministro está a lembrar que quem aponta um álibi, por exemplo, compromete-se com a necessidade de prová-lo. Não se trata de uma feitiçaria do STF. Trata-se apenas da lei! Os ministros estão ainda ancorados no Artigo 239 do mesmo Código de Processo Penal:

“Art. 239. Considera-se indício a circunstância conhecida e provada, que, tendo relação com o fato, autorize, por indução, concluir-se a existência de outra ou outras circunstâncias.” 
 
Muitos dos ministros citaram vasta jurisprudência para demonstrar a validade das provas indiciárias. De resto, como lembrou Rosa Weber — e não sei se ela vai condenar ou absolver Dirceu —, quanto mais sobe na hierarquia, menos provas o criminoso deixa de seu crime. Por isso, a indução, com base em “circunstância conhecida e provada”, tem de ser levada em conta pelo juiz. E não é inferior a prova nenhuma.
 
Parece que a “Ego Capital” está tentando mobilizar seus 126 leitores (fui o 127º hoje) para uma batalha contra o Supremo. Tem o direito de propor o que quiser. Mas não tem o direito de afirmar que Fux disse o que não disse e de sugerir que o julgamento do mensalão se dá ao arrepio da lei.
 
02 setembro de 2012
Por Reinaldo Azevedo

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