Com Rudi Dornbusch e a convite do Banco Central de Reserva del Perú, fui a Lima, em 1990, para trabalho sobre a inflação de 7.000% naquele ano. Na entrada do Banco Central, ao lado do detector de metais, havia uma estante onde, em escaninhos numerados, as pessoas deixavam os revólveres e outras armas e recebiam uma ficha correspondente a seus pertences.
O país encontrava-se conturbado pela violência do Sendero Luminoso - um grupo guerrilheiro maoista que, antes de desaparecer, se tornaria responsável por 69 mil mortes.
Alberto Fujimori acabara de tomar posse e Rudi iria jantar com o presidente. Na última hora o convite se estendeu à diretora do Banco Central, com quem trabalhávamos, e me incluiu. Nosso carro percorreu as ruas de Lima, passou pelas bancadas de sopão, onde as pessoas esperavam em longas filas pelo único alimento do dia, e contornou um tanque de guerra...
No palácio, depois de um corredor comprido e mal iluminado, estavam a pequena sala de jantar e a mesa posta, com quatro paninhos puídos nas beiradas. O presidente entrou vestido numa guayabera.
A empregada trouxe quatro Coca-Colas, uma travessa de espaguetes e, para a sobremesa, apenas duas porções individuais de pudim. Voltou 40 minutos mais tarde com outra travessa de espaguetes. A cozinheira, informada sobre o maior número de convidados, preparara segundas porções...
O presidente falava pouco e perguntava muito. Tive pena daquele político solitário e ainda desconhecido, sem uma base seja social, seja partidária. Ele liquidaria a hiperinflação e o Sendero, mas terminaria tragado pela corrupção e pelo poder de Vladimiro Montesinos, o chefe da polícia secreta que garantiu suas reeleições.
Montesinos subornou o Congresso, o Judiciário e a imprensa, mantendo a fachada democrática: os cidadãos votavam, os juízes decidiam, a mídia noticiava. Mas a negociação e a execução de acordos secretos drenavam a substância da democracia.
Embora possa parecer estranho, Montesinos mantinha registros meticulosos de suas operações: em contratos e recibos dos subornos, em vídeos das negociações ilícitas e das reuniões em que ele mesmo foi o corruptor. A lógica de suas ações deriva de que as fitas eram prova da cumplicidade dos outros e lhe davam o poder para destruir o presidente, impedindo Fujimori de demiti-lo.
Constituíram fontes de dinheiro para suborno: o orçamento secreto do Serviço Nacional de Informação, somas recebidas por intermédio do Ministério do Interior e desvios de contratos com o Estado.
John McMillan e Pablo Zoido, da Universidade Stanford (How to subvert democracy, no Journal of Economic Literature), utilizaram os preços de suborno e concluíram que a forma mais forte de controle sobre o governo é a mídia. A julgar pelos subornos pagos e, portanto, pela preferência revelada de Montesinos, a televisão representava a maior ameaça ao poder do governo peruano.
O suborno pago ao proprietário de um canal de televisão era cerca de cem vezes maior do que o pago a um político, que era um pouco maior do que o pago a um juiz.
Os pagamentos feitos a políticos ficavam, na sua maioria, entre US$ 5 mil e US$ 20 mil por mês, com alguns pagamentos de até US$ 100 mil, chamados de contribuições de campanha. Entre os meios de comunicação, o diretor do Expresso (um tabloide) recebeu US$ 1 milhão e El Tío (outro tabloide), US$ 1,5 milhão ao longo de dois anos.
O Canal 4 recebia US$ 1,5 milhão por mês em propinas. Esses pagamentos subestimam os subornos, pois Montesinos canalizava mais dinheiro para os jornais e a televisão por meio de publicidade oficial.
A única empresa de televisão não subornada, o Canal N, continuou a oferecer jornalismo investigativo independente e levou ao ar pela primeira vez o vídeo que trouxe o regime abaixo. Em 2000, apenas três meses e meio depois da terceira vitória de Fujimori na eleição para presidente, o governo caiu, quando o Canal N exibiu o vídeo que mostrava o pagamento de Montesinos ao político de oposição Alberto Kouri.
Outro vídeo mostrava Montesinos oferecendo a Alípio Montes de Oca, membro da Suprema Corte de Justiça, propina de US$ 10 mil por mês, além de atendimento médico e segurança pessoal e a presidência do Conselho Nacional de Eleições.
Os mecanismos democráticos complementam-se e reforçam-se uns aos outros, enquanto a ausência de um enfraquece todo o sistema democrático. Se um dos controles é fraco, todos o são. Nesse sentido, cada um deles é vital. No entanto, a televisão aparece como o limite crucial. Por quê?
Sua importância deriva do fato de que a mídia pertence ao mecanismo de constrangimento fundamental. Considere. A reação de grande número de cidadãos à violação das regras pode depor um governo. Entretanto, eles enfrentam um problema de coordenação, porque, na escolha de como agir, o cidadão precisa avaliar o que os outros farão. Falta de informação constitui a dificuldade-chave da coordenação.
Não saber o que os outros sabem é suficiente para frustrar ações que precisam ser coordenadas. Ao informar a todos sobre violações do governo, a televisão ajuda a resolver o problema da coordenação, de vez que a transgressão se torna conhecimento comum.
A diferença entre a televisão e o jornal está no seu alcance: os subornos pagos a jornais impressos foram menores do que os pagos a canais televisivos, porque os peruanos preferem receber as notícias pela televisão. Demonstrando seu poder, foi ela que finalmente derrubou Alberto Fujimori.
Será que tudo isso importa? Poder-se-ia justificar a ação de Fujimori e Montesinos porque eles destruíram o Sendero Luminoso e puseram fim à hiperinflação? Nunca. Pois, ao acumular todos os Poderes (Legislativo, Executivo e Judiciário) nas mesmas mãos, a corrupção instaura a tirania e suas arbitrariedades. Ela nos leva de volta à barbárie.
23 de janeiro de 2013
Eliana Cardoso, O Estado de São Paulo
* Eliana Cardoso é PH.D. pelo MIT e professora titular da FGV-São Paulo. Site: www.elianacardoso.com.
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