Leitores querem saber se afinal sou ou não
a favor da descriminalização das drogas. Ora, não é questão de ser a favor ou
contra. As drogas há muito estão descriminalizadas. Ninguém é contra ou a favor
de fatos. Fatos são fatos e fim de papo. Agora, se me pedirem uma opinião sobre
a tese, vamos lá: sim, sou pela descriminalização das drogas. Ingerimos tantas
drogas prejudiciais à saúde, por que não mais algumas?. Cigarro mata, álcool
também. Nada disso é proibido. Açúcar e sal também matam. Nem por isso
deixaremos de usar açúcar e sal.
Drogas, jamais usei. Em meus primeiros dias de São Paulo, reencontrei uma amiga dos tempos de universidade em Porto Alegre. Revisitando o passado, ela se comprazia em ter cumprido as três palavras de ordem dos anos 70, sexo, drogas e rock'n'roll. Queria saber minha posição naquela década. Das três linhas de pesquisa, só havia curtido apenas a que sempre foi eterna, respondi. Drogas e rock deixei-os de lado. Rock, porque sempre considerei o ruído como um insulto à inteligência. Drogas, por detestar modismos.
As drogas, como o rock, vinham dos Estados Unidos. Não que fossem produzidas lá, mas o consumo da juventude norte-americana exportava a moda para os símios ao sul do Trópico de Câncer. Uma edição da revista O Cruzeiro publicou, nos anos 50, uma reportagem significativa sobre a "erva do diabo", como era então chamada a Canabis sativa. Para aproximar-se da droga, que circulava então nas favelas e no presídio, um repórter deixou crescer a barba, como camuflagem junto aos traficantes e consumidores. Maconha era então coisa de submundo, e barba logotipo de marginal.
Bastou os universitários norte-americanos adotarem a marijuana - voz mexicana que indicava a origem do produto - a erva virou moda no Brasil, particularmente nos campi. Como jamais suportei modas, e particularmente as vindas do Norte, meu repúdio à maconha era antes de tudo teórico, político. Por outro lado, o consumo da maconha era vício gregário, e sempre me afastei de cerimoniais coletivos. Os curtidores da canabis eram em geral pessoas de pouca ou nenhuma leitura, e nada me impelia a confraternizar com eles.
Outro grande impulso ao uso de drogas foram os Beatles. Foram os grandes agentes do LSD, cocaína, maconha e congêneres. Milhões de jovens no mundo todo passaram a se sentir peixes fora d'água se não consumissem drogas, esta foi a grande revolução dos roqueiros ingleses. Hoje, algumas mentes brilhantes estão concluindo que quem usa drogas financia o tráfico e o crime. No entanto, continuam lotando estádios em homenagem aos apologistas da droga.
Mal escrevi as linhas acima, recebi uma chuva de canivetes pelo lombo. “Está confirmado. O Janer não teve adolescência, estava em Urano quando os Beatles faziam a juventude do mundo cantar”. Em Urano, diria que não. Mas a distância entre mim e o rock certamente é maior que a distância entre mim e Urano. Os Beatles nunca fizeram parte de minha juventude. Para mim, foi como se não tivessem existido. Nunca tive um disco deles em casa e nunca tive rádio.
Sempre detestei rock, ieieié, essas coisas. Aliás, de modo geral, não me atrai em nada essa música que vem do mundo anglófono. Exceto Katherine Jenkins, ninguém vai encontrar uma única canção em inglês aqui em casa. Não quero com isto dizer que os anglófonos não fazem boa música, nada disso. Mas quando dizem que os Beatles influenciaram uma geração eu olho em torno e me pergunto: que geração? A minha é que não foi. Transitamos pelos mesmos anos, mas por ruas muito diferentes.
Para não dizer que jamais falei de flores... 1972. Era verão em Estocolmo, uma daquelas noites brancas em que o sol ameaça deitar-se mas não se deita, uma luz macia iluminando as madrugadas. Eu despertava de um inverno plutoniano de oito meses, como aliás todos os suecos. Perfume de orgia no ar e eu ilhado em um quarto de estudante. Se andorinha só não faz verão, muito menos um homem solitário faz orgia. Brasileiros do quarto ao lado me convidam para uma festa. Num cubículo de uns vinte metros quadrados, vinte tupiniquins e três adolescentes suecas, o cachimbo da paz correndo solto. Para não ser indelicado, fumei.
Os vinte tupiniquins no nirvana, olhando para o próprio umbigo, curtindo rock e canabis. Eu, com dor de cabeça e vontade de conversar, sem interlocutor à vista. Foi quando uma das suecas aproximou-se. O consumo de maconha era rotina em Estocolmo, a prefeitura financiava inclusive bares para curti-la, mas neles só podiam entrar menores de 18 anos. As suecas não entendiam como alguém podia encerrar-se em um quarto puxando fumo numa daquelas noites cheias de luz. Escasso naquelas paragens era o sol. "Vocês, brasileiros, são todos assim?", me perguntou. Assim como? "Só fumam e não conversam?"
Não, eu não era assim. Em meu quarto havia vinhos e conversar era o que mais queria naquela noite irreal. Se a maconha era rotina na Suécia, o álcool tinha - e ainda tem - um sabor de pecado, tanto que nos bares, naqueles anos, era proibido servi-lo. Roubei as três suequinhas aos vinte monoglotas. De minha sacada frente a um bosque, amanhecemos contemplando aquele sol paranóico rodando quase paralelo ao horizonte. Foi minha primeira e última experiência com maconha. Não me queixo.
O uso das drogas também adquiriu prestígio entre universitários a partir do ensaio As Portas da Percepção, de Aldous Huxley, que já gozava no Brasil a fama de autor de Admirável Mundo Novo. A partir de experiências com a mescalina, Huxley chegara à conclusão que certas drogas desenvolviam a percepção. No Brasil, foi entendido às avessas. Toda uma geração de adolescentes sem leitura passou a consumir desde canabis a LSD, julgando que assim abriam as portas para a genialidade. Esqueciam - ou propositadamente insistiam em ignorar - que antes das experiências com a mescalina Huxley tinha décadas de leituras. E que sem cultura histórica de nada adianta abrir as portas da percepção, aí mesmo é que não se percebe nada.
Dizia uma interlocutora que produzo polêmicas para captar leitores. Nada disso. É que sou naturalmente polêmico. Por uma razão muito simples: não tenho filosofia alguma. Homem que segue um determinado pensamento não provoca maiores discussões. Seu comportamento é previsível. Não sou aristotélico (por incrível que parece, ainda existem hoje pessoas que estagnaram em um pensamento de mais de dois mil anos, quando a Europa nem fazia parte do ecúmeno), não sou tomista, não sou hegeliano, nunca fui kantiano ou cartesiano, muito menos marxista.
Fui católico por cinco ou seis anos, é verdade, mas esta fase não conta. Vivia em um universo pagão e aos nove ou dez anos fui levado à igreja por uma catequista uruguaia. Me enfiaram o cristianismo a machado na cabeça, mas não durou muito. Aos quinze anos, voltei a ser como nasci: ateu. Pois todos nascemos ateus, não é verdade?
A verdade é que, nos anos 60 e 70 – e de certa forma, mesmo agora – não usar drogas causa a mesma perplexidade que causaria um dinossauro passeando na Avenida Paulista. No fundo, sou antediluviano, nunca fumei nem mesmo cigarro.
Quando descobri ter sido premiado, em 2009, por um carcinoma de palato, a primeira pergunta que ouvi dos médicos foi: você fuma? Estou vencendo os terceiro e quarto carcinomas nestes dias, e a pergunta persiste. Até parece que meus médicos não lêem minha ficha. Não, nunca fumei na vida. A menos que meus cânceres tenham sido provocados por uma tragada que dei, lá pelos meus dez anos. Em uma pecinha de teatro na escola, fazíamos o papel de gaúchos. Como as professoras achavam que gaúcho pra ser gaúcho tem de fumar, permitiram à piazada chupar câncer. Foi a festa para meus colegas. Quanto a mim, pus o cigarro na boca, não gostei e o joguei pela janela.
Suponho que aquela tragada, há bem mais de meio século, não tenha sido a causa de meus dissabores passados e atuais. Tenho amigas que fumam e outras que fumavam. Estas últimas, sofreram para largar o hábito. Não passa dia sem que me falem que a culpa é da publicidade, “que nos conduz a fumar”. Ora, nasci tão exposto quanto elas a esta publicidade, vivi minha adolescência vendo filmes onde não se sabia quem fumava mais, se o mocinho ou o bandido. Meus parentes todos fumavam. No entanto, jamais fumei.
Há quem fale na propaganda subliminar do cinema. Podem atar-me em uma cadeira e passar filmes 24 horas por dia com propaganda subliminar do cigarro. Comigo não adianta. Ninguém me obriga a fazer o que não gosto. Nestes dias de volta à vida normal, minha nutricionista quer que eu coma verduras. Não vai levar. Nunca pastei, não será agora que vou pastar.
Sem precisar dar um pio, já era polêmico. Não fumava, não usava drogas nem gostava dos Beatles. Sem falar que jamais fui de esquerda, pecado mortal para um universitário naqueles dias. Ah, e ainda não tenho iPhone. Volto outra hora ao assunto.
20 de abril de 2013
janer cristaldo
Drogas, jamais usei. Em meus primeiros dias de São Paulo, reencontrei uma amiga dos tempos de universidade em Porto Alegre. Revisitando o passado, ela se comprazia em ter cumprido as três palavras de ordem dos anos 70, sexo, drogas e rock'n'roll. Queria saber minha posição naquela década. Das três linhas de pesquisa, só havia curtido apenas a que sempre foi eterna, respondi. Drogas e rock deixei-os de lado. Rock, porque sempre considerei o ruído como um insulto à inteligência. Drogas, por detestar modismos.
As drogas, como o rock, vinham dos Estados Unidos. Não que fossem produzidas lá, mas o consumo da juventude norte-americana exportava a moda para os símios ao sul do Trópico de Câncer. Uma edição da revista O Cruzeiro publicou, nos anos 50, uma reportagem significativa sobre a "erva do diabo", como era então chamada a Canabis sativa. Para aproximar-se da droga, que circulava então nas favelas e no presídio, um repórter deixou crescer a barba, como camuflagem junto aos traficantes e consumidores. Maconha era então coisa de submundo, e barba logotipo de marginal.
Bastou os universitários norte-americanos adotarem a marijuana - voz mexicana que indicava a origem do produto - a erva virou moda no Brasil, particularmente nos campi. Como jamais suportei modas, e particularmente as vindas do Norte, meu repúdio à maconha era antes de tudo teórico, político. Por outro lado, o consumo da maconha era vício gregário, e sempre me afastei de cerimoniais coletivos. Os curtidores da canabis eram em geral pessoas de pouca ou nenhuma leitura, e nada me impelia a confraternizar com eles.
Outro grande impulso ao uso de drogas foram os Beatles. Foram os grandes agentes do LSD, cocaína, maconha e congêneres. Milhões de jovens no mundo todo passaram a se sentir peixes fora d'água se não consumissem drogas, esta foi a grande revolução dos roqueiros ingleses. Hoje, algumas mentes brilhantes estão concluindo que quem usa drogas financia o tráfico e o crime. No entanto, continuam lotando estádios em homenagem aos apologistas da droga.
Mal escrevi as linhas acima, recebi uma chuva de canivetes pelo lombo. “Está confirmado. O Janer não teve adolescência, estava em Urano quando os Beatles faziam a juventude do mundo cantar”. Em Urano, diria que não. Mas a distância entre mim e o rock certamente é maior que a distância entre mim e Urano. Os Beatles nunca fizeram parte de minha juventude. Para mim, foi como se não tivessem existido. Nunca tive um disco deles em casa e nunca tive rádio.
Sempre detestei rock, ieieié, essas coisas. Aliás, de modo geral, não me atrai em nada essa música que vem do mundo anglófono. Exceto Katherine Jenkins, ninguém vai encontrar uma única canção em inglês aqui em casa. Não quero com isto dizer que os anglófonos não fazem boa música, nada disso. Mas quando dizem que os Beatles influenciaram uma geração eu olho em torno e me pergunto: que geração? A minha é que não foi. Transitamos pelos mesmos anos, mas por ruas muito diferentes.
Para não dizer que jamais falei de flores... 1972. Era verão em Estocolmo, uma daquelas noites brancas em que o sol ameaça deitar-se mas não se deita, uma luz macia iluminando as madrugadas. Eu despertava de um inverno plutoniano de oito meses, como aliás todos os suecos. Perfume de orgia no ar e eu ilhado em um quarto de estudante. Se andorinha só não faz verão, muito menos um homem solitário faz orgia. Brasileiros do quarto ao lado me convidam para uma festa. Num cubículo de uns vinte metros quadrados, vinte tupiniquins e três adolescentes suecas, o cachimbo da paz correndo solto. Para não ser indelicado, fumei.
Os vinte tupiniquins no nirvana, olhando para o próprio umbigo, curtindo rock e canabis. Eu, com dor de cabeça e vontade de conversar, sem interlocutor à vista. Foi quando uma das suecas aproximou-se. O consumo de maconha era rotina em Estocolmo, a prefeitura financiava inclusive bares para curti-la, mas neles só podiam entrar menores de 18 anos. As suecas não entendiam como alguém podia encerrar-se em um quarto puxando fumo numa daquelas noites cheias de luz. Escasso naquelas paragens era o sol. "Vocês, brasileiros, são todos assim?", me perguntou. Assim como? "Só fumam e não conversam?"
Não, eu não era assim. Em meu quarto havia vinhos e conversar era o que mais queria naquela noite irreal. Se a maconha era rotina na Suécia, o álcool tinha - e ainda tem - um sabor de pecado, tanto que nos bares, naqueles anos, era proibido servi-lo. Roubei as três suequinhas aos vinte monoglotas. De minha sacada frente a um bosque, amanhecemos contemplando aquele sol paranóico rodando quase paralelo ao horizonte. Foi minha primeira e última experiência com maconha. Não me queixo.
O uso das drogas também adquiriu prestígio entre universitários a partir do ensaio As Portas da Percepção, de Aldous Huxley, que já gozava no Brasil a fama de autor de Admirável Mundo Novo. A partir de experiências com a mescalina, Huxley chegara à conclusão que certas drogas desenvolviam a percepção. No Brasil, foi entendido às avessas. Toda uma geração de adolescentes sem leitura passou a consumir desde canabis a LSD, julgando que assim abriam as portas para a genialidade. Esqueciam - ou propositadamente insistiam em ignorar - que antes das experiências com a mescalina Huxley tinha décadas de leituras. E que sem cultura histórica de nada adianta abrir as portas da percepção, aí mesmo é que não se percebe nada.
Dizia uma interlocutora que produzo polêmicas para captar leitores. Nada disso. É que sou naturalmente polêmico. Por uma razão muito simples: não tenho filosofia alguma. Homem que segue um determinado pensamento não provoca maiores discussões. Seu comportamento é previsível. Não sou aristotélico (por incrível que parece, ainda existem hoje pessoas que estagnaram em um pensamento de mais de dois mil anos, quando a Europa nem fazia parte do ecúmeno), não sou tomista, não sou hegeliano, nunca fui kantiano ou cartesiano, muito menos marxista.
Fui católico por cinco ou seis anos, é verdade, mas esta fase não conta. Vivia em um universo pagão e aos nove ou dez anos fui levado à igreja por uma catequista uruguaia. Me enfiaram o cristianismo a machado na cabeça, mas não durou muito. Aos quinze anos, voltei a ser como nasci: ateu. Pois todos nascemos ateus, não é verdade?
A verdade é que, nos anos 60 e 70 – e de certa forma, mesmo agora – não usar drogas causa a mesma perplexidade que causaria um dinossauro passeando na Avenida Paulista. No fundo, sou antediluviano, nunca fumei nem mesmo cigarro.
Quando descobri ter sido premiado, em 2009, por um carcinoma de palato, a primeira pergunta que ouvi dos médicos foi: você fuma? Estou vencendo os terceiro e quarto carcinomas nestes dias, e a pergunta persiste. Até parece que meus médicos não lêem minha ficha. Não, nunca fumei na vida. A menos que meus cânceres tenham sido provocados por uma tragada que dei, lá pelos meus dez anos. Em uma pecinha de teatro na escola, fazíamos o papel de gaúchos. Como as professoras achavam que gaúcho pra ser gaúcho tem de fumar, permitiram à piazada chupar câncer. Foi a festa para meus colegas. Quanto a mim, pus o cigarro na boca, não gostei e o joguei pela janela.
Suponho que aquela tragada, há bem mais de meio século, não tenha sido a causa de meus dissabores passados e atuais. Tenho amigas que fumam e outras que fumavam. Estas últimas, sofreram para largar o hábito. Não passa dia sem que me falem que a culpa é da publicidade, “que nos conduz a fumar”. Ora, nasci tão exposto quanto elas a esta publicidade, vivi minha adolescência vendo filmes onde não se sabia quem fumava mais, se o mocinho ou o bandido. Meus parentes todos fumavam. No entanto, jamais fumei.
Há quem fale na propaganda subliminar do cinema. Podem atar-me em uma cadeira e passar filmes 24 horas por dia com propaganda subliminar do cigarro. Comigo não adianta. Ninguém me obriga a fazer o que não gosto. Nestes dias de volta à vida normal, minha nutricionista quer que eu coma verduras. Não vai levar. Nunca pastei, não será agora que vou pastar.
Sem precisar dar um pio, já era polêmico. Não fumava, não usava drogas nem gostava dos Beatles. Sem falar que jamais fui de esquerda, pecado mortal para um universitário naqueles dias. Ah, e ainda não tenho iPhone. Volto outra hora ao assunto.
20 de abril de 2013
janer cristaldo
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