Parece brincadeira, mas não é. Depois de o presidente do PT, deputado Rui Falcão, ter tido o cinismo de dizer que não havia militantes petistas nas manifestações dos últimos dias porque todos estão empregados, trabalhando, agora foi a vez de o ex-presidente Lula "escrever" no artigo distribuído ontem pelo “New York Times” que os protestos que ocorreram pelo país são reflexos dos sucessos de seu governo nos campos econômico, político e social.
Como se não bastasse a contabilidade criativa com que o governo tenta esconder os fracassos de sua política econômica, temos agora a interpretação criativa para tentar esconder o que o povo foi às ruas exigir: menos corrupção, maior transparência no uso do dinheiro público, prioridades para transportes públicos, saúde e educação, e não para estádios de futebol “padrão Fifa”.
Trazer a Copa do Mundo para o Brasil, aliás, foi uma das grandes vitórias do governo Lula, e desde o primeiro momento houve o compromisso de que não se gastaria dinheiro público nas obras necessárias, como a construção dos estádios.
O que se viu, no entanto, foi um gasto muito superior ao estimado — os gastos com estádios representam R$ 7,5 bilhões dos R$ 28,1 bilhões previstos nas obras da Matriz de Responsabilidades da Copa — com financiamentos pelo BNDES, incluindo aí o estádio do Corinthians, que teve o apadrinhamento decisivo de Lula, corintiano doente.
Embora diga que os protestos não são contra a política, mas uma vontade da juventude de participar mais diretamente dela, o ex-presidente Lula reconhece que “mesmo o Partido dos Trabalhadores, que eu ajudei a fundar, e que contribuiu muito para modernizar e democratizar a política no Brasil, precisa de uma profunda renovação. É preciso recuperar suas ligações diárias com os movimentos sociais e oferecer novas soluções para novos problemas, e fazer as duas coisas sem tratar os jovens de forma paternalista”.
Na parte de seu artigo mais conectada com a realidade, Lula lembra que “as pessoas não querem apenas votar de quatro em quatro anos, (...) querem interagir com os governos locais e nacionais, e tomar parte das decisões de políticas públicas, oferecendo opiniões e decisões que os afetem todos os dias”.
Lula diz ser natural que os jovens “desejem mais”, especialmente aqueles que têm o que seus pais não tiveram. Mas trata de encontrar desculpas para as críticas das ruas, especialmente às questões econômicas que começam a incomodar a nova classe média inventada pelo lulismo, que vê seu poder de compra ser reduzido pela inflação e pelo endividamento.
Ressalta, com razão, que a maioria das pessoas que estava nas ruas não viveu os tempos de hiperinflação. Em tempos de estagflação, Lula diz que hoje as pessoas já não se lembram dos anos 1990, “quando a estagnação e o desemprego afetaram nosso país”.
Ao tentar minimizar os problemas de inflação que temos hoje, traz à lembrança o Plano Real, que acabou com a hiperinflação.
Sem receio de parecer incoerente, Lula admite, sem nunca afirmar explicitamente, que as manifestações têm a ver com o jogo partidário que o PT aprofundou ao chegar ao poder, gerando crises como o mensalão. “Eles exigem instituições políticas mais limpas e transparentes, sem as distorções políticas e eleitorais (...)”.
Da mesma forma que o presidente do PT, Rui Falcão, no programa “Roda viva”, também o presidente Lula admite em seu artigo a “legitimidade dessas demandas”. Lula diz, no entanto, que “é impossível contemplá-las rapidamente”. Confrontado com o fato de que a principal aliança partidária do PT é com o PMDB, cujos líderes são acusados de malversação do dinheiro público, Falcão disse que a solução do problema está no plebiscito para a reforma política.
Os dois se utilizam dos mesmos argumentos com que já tentaram transformar o mensalão em simples uso de “caixa dois” eleitoral, que todo partido brasileiro usaria. Também em relação aos parceiros preferenciais, em vez de uma política transparente como as ruas exigem, não há nada a se fazer no momento. Apenas não é culpa do PT.
17 de julho de 2013
Merval Pereira, O Globo
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