Hoje, diferentemente do que sucedeu há 30 anos, na luta contra a ditadura, as razões de ir à rua protestar são as mais desconexas: preço da passagem, contra a Copa, contra a corrupção, pela saúde, em favor da educação ou pela reforma política.
Na verdade, houve longa hibernação da população brasileira, na qual a indiferença prevaleceu, mesmo diante das denúncias do mensalão, em 2005.
Na verdade, houve longa hibernação da população brasileira, na qual a indiferença prevaleceu, mesmo diante das denúncias do mensalão, em 2005.
Lula, o Macunaíma, tergiversador, que ora se disse traído pelos mensaleiros, ora passou a mão na cabeça dos aloprados, é o responsável pelo clima deliquescente em que está imerso o Brasil.
Fortalece-se, agora, a reação à esperteza como um valor: pede-se moralidade e as pesquisas eleitorais mostram dobrar o número de indecisos, começar a queda de Lula e surgir a figura de Joaquim Barbosa, homem probo, franco, alheio a malabarismos malandros.
Deve-se ao julgamento do mensalão e ao ressurgimento da inflação a disseminação da revolta diante da situação moral e econômica do País. Atos de protesto reúnem diversos descontentes, sem propósitos idênticos, próximos apenas no inconformismo.
Há um estado de anomia, de negação de legitimidade dos Poderes instituídos que leva a atender à chamada ao protesto como forma de expressar a descrença nos canais formais de representação da vontade popular: partidos, Congresso e governo.
A anomia decorre da frustração em vista da impossibilidade de satisfação das expectativas criadas de realização pessoal. Prometeu-se o acesso ao consumo, pela concessão de crédito e graças ao aumento salarial, alimentando desejos já exasperados pela propaganda, mas a inflação e o endividamento desfazem a promessa.
Prometeu-se democracia como probidade e surge o mensalão. Prometeram-se condições dignas de vida com eficiente atendimento no transporte, na saúde, na educação, mas a realidade revela só o descaso dos donos do poder.
Dá-se, então, o divórcio entre as aspirações prevalecentes no meio social e os caminhos "socialmente estruturados para se atingir estas aspirações", como diz Merton. O refrão "o povo unido não precisa de partido" e o repúdio às bandeiras dos partidos mostram uma sociedade que corre paralela às instituições e as desconsidera.
Os caminhantes de hoje têm em comum o forte sentimento disseminado de inconformidade, mas sem foco determinado: há em atividade uma metralhadora giratória num vazio político.
Dilma tentou fazer-se intérprete dos anseios detectados por seus marqueteiros, buscando tomar a frente da ida às ruas, mas seu estudado discurso soou perdidamente oportunista. Na fala do trono, em autoritária e constrangedora reunião com governadores e prefeitos, impingiu decisões disparatadas como a arriscadíssima e inconstitucional convocação de Constituinte via plebiscito, da qual teve de desistir no dia seguinte.
Propôs plebiscito para reforma política, mas voltou atrás na quinta-feira de manhã; à tarde retornou a insistir no plebiscito ainda este ano. É uma pantomima.
Quanto ao plebiscito, há questão prévia relevante. Se posta em causa matéria de natureza constitucional, a convocação deve se dar por decreto aprovado por maioria de três quintos de ambas as Casas do Congresso, pois apenas com maioria simples será uma fraude: mudar a forma de mudar a Constituição.
Com o plebiscito para a reforma política pretende-se jogar areia nos olhos do povo, criando falsamente a impressão de participação popular por meio tecnicamente inviável, pois esse tipo de consulta somente permite alternativa excludente, impossível para múltipla escolha.
Quanto ao sistema eleitoral, consta da Constituição que a eleição para a Câmara será proporcional, e vários dos sistemas enunciados pela "presidenta" o são: o atual, o proporcional em dois turnos e o distrital misto. Excluem-se o distritão e o distrital puro, em que vencem os mais votados, independentemente da soma dos votos do partido.
Assim, a "presidenta" sugeriu pergunta sobre sistema eleitoral: 1) proporcional; 2) distrital misto; 3) distrital puro; 4) distritão; 5) proporcional em dois turnos. Para facilitar, imaginemos apenas três alternativas: se 35% são a favor do distrital puro, 34% do distrital misto e 31% do proporcional atual, a opção vencedora pelo distrital puro será contrária à vontade de 65% dos votantes e se afastaria o sistema proporcional, que é de preferência da maioria.
A proposta, portanto, não é factível. Com equilíbrio vê-se ser impossível elucidar o eleitor sobre a mecânica dos sistemas eleitorais, e suas consequências, para se ter escolha esclarecida.
Inexplicáveis as idas e vindas da Presidência, a mostrar ser o plebiscito mera manobra para forjar a sensação de ser ouvido quem se pensa deseje ser ouvido. Segue a "presidenta" uma biruta ao sabor do vento, sem se aperceber de que se clama por reforma na forma de fazer política, contra o modo de governar e de representar o povo.
A agenda imediata poderia ser: diminuição do número de ministérios, redução drástica dos cargos em comissão na administração direta e nas empresas estatais, nomeação de técnicos para diretores dessas empresas, desaparelhamento do Estado, registro dos cabos eleitorais remunerados, dotação de meios para a Justiça e o Ministério Público Eleitoral fiscalizarem e reprimirem o uso de caixa 2 nas campanhas, proibição de fornecedoras e prestadoras de serviço ao governo contribuírem para campanhas eleitorais, assegurar verbas fixas para emendas parlamentares sem troca de voto por liberação de meios. Quebram-se fontes da corrupção e pode vir a seriedade.
A sociedade civil (OAB, entidades de advogados, CNBB, lideranças patronais e sindicais, movimentos sociais como o contra corrupção) poderia unir-se à classe política, mesmo desprestigiada, para forçar e gerar até meados do ano próximo ampla reforma política com referendo nas eleições de 2014.
Chega de labilidade!
06 de julho de 2013
Miguel Reale Júnior, O Estado de São Paulo
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