Desmoralizadas na Europa e nos demais países desenvolvidos, sob a batuta da editora britânica Liz Calder, as esquerdas européias e congêneres tupiniquins vêm se reunindo, há dez anos, na burguesa Paraty, em um caro convescote chamado Festa Literária Internacional de Paraty (Flip). Como no velho continente já não há clima para louvar stalinistas, os remanescentes do marxismo vêm homenageá-los neste Brasil, onde ser comunista ainda rende alguns votos.
O pretexto é a divulgação da literatura. Na conferência de abertura desta 11ª Flip, na quarta-feira passada, o escritor amazonense Milton Hatoum saudou Graciliano Ramos como um escritor obsessivamente "autocrítico", pessimista ao ponto de questionar um cumprimento como "boa noite" e político responsável com relação a "gastos públicos". Tão autocrítico que não hesitou um segundo em receber um convite de Stalin para visitar Moscou. Em obsequioso agradecimento ao Paizinho dos Povos, escreveu Viagem (1954), onde manifesta sua reverência ao tirano.
Para o escritor alagoano, Stalin é o “estadista que passou a vida a trabalhar para o povo, nunca o enganou. Não poderia enganá-lo. Esforçou-se por vencer o explorador, viu-o morto - e seria idiota supor que, alcançada a vitória, desejasse a ressurreição dele. É, desde a juventude, um defensor da classe trabalhadora. Esta expressão, razoável há trinta e cinco anos, tornou-se desarrazoada, pois aqui já não existem classes”.
Graciliano está há poucos dias em Moscou, não fala o russo, tem roteiros rígidos de passeios e visitas, e já afirma peremptoriamente que não mais existe na Rússia uma sociedade de classes. Vista de nossos dias, sua afirmação é de uma ingenuidade atroz. Independentemente desta distância crítica, nada permite a um homem que pensa, fazer tais ilações generalizantes a partir de tão parca experiência do povo soviético. Sem falar que Graciliano nada entendia da língua russa.
O seco criador de Paulo Honório, inimigo de adjetivações supérfluas, passa a cultivar os adjetivos:
“Não admitimos nenhum culto a pessoas vivas, perfeitamente: a carne é falível, corruptível, inadequada à fabricação de estátuas. Mas não se trata de nenhum culto, suponho: esse tremendo condutor de povos não está imóvel, de nenhum modo se resigna à condição de estátua. Homens embotados, afeitos à corrupção e à fraude, percebemos isto: a massa tem confiança absoluta nele e manifesta a confiança impondo-lhe a obrigação de admitir as ruidosas aclamações e os retratos. (...) Agradecimentos e louvores palpitam na alma da multidão, e recusá-los seria uma ofensa, um erro que nenhum político bisonho cometeria”.
Stalin, modesto dirigente, é coagido a aceitar a religiosa adoração das massas agradecidas. E Graciliano, que sequer pode olhar para Stalin com binóculos, chega à conclusão que “este tremendo condutor de povos” não é o monstro que o Ocidente imagina:
“Deixavam-me passar. E deixavam-me subir a escadaria, galgar as insignificantes barreiras de meio metro, avizinhar-me do homem que a burguesia odeia com razão. Stalin não vive numa toca, defendida por metralhadoras e canhões”.
E por aí vai. Ao visitar o Kremlin, o espírito de Graciliano é tomado por sensações místicas:
“...pisamos o núcleo de Moscou, a cidadela venerável exposta de longe ao mundo com júbilo ou furor, conforme as circunstâncias. Sim senhores. Estamos dentro dela - e as pedras santas das muralhas não caíram em cima de nós para esmagar-nos, estorvar a profanação”.
“É verdade: miseráveis sapatos americanos, brasileiros, pezunham na terra sagrada por diversas razões. Estamos no Kremlin”.
Em Gori, junto ao berço em que nasceu o novo Deus, o Velho Graça - como era chamado por seus amigos - chega a trair-se: “Onde estava a cama do menino?”
Não bastassem as homenagens ao velho stalinista alagoano, a Flip teve ontem a louvação do crítico e historiador de arte britânico T.J. Clark a um outro stalinista, o espanhol Pablo Picasso.
“Olhando de novo para Guernica, de Picasso”, era o título da palestra. Clark comentou que as cerca de cinco semanas durante as quais Picasso concluiu a obra foram “algumas das piores do século XX”. E prosseguiu: “As forças de Franco entraram pelo norte e pelo leste, e a República Espanhola passou a devorar suas próprias entranhas”.
Quem devorava as entranhas da Espanha não era a República Espanhola, e sim os comunistas, a mando de Stalin. Não fosse a resistência oposta por Franco, com a queda da Espanha iria junto Portugal. Com o controle do estreito de Gibraltar e o domínio do Mediterrâneo, Stalin sufocaria a Europa e o pesadelo iria bem além de 89.
Para Clark, “nesse sentido o quadro foi inaugural. Abriu as portas da guerra do terror do século passado e do nosso século. O terror de estado, em que dezenas de milhões morreriam – se não centenas de milhões.” Não deixa de ter razão e a filosofia assumida pelo pintor malaguenho foi responsável pela morte de nada menos que cem milhões . Mas o quadro de Picasso nada tem a ver com a guerra.
Ao longo destas crônicas, toda vez que alguém escreve que Guernica, de Pablo Picasso, é uma homenagem os mortos durante o bombardeio da cidade basca de Guernica, procuro desmascarar o embuste. Picasso havia pintado uma tela de oito metros de largura por três e meio de altura, intitulada La Muerte del Torero Joselito, plena de cores fúnebres, que iam do preto ao branco, em homenagem a um amigo seu, o toureiro Joselito, morto em uma lídia. O quadro ficara esquecido em algum canto de seu ateliê. Ao receber uma encomenda para o pavilhão republicano da Exposição Universal de Paris de 1937, Picasso lembrou do quadro. Foi quando, para fortuna do malaguenho, em 26 de abril daquele ano, a cidade de Guernica foi bombardeada pela aviação alemã. Ali estava o título e a glória, urbi et orbi.
Uns retoques daqui e dali, e Picasso deu nova função ao quadro. No entanto, multidões hipnotizadas pela propaganda comunista, vêem em uma cena de arena, com cavalo, touro e picador, uma homenagem aos mortos de Guernica. De um só golpe de pincel, o vigarista malaguenho traiu a memória do amigo e mentiu para a História.
Houve um outro massacre naqueles dias na Espanha, em Paracuellos del Jarama. Que poderia ter sido melhor homenagem de Picasso aos assassinados na Guerra Civil Espanhola. Pois em 1936, em Paracuellos del Jarama, sítio que ninguém gosta de lembrar, foram fuzilados pelo Partido Comunista nada menos que dois mil e quatrocentos espanhóis que se opunham à Frente Popular. Há quem fale em cinco mil. Outros em oito mil. À frente do PC espanhol estava Santiago Carrillo.
Em seu ensaio La Guerra Civil Española, o historiador Hugh Thomas fala em 1654 mortos em Guernica. Na segunda edição do livro, teria reduzido a 200 este número. Mas há quem negue a ocorrência do bombardeio. Por exemplo, o professor americano Jeffrey Hart, que publicou em janeiro de 1973, no National Review, o estudo intitulado The Great Guernica Fraud, onde sustenta a tese de que bombardeio de Guernica não ocorreu. O artigo foi reimpresso nos jornais Die Welt e Il Tempo.
Em Paracuellos a matança é plenamente confirmada por historiadores e foi bem mais feia que o suposto bombardeio de Guernica. Entre 7 de novembro e 4 de dezembro de 1936, militares que haviam participado do levante franquista ou que não haviam se incorporado aos comunistas, falangistas, religiosos, militantes de direita, cidadãos comuns e outras pessoas que haviam sido detidas por serem consideradas partidárias da sublevação, foram retiradas das prisões, atadas pelos punhos e conduzidas em ônibus e caminhões e conduzidas às margens do Jarama, onde foram sumariamente fuziladas.
Claro que Picasso não poderia batizar seu embuste como Paracuellos del Jarama. Seria expulso da História e permaneceria desconhecido como pintor.
É preciso estar muito hipnotizado pela propaganda para ver bombardeios em uma pintura de tourada. Mas os comunistas conseguiram este feito ao longo das décadas e repetem ad nauseam sua versão, para delírio de platéias desejosas de crer nos bons propósitos das esquerdas. A bicicleta precisa continuar rodando.
06 de julho de 2013
janer cristaldo
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