Rousseff tem um jeito peculiar de desafiar a corrupção: prestigiar os donatários de capitanias apodrecidas
Rousseff desafia a corrupção. Essa manchete foi publicada pelo jornal francês “Libération”, na passagem da presidente brasileira por Cannes, na reunião do G20. Orlando Silva acabara de cair, e o artigo concluía que, com a demissão do sexto ministro, Dilma se emancipava de Lula. Não interessaram ao jornal de esquerda as reuniões de emergência entre criador e criatura para tentar salvar a cabeça do ministro do Esporte. Nem a frase da presidente após a demissão: “Orlando Silva não perde meu respeito”. O que o Libération acha da relação de Dilma com Carlos Lupi?
Não interessa. O que essa imprensa europeia progressista e decadente publica não tem, de fato, a menor importância. Interessa é que boa parte da opinião pública brasileira, incluindo a que lê francês, acha que Rousseff desafia a corrupção.
Rousseff tem um jeito peculiar de desafiar a corrupção. É um desafio, por assim dizer, carinhoso. Por uma impressionante coincidência, as máquinas dos Transportes, da Agricultura, do Turismo, do Esporte e do Trabalho serviam a formas quase idênticas de sucção pelo PR, pelo PMDB, pelo PCdoB e pelo PDT – fiadores do PT e do Plano Dilma. É notável, ainda, que toda essa tecnologia dos convênios com ONGs e entidades companheiras provenha do tempo em que Rousseff mandava na Casa Civil. Segundo Lula, ela coordenava todos os projetos do governo.
Mais curioso ainda: mesmo depois de a imprensa mostrar que esses pedaços do Estado brasileiro tinham virado capitanias partidárias, com seus donatários já caindo de podres, Rousseff fez questão de prestigiá-los, um por um. Nunca sedesafiou a corrupção com tanta compaixão.
O chefe de gabinete do ministro do Trabalho e o tesoureiro do PDT eram a mesma pessoa. E atenção: isso não era segredo. Responsável pelas finanças do partido, Marcelo Panella ajudou a cozinhar mais de 500 relatórios de prestação de contas no ministério, que, segundo o Tribunal de Contas da União, sumiram nas gavetas da gestão Carlos Lupi. Nesse paraíso de convênios invisíveis, multiplicam-se histórias demanejo desinibido de dinheiro público – como no caso da ONG campeã de verbas em Minas Gerais. Essa ONG, com o imodesto nome de Instituto Mundial de Desenvolvimento da Cidadania, passou a ser investigada pela Polícia Federal depois de um evento desagradável. Um funcionário seu sacou numa agência bancária R$ 820 mil em espécie, às vésperas das eleições de 2010. Tudo normal, se o portador da ONG não tivesse tido o azar de ser assaltado. Perder dinheiro não é problema no Ministério do Trabalho, o chato é perder a discrição. Foi aberto um inquérito, em que consta que dirigentes da ONG pediram aos funcionários do banco para declarar à polícia que o saque fora só de R$ 80 mil. Um abatimento de 90%, em nome da modéstia.
O Ministério Público Federal suspeita de uso da ONG para caixa dois eleitoral. Mas deve estar enganado. O donatário do ministério e mandachuva do partido era Carlos Lupi, que tinha a total confiança de Rousseff. E Rousseff, como se sabe, desafia a corrupção.
Apareceu então uma denúncia de cobrança de propinas para liberar verbas do Ministério do Trabalho. Francamente, para que propina numa simbiose que te, para que propina numa simbiose que já funciona tão bem? Só se foi a força do hábito.
Em meio a tanto denuncismo, Rousseff, a chefe dos chefes, decidiu falar em cadeia nacional de rádio e TV. Para a surpresa geral, não se referiu ao único assunto que justificaria a urgência de um pronunciamento à nação. Anunciou a criação de dois programas de saúde pública, prometendo um choque de eficiência no setor. Não ficou claro que modelo de eficiência será adotado, mas possivelmente seja o do Ministério do Trabalho – e aí terá feito sentido a oportunidade do anúncio.
Há também o modelo do Ministério da Educação, testado e aprovado. Por três anos seguidos, o ministro fez política para valer e não cedeu ao denuncismo em torno do Enem. Foi premiado com a candidatura a prefeito de São Paulo.
Pelo histórico de seu primeiro ano de governo, Rousseff tem à disposição vários modelos de eficiência na gestão da coisa pública. O Brasil já conhece bem cinco deles, cada um mais criativo no desafio à corrupção do anterior. Se há algum outro, deve estar guardado a sete chaves.
14 de novembro de 2011
Guilherme Fiuza
Fonte: revista “Época”
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A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)
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