O texto ficou um tantinho longo. Mas acho que vale a pena ler até o fim. Há aqui uma dica de leitura. Imaginavam-me, no Carnaval, só com os pés na areia e a cabeça nas nuvens? Não! Estava pensando em vocês!
**** **** ****
Um amigo jornalista me deu um presente delicioso: o livro “Aguanten Los K” (”Agüentem os K”), do jornalista argentino Carlos M. Reymundo Roberts, publicado pela editora Sudamericana. E quem são “los K”? São os petralhas da Argentina; é como são conhecidos os partidários furiosos, ensandecidos, fanáticos mesmo, do casal Kirchner — no momento, de Cristina; Néstor, que morreu no dia 27 de outubro de 2010, já virou mito e estátua. No Brasil, o livro poderia se chamar “O País dos Petralhas”, hehe… ”Aguanten Los K” reúne uma coletânea de artigos publicados na coluna “De no creer” entre 15 de janeiro de 2010 e 20 de agosto de 2011. Jornalista experiente, Roberts cobriu duas guerras (a do Golfo, em 1991, e do Peru com o Equador, em 1995), é professor universitário, um dos comandantes da redação do La Nacíon e colunista do jornal, onde trabalha há mais de 30 anos. Conhece o seu ofício.
Néstor Kirchner, amparado pela mulher, que o sucedeu, ascendeu ao poder com o apoio majoritário da imprensa. Dada a penúria a que havia chegado a Argentina e considerando a razoável, mas precária, estabilidade alcançada, o casal foi se tomando de ares imperiais. Hoje, Cristina pode ser colocada na galeria dos líderes latino-americanos que nutrem um desprezo muito pouco solene pelas regras da convivência democrática, na companhia de Hugo Chávez, Rafael Correa e Daniel Ortega. A sua investida contra a imprensa independente do país é só a face mais visível de seus arroubos autoritários. Não me estenderei agora sobre esse particular. Quero falar sobre o livro de Roberts — de que traduzo um artigo que nos fala de perto, como vocês lerão.
Liberal convicto, o autor recorreu a um truque inteligente em sua coluna. Resolveu escrever como alguém que tivesse se convertido à religião Kirchner. Criou um “alter ego” adesista, governista a mais não poder, entusiasmado mesmo! Apresenta-se, assim, com uma personalidade dividida, esquizofrênica. O editor se obriga a ser imparcial, crítico, severo, guardião dos valores democráticos. Mas o colunista… Deixemos que os dois se apresentem.
O jornalista
”Quero me apresentar: sou Carlos María Reymundo Roberts, jornalista do La Nacíon há mais de trinta anos. Profundamente liberal, estou entre os antípodas do kirchenerismo. Trabalho, porém, num diário que não faz oposição, mas jornalismo independente.”
O colunista
“Quero me apresentar: sou Carlos M. Reymundo Roberts e, sob esta rubrica, público há pouco mais de um ano uma coluna política no diário La Nacíon. No início, foi, reconheço, um espaço editorial duro com os Kirchner, ainda que não só com eles. Na verdade, nem era tão duro, porque a minha não é a linguagem de quem pontifica, mas a de quem tem um olhar bem-humorado, mordaz, dos acontecimentos políticos. Como a muitos argentinos, a morte de Néstor, no fim de outubro de 2010, produziu em mim uma forte comoção. Primeiro em meu espírito; depois em minhas idéias. Dois meses depois, eu era um kirchnerista puro e duro e, por isso, pus minha coluna a serviço da causa.”
O editor reconhece que o modelo Kirchner é intolerante, aniquila a institucionalidade e destrói os valores republicanos. Já o colunista adesista acha que isso não é assim tão mau… Pode não ser, diz, uma “institucionalidade clássica, mas é a nossa”. O editor admite, atenção!, que “o governo cooptou e neutralizou todos os organismos de controle, que comprou prefeitos, governadores, opositores, juízes, intelectuais, sindicalistas, empresários jornalistas”. Já o colunista adesista pensa que “os prefeitos, governadores, sindicalistas, empresários e jornalistas se convenceram das bondades do modelo; os juízes julgam acertado o que estamos fazendo, e os intelectuais abraçam a causa nacional e popular porque nós os reconciliamos com suas velhas idéias e lhes demos uma razão para existir”.
Vejam só! O que em Roberts é uma blague, uma graça, uma saída irônica, é, em boa parte do jornalismo brasileiro, uma esquizofrenia verdadeira. Quantas vezes vocês já não viram colunistas muito vetustos e severos a anuir com arroubos autoritários do petismo, achando que, afinal, é preciso mesmo pagar um preço “pela mudança”? As duas faces do jornalista argentino, separadas pelo humor, assumem, em certo jornalismo brasileiro, a gravidade de uma categoria de pensamento.
Humor
Como alguém que pretende se irmanar com os petralhas — ooops!, com “Los K” —, Roberts é desmedido no seu amor pelo governo e elogia, é claro!, algumas notáveis barbaridades. E aqui está uma graça adicional do livro. A cada artigo, segue-se a publicação de uma série de comentários. E a gente se dá conta da miséria intelectual destes tempos. Alguns admiradores e adversários do kirchnerismo percebem a ironia; os primeiros o desqualificam; os outros o aplaudem. Mas há aquele, de um lado e de outro, que tomam tudo ao pé da letra, e as posições, então, se invertem: os K o elogiam largamente, e os críticos do oficialismo lhe dão uma carraspana.
A exemplo de “O País dos Petralhas” no Brasil — modéstia às favas —, a seleção de artigos de Roberts serve como retrato de um período infeliz da política argentina; é visível que os instrumentos da democracia são usados pelo governo para solapar a própria democracia. Roberts inova, no entanto, ao criar esse “alter ego” governista, que expõe, pelo caminho da adesão, o ridículo do oficialismo. Fiquei cá pensando em dar vida à versão vermelha do Reinaldo Azevedo… Garanto que essa minha versão abestada saberia elogiar o governo com mais competência do que algumas expressões momescas do lulo-petismo.
Blogs
Também na Argentina — e em toda parte —, é na Internet que a canalha fascistóide se manifesta com mais virulência. Traduzo, abaixo, um dos artigos do livro, que nos fala — a mim e a vocês — mais de perto. Vejam como a “classe petralha é internacional” e como os esbirros do poder nunca surpreendem. Vocês lerão um artigo de Roberts sobre o atual momento da política argentina e ficarão com a impressão de que ele fala do Brasil. Divirtam-se.
**** **** ****
O sonho de minha vida: ser um blogueiro K
Já sei o que quero ser quando crescer: um blogueiro K. Se a vida quer me dar um presente, peço este: fazer parte de um exército de homens e mulheres deste país que, dia após dia, faça chuva ou faça sol, tomam a lança e saem em defesa do seu governo, mais para matar do que para morrer.
Em tempos de descrença generalizada, de fim das ideologias, de individualismo feroz, eles se agrupam para uma batalha diária contra os meios de comunicação e seus esbirros, os jornalistas.
A cena há de ser comovedora: milhares de jovens (bem, assim pensava eu, mas me dizem que os há de todas as idades), por pura vocação, movidos por suas mais profundas convicções democráticas e em defesa da pátria, acordam quando ainda está escuro, lêem rapidinho jornais e sites na Internet, detectam um inimigo e, antes mesmo de tomar um café ou de escovar os dentes, já estão armados, na frente de seu PCs. Convictos, entusiasmados, dão início à segunda parte de seu trabalho, que, na verdade, nem é tão complicada: consiste, basicamente, em destruir o autor do texto que ousou criticar o governo.
Destruí-lo significa isto: esmagá-lo, mexer com a sua vida, com a sua história, com seu nome, até com a sua aparência, pouco importa. Não é uma guerra de argumentos, claro! Eles não são necessários, e isso é o mais tentador do trabalho: se alguém critica os Kirchner, isso se deve ao fato de ser reacionário, fascista, atrasado; de estar a serviço da Sociedade Rural, do neoliberalismo e do capitalismo selvagem; ou, então, só o faz porque os donos do veículo de comunicação o obrigaram a escrever aquilo.
Para esse exército de esforçados servidores, não importa, ou importa muito pouco, o que diz o artigo em questão. Coitados! No apuro, nem tiveram tempo de lê-lo. Sabujos treinados, o título já lhes dá a pista. Temo que, de forma maliciosa, um dia alguém ainda escreverá um longo elogio ao governo, deixando claro na última linha que todo o que veio antes é uma farsa. Que horror! Quantos blogueiros K vão cair na armadilha! Algum deles chegará até a última linha?
O slogan dos nossos heróis parece ser este: é preciso entrar logo nos fóruns da Internet, nos blogs, no Twitter e deixar a marca. É preciso pautar o debate e fazê-lo antes dos inimigos: aqueles que gostaram do texto. Para estes, também haverá fogo, é claro!, mas sem perder de vista que são apenas soldados. O general é o autor do artigo. É preciso convencê-lo de que teria sido melhor escrever na revista dos bombeiros voluntários de seu bairro.
Será que é a admiração que me leva a identificar um blogueiro K e a não confundi-lo com qualquer outro defensor do governo? Não, não é a admiração, mas o cheiro! Há um certo ar de família nos blogueiros oficiais. Eles são madrugadores, são furiosos, não perdem tempo discutindo motivos; ficam horas diante das telas de computador, amam a desqualificação e não mostram a menor intenção de ceder nada a ninguém, nunca!
Outra característica comum é a sua reação quando alguém os descobre e os acusa — com total injustiça, é claro! — de trabalhar a soldo da Casa Rosada. Então seus mais baixos instintos despertam (se é que já não estavam despertos) e atacam sem piedade. Alguém comentava outro dia que era muito fácil entrar em um fórum e distingui-los: “Não argumentam; só insultam e agridem”.
Dias atrás, publiquei no Twitter a suspeita de que essa tropa de choque da Internet também tem a sua divisão nos programas de rádio que veiculam as mensagens dos ouvintes. Alguns telefonemas em certo programa da manhã me pareceram muito suspeitos. Alguém respondeu que era assim mesmo: são os “telefonadores K”, superiores, na hierarquia, aos “tuiteiros K”, mas inferiores aos blogueiros K “, uma espécie de tropa de elite. Concluí que nem mesmo os Kirchner, tão igualitários, conseguiram impedir que, em suas fileiras, reine a luta de classes e a discriminação.
Dada a minha intenção de ser um dia um desses soldados, estou cheio de perguntas. Quem os comanda? Quantos são? Como são recrutados? Quantas horas é preciso dedicar à causa? E o grande tema: ok, aceito que não recebam um peso, que seja tudo vocação, que seja tudo espontâneo…, mas alguém poderia me dizer a quanto chega esse soldo que não cobram?
A propósito: também me pergunto como este corpo tão coeso, tão uniforme, lerá este texto que lhe dedico. Entenderão que está escrito com a intenção do elogio, do reconhecimento, ou vão acreditar, numa leitura superficial, que isto é uma crítica, mais uma das muitas que recebem nestes tempos? Há apenas uma forma de sabê-lo: dar o texto por terminado e ouvi-los. Soldados, se chegaram até aqui, sigam em frente; vocês têm a palavra.
23 de fevereiro de 2012
Reinaldo Azevedo
Um painel político do momento histórico em que vivem o país e o mundo. Pretende ser um observatório dos principais acontecimentos que dominam o cenário político nacional e internacional, e um canal de denúncias da corrupção e da violência, que afrontam a cidadania. Este não é um blog partidário, visto que partidos não representam idéias, mas interesses de grupos, e servem apenas para encobrir o oportunismo político de bandidos. Não obstante, seguimos o caminho da direita. Semitam rectam.
"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)
"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário