A amiga islâmica disse: “Vocês, mulheres ocidentais, escravizam-se a partir da imagem”
Era uma manhã quente em Munique no início da primavera. Eu resolvera que se tratava de um esforço demasiadamente largo vencer as barreiras que o aprendizado da língua tedesca me impunha no Brasil e corri para estudar alemão na Baviera.
Eis que no primeiro dia de aula, com o constrangimento inerente a todos os inícios, eu observo um par de olhos pretos me observando curiosamente e percebi que estava diante da mágica e da beleza de uma amizade. Ela era islâmica e vestia o chador. Eu, brasileiríssima, com toda a espontaneidade de uma nordestina tagarela. As diferenças eram evidentes e relacionadas a tudo. Mas algo mais forte nos unia e dispensava explicação.
Havia uma troca de gentilezas diuturna: a cada intervalo, um chocolate, um mimo. Um dia, ela recusou: começara o
Ramadã. Eu, inconformada, mas compreensiva, acompanhei aquela abnegação. Finalmente, um mês depois, o jejum chegou ao fim. E eu, repleta de ignorância: “Ufa, agora posso voltar a lanchar contigo!”
A lição que aprendi naquele dia marcou minha vida de tal forma que passei a enxergar o mundo com outros olhos. Ela carinhosamente me explicou: “Vocês, mulheres ocidentais, acham que são livres, feministas e independentes.
Mas veja bem. Dificilmente vocês saem de casa sem se preocupar com a aparência. Escravizamse a partir da imagem. E produzem a autoestima como reflexo da opinião dos outros. Eu, ao me cobrir, revelo qualidades, como capacidade, sensibilidade e inteligência.” E completou: “O Ramadã é o período mais especial para mim. É quando desenvolvo a minha generosidade e me esforço para ser uma pessoa melhor.”
A questão me levou a reflexões sobre o papel da mulher na sociedade e sobre as condições da mulher ocidental. O problema acontece quando algumas feministas se arvoram no papel de ditar o que é “certo”.
A tentação da racionalidade parece ser mais forte do que a expressão e a busca da felicidade de todas nós. Por que precisamos elaborar julgamentos morais acerca do outro e da opção de vida que tomou? Ao pretender determinar o “caminho a ser seguido” por todas as mulheres — carreira, sucesso profissional, ausência de valorização do corpo, negação da própria sensualidade, questionamentos quanto à devoção aos filhos, o apego à família e à vaidade —, o feminismo de algumas nos impede de sermos verdadeiramente livres e nos amarra a um modelo de “verdade” que talvez não seja aquele que nos faça efetivamente felizes.
Não ouso diminuir a importância das conquistas realizadas ao longo dos séculos. Foi sacrificante chegar onde estamos e eu escrevo na condição de representante dessas vitórias. A excentricidade das pioneiras decorreu justamente da falta de enquadramento nos papéis a elas relegados por uma sociedade machista e misógina.
Entretanto, é chegada a hora de sermos livres, a partir de um novo olhar sobre o feminismo, de maneira a criar um discurso de valorização da mulher sem que ela se traia em sua intimidade e gostos pessoais em nome de um discurso de “verdade” abstrato e descontextualizado. Sem negar a importância do passado, mas conscientes da necessidade de remover as distinções que nos engessam. Louvar os progressos obtidos, mas reconhecer que precisamos de causas mais sofisticadas e esclarecidas agora. Enfim, queremos a liberdade para podermos ser quem somos, ainda que haja a ruptura com o discurso sexista e feminista que algumas teimam em reproduzir.
9 de março de 2012
Roberta Fragoso Kaufmann
Fonte: O Globo, 08/03/2012
Um painel político do momento histórico em que vivem o país e o mundo. Pretende ser um observatório dos principais acontecimentos que dominam o cenário político nacional e internacional, e um canal de denúncias da corrupção e da violência, que afrontam a cidadania. Este não é um blog partidário, visto que partidos não representam idéias, mas interesses de grupos, e servem apenas para encobrir o oportunismo político de bandidos. Não obstante, seguimos o caminho da direita. Semitam rectam.
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"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)
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