Em terra de cego
No avião, de Brasília aqui para o Rio, uma garota, sentada lá no meio, sozinha, chorava desesperada e convulsivamente, antes mesmo da decolagem. Uma aeromoça, que me conhecia, tentou acalmá-la, mas não conseguiu. Foi à primeira fila, onde eu estava, na beira da janela:
- O senhor podia nos fazer um grande favor? Está ali aquela moça, chorando muito e alto, incomodando todo mundo, apavorada porque é a primeira vez que viaja de avião. Além disso, é deficiente física. Posso trazê-la para ficar aqui a seu lado e o senhor conversar com ela, para ver se a acalma?
Claro que sim. A jovem veio, agarrada aos ombros da aeromoça, e foi posta na cadeira do meio, junto à minha. Soluçava sem parar. Comecei imediatamente a única conversa possível:
- Estou vendo que você tem medo de avião. Não é só você não. Na primeira viagem, todo mundo tem. Depois, você aprende que é mais seguro viajar de avião do que de carro ou ônibus e vai se acostumando até gostar.
Eu falava e ela soluçava, mas cada vez mais baixinho. O avião levantou vôo e eu lhe mostrei, lá embaixo, o imenso tapete de luzes de Brasília:
Olha lá, como daqui de cima a cidade é bonita, toda iluminada.
Ela cortou um soluço e voltou-se para mim com seus perplexos olhos cheios de lágrimas:
- Eu não posso ver nada. Sou deficiente visual. Sou cega.
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O PIAUÍ NOS SALVOU
Quem ficou desesperado fui eu. Quase perdi a voz. Continuei falando, como se não tivesse dado importância ao que ela disse. E ela me contou que era de Floriano, no Piauí, estudava no Rio, tinha ido ver a família, vários dias de ônibus pela Bahia, e estava voltando de avião para não perder as aulas.
Acabamos descobrindo que em Floriano ela tinha sido aluna de minha irmã freira, no Colégio das Mercedarias. Contou histórias, daí a pouco, não chorava mais, começou a rir e a aeromoça olhava para mim sem acreditar.
Ela me disse que estudava no Instituto Benjamin Constant, na Urca, no Rio, a mais antiga escola para cegos da América Latina, fundada em 1854. No aeroporto, alguém do Instituto a esperava e a doce menina se despediu de mim com seus perplexos olhos vazios já sem nenhuma lágrima.
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MANCADA DE SERRA
Em 2002, em plena campanha eleitoral, lembrei-me da menina dos olhos vazios, quando os jornais contaram que Serra, aqui no Rio, fora abordado por uma fonoaudióloga, também cega, funcionária do Benjamin Constant, que reclamou da falta de atenção do governo para com os deficientes físicos. Serra não sabia o que era aquilo:
- Benjamin Constant, o que é isso?
O então deputado Márcio Fortes socorreu, Serra ficou envergonhado. Para quem só conheceu uma vaca aos 50 anos, não saber o que é o Instituto Benjamin Constant até que não é nada demais. Do Rio, Serra não sabe nada mesmo.
No avião, de Brasília aqui para o Rio, uma garota, sentada lá no meio, sozinha, chorava desesperada e convulsivamente, antes mesmo da decolagem. Uma aeromoça, que me conhecia, tentou acalmá-la, mas não conseguiu. Foi à primeira fila, onde eu estava, na beira da janela:
- O senhor podia nos fazer um grande favor? Está ali aquela moça, chorando muito e alto, incomodando todo mundo, apavorada porque é a primeira vez que viaja de avião. Além disso, é deficiente física. Posso trazê-la para ficar aqui a seu lado e o senhor conversar com ela, para ver se a acalma?
Claro que sim. A jovem veio, agarrada aos ombros da aeromoça, e foi posta na cadeira do meio, junto à minha. Soluçava sem parar. Comecei imediatamente a única conversa possível:
- Estou vendo que você tem medo de avião. Não é só você não. Na primeira viagem, todo mundo tem. Depois, você aprende que é mais seguro viajar de avião do que de carro ou ônibus e vai se acostumando até gostar.
Eu falava e ela soluçava, mas cada vez mais baixinho. O avião levantou vôo e eu lhe mostrei, lá embaixo, o imenso tapete de luzes de Brasília:
Olha lá, como daqui de cima a cidade é bonita, toda iluminada.
Ela cortou um soluço e voltou-se para mim com seus perplexos olhos cheios de lágrimas:
- Eu não posso ver nada. Sou deficiente visual. Sou cega.
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O PIAUÍ NOS SALVOU
Quem ficou desesperado fui eu. Quase perdi a voz. Continuei falando, como se não tivesse dado importância ao que ela disse. E ela me contou que era de Floriano, no Piauí, estudava no Rio, tinha ido ver a família, vários dias de ônibus pela Bahia, e estava voltando de avião para não perder as aulas.
Acabamos descobrindo que em Floriano ela tinha sido aluna de minha irmã freira, no Colégio das Mercedarias. Contou histórias, daí a pouco, não chorava mais, começou a rir e a aeromoça olhava para mim sem acreditar.
Ela me disse que estudava no Instituto Benjamin Constant, na Urca, no Rio, a mais antiga escola para cegos da América Latina, fundada em 1854. No aeroporto, alguém do Instituto a esperava e a doce menina se despediu de mim com seus perplexos olhos vazios já sem nenhuma lágrima.
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MANCADA DE SERRA
Em 2002, em plena campanha eleitoral, lembrei-me da menina dos olhos vazios, quando os jornais contaram que Serra, aqui no Rio, fora abordado por uma fonoaudióloga, também cega, funcionária do Benjamin Constant, que reclamou da falta de atenção do governo para com os deficientes físicos. Serra não sabia o que era aquilo:
- Benjamin Constant, o que é isso?
O então deputado Márcio Fortes socorreu, Serra ficou envergonhado. Para quem só conheceu uma vaca aos 50 anos, não saber o que é o Instituto Benjamin Constant até que não é nada demais. Do Rio, Serra não sabe nada mesmo.
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