Essa semana a internet descobriu tardiamente que um encanador na Zeladoria da Câmara Municipal de São Paulo tem o curioso salário de R$11 mil por mês. Um chaveiro da mesma seção recebe R$ 10,9 mil, e um operador de máquina copiadora fatura R$ 9,3 mil mensais, confome informa o Último Segundo.
Nada seria mais natural que tais cargos, que exigem apenas o ensino fundamental para contratação, pagassem mais num órgão público do que profissões que exigem ensino superior. É a lógica do Estado diminuindo a desigualdade, aplicada de maneira mais estrita.
Por um lado, vemos a atávica grita a favor da educação, como uma panacéia para todos os males que acometem o país – como demonstrei no Ordem Livre, uma mitomania fraca e contraproducente – a um só tempo em que é repapagaiado o discurso culpando a desigualdade social, aliado á crença de que o Estado, “corrigindo” o mercado, deve garantir uma maior “distribuição de renda”. Há uma pequena contradição excludente aí.
Podemos muito bem defender a educação, ainda que não a forma como o fazem – a concentração de poder no MEC do ENEM, do kit gay e de tudo o que é desastroso em nosso sistema nacional de Educação – desde que saibamos que cada ato estatal (um ato que obriga toda a comunidade a agir de determinada forma) é sempre um ato de estímulo ou de punição a uma determinada atividade.
Leis punindo o assassinato ou a falsa comunicação de crime pretendem que tais coisas não aconteçam por desestímulo. Com um Estado tão inchado, que responde por cerca de 35% da nossa economia, usualmente se esquece de que o Estado também gera estímulos – um cargo público pagando R$6 mil para quem tem ensino médio não é exatamente um estímulo à educação superior.
Curiosamente, o Estado é entendido como o promotor da justiça social e da distribuição de renda, embora os salários dos cargos estatais sejam hierarquizados e, ao ter de cobrar muitos impostos para pagar poucas pessoas, o Estado acabe obrigando muitos a ganharem pouco na iniciativa privada para que poucos ganhem muito em cargos sem tantas exigências. Não há maior promotor da desigualdade do que o Estado.
O que esse discurso deixa no limbo são, justamente, as pessoas sem muita escolaridade. É claro que podemos almejar a construção de uma sociedade utópica futura onde todos terão doutorado, ouvirão Shostakovich, entenderão de James Joyce, serão geniosos como Gödel e todo mundo será neurocirurgião.
Para isso, precisamos primeiro definir que a sociedade, através de mecanismo de educação coletiva, tem uma forma de ser canônica ou correta, e que os homens podem ser moldados até esse modelo de ensino superior.
Mas isso é um apontamento futuro. Enquanto isso, o que se poderá fazer com as pessoas com baixa escolaridade? Talvez na sociedade futura não precisemos de faxineiros, pois a Rosie, empregada dos Jetsons, cuidará de tudo. Mas enquanto o futuro não chega? O que fazer com a dona Zuleide de carne e osso que tem um serviço mais importante e higiênico do que muito colunista da Carta Capital, mas não tem os diplomas que essa turma tem?
Pior: se os rendimentos precisam mesmo ser atrelados ao estudo, comerciantes e prestadores de serviço, que vão da manicure e do carro da pamonha até a Apple e o Google, devem ficar excluídos da zona economicamente ativa, ou serem hiper taxados para garantir a atuação hierárquica estatal?
O dilema está montado: o Estado, com seus empregos hiper faturados, é o refúgio dos diplomados que buscam altos (e garantidos) rendimentos, apesar da crença no Estado “consertando” a desigualdade do mercado. Também é o Estado que deve “promover” educação de qualidade, para garantir diplomas (e não exatamente educação) para todos. Mas, se é para consertar a “desigualdade”, por que não garantir que um encanador, um manobrista, um chaveiro ou o boy do xerox tenham o mesmo rendimento que um juiz, um cirurgião cardiovascular, um engenheiro de petróleo?
Não adianta supor que no futuro todos terão tais cargos, pois é exatamente esse o modelo atual – com o diferencial de que vale mais a pena se esforçar para ser apaniguado de alguma sinecura estatal, ou ser nomeado para algum cargo de confiança por algum político, do que estudar. Ou podemos lutar contra tais absurdos, ou não cair na esparrela fácil de todo discurso inimigo da “diversidade” que acaba por promovê-la (inclusive em termos pecuniários).
Já afirmei em texto no blog de Augusto Nunes, na Veja, o erro dessa visão de justiça. É claro que há um parâmetro de rendimentos mínimo, abaixo do qual urge alguma atitude para evitar condições degradantes do que entendemos como ações com dignidade humana.
Porém, como Robert Nozick aponta de erro na aclamadíssima teoria de John Rawls, é preciso entender quem está ganhando bem ou mal em uma sociedade para determinar se ela é justa. Se o roubo, a corrupção e as atividades não produtivas, repetitivas e meramente funcionais são mais recompensadas do que os esfainantes estudos, a inovação, a criatividade, a resolução de problemas e trabalhados que garantam o aumento da qualidade de vida de todos.
Tal desequilíbrio também acontece indiretamente. Com os impostos sobre o consumo (o que impede, justamente, que pobres acedam à classe média), que parecem querer punir quem pode consumir, desestimulando via estatal alguns setores, alguns serviços, pela própria natureza, encarecem insanamente.
Conforme reportagem da Folha, um mecânico recebe por hora uma média de R$88, enquanto um clínico geral recebe, em média, R$45 por hora. Claro que há uma alta complexidade: um mecânico hoje não é só o cara que mexe com graxa, mas, com as novas tecnologias, tem de saber até de mecatrônica. No entanto, serão apenas esses os gastos infinitos da indústria automobilística que fazem um catalisador para o seu carro sair mais caro que uma endoscopia?
Tampouco é demais lembrar que, afinal, um burocrata, com uma canetada, define o orçamento, os gastos, os salários (inclusive seu próprio) e até a marca do café do corredor sem precisar prestar contas de nada – na dúvida, apenas se aumenta impostos ou deixa-se a conta para o próximo da fila. Sem um sistema de preços, como já lembrava Ludwig von Mises, não estamos em uma economia de mercado, e sim numa economia de comando. O burocrata apenas determina, e o mercado, tungado violentamente, arca com as conseqüências.
Podemos lutar contra a desigualdade de muitas formas. Todavia, se for para apenas buscar compensações econômicas, como se tal desigualdade financeira fosse a origem de todos os males, não se deveria achar estranho um encanador estatal ter um faturamento maior do que professores com doutorado. É o que muitos professores com doutorado pregam contra a liberdade, afinal.
04 de julho de 2012
Flavio Morgenstern é redator e tradutor.
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