Lendo o nonsense de Dilma sobre o telefone mágico instalado na central de bolinhos de chuva de Nova Friburgo, presumi – embora o dilmês sempre dê margem a inúmeros sentidos em sua falta de sentido – que quem ficou na padaria, “na madrugada de vários dias”, foi o Pezão, não ela.
Dilma fez aquele sobrevoo à la Capitão Hamilton na região devastada, deu uma descidinha básica para encenar uma careta compungida, solucionou na hora o problema das enchentes com uma represa construída na cabeça, separando o neurônio em duas metades, e embarcou de volta ao clima demi-sec de Brasília. O Pezão, a contragosto, ficou por lá – já que Cabral, enquanto a população serrana fazia splash, já tinha combinado um squash no condomínio Delta de Mangaratiba, onde graças a Deus fazia sol, com o Cavendish.
Mas não importa se foi Dilma ou Pezão o náufrago da padaria. Essa história do telefone do padeiro, reproduzida pelo Blog do Planalto, não seria plausível nem no pândego Diário da presidenta publicado na revista piauí: Pezão ficou ali ilhado, sozinho, descalço, dia e noite, insone, heroico, comendo pão velho e duro, comandando os trabalhos de resgate na região a partir do único aparelho de telefone ativo em toda a cidade, enquanto seus auxiliares diretos, com potentes iPhones, flanavam por aí trocando SMS e atualizando seus Facebooks.
Essa padaria fantástica, à parte a nova fornada de empulhações que agora já assa às cinzas o tal Programa Nacional de Gestão de Risco e Resposta a Desastres Naturais, ontem anunciado por Dilma, me trouxe à lembrança uma historinha que era contada, com muita verve, pelo veterano repórter Durval Ferreira ─ saudosíssimo colega da revista MANCHETE, remanescente da época romântica do jornalismo policial em São Paulo. Os chamados setoristas faziam plantão, juntos, nas delegacias centrais, à espera de crimes que valessem a saída ou da chegada de infratores que valessem a entrada.
Numa tarde de domingo particularmente vazia de sangue e fatos, chega uma notícia que, num dia bom, não daria nem um rodapé de jornal: um português, dono de padaria na Liberdade ─ daqui para frente, vamos chamá-lo pelo exótico nome de Seu Mané, para não identificá-lo ─ tinha sido recolhido ao distrito por aplicar uma coça na mulher, mulata sestrosa de múltiplos talentos.
Aos policiais, de homem para homem, contou sua desgraça: contratara um pintor para dar um trato na fachada do estabelecimento e o gajo acabou dando um trato na fachada e na retaguarda de sua mulher. Pega em flagrante, nos fundos da padaria, levou uma bifa.
O pintor, bem, o pintor se mandou, para nunca mais ser visto na Liberdade ou na falta dela. Seu Mané acabaria perdoando a moça – que era mulata para muitos e incontáveis talheres e também perdoou Seu Mané.
Mas os setoristas de plantão, que ouviram a história de um policial que deu com a língua nos dentes, não perdoaram a desdita do português. Figuraço: baixo, careca, roliço, irritadiço, um tipo do baixo mundo de Eça, língua armada com os piores palavrões desde Camões. No dia seguinte, num jornal mais popular, saiu a inevitável manchete:
─ Pintor passa o pincel na mulher do padeiro.
Bem, no dia seguinte esses jornais embrulhariam bacalhau, o caso estaria encerrado. Mas o pior, para Seu Mané, ainda estava por vir. A temporada era fraca, nada acontecia de bom ─ ou ruim ─ nos plantões policiais daquela semana, os setoristas tinham tempo de sobra. E então começou o bullying que levaria o português à loucura:
─ É da padaria?
─ Sim senhôre.
─ O sr. faz pizza para viagem?
─ Perfeitamente.
─ Dá para mandar o pintor trazer?
Antes que o jornalista desligasse, às gargalhadas, Seu Mané já tinha mandado o sujeitinho colocar a pizza nos lugares mais improváveis. No dia seguinte:
─ Seu Mané?
─ Sim senhôre.
─ Aqui é o pintor. Acho que esqueci a broxa aí.
Mané caiu de novo. E cairia todos os dias, durante quase um mês, diante de um interminável estoque de variações de maldades em torno do pintor lançadas pelos jornalistas, que se revezavam na empreitada cruel. Até que os repórteres se cansaram. E desistiram de infernizá-lo. Deixaram Seu Mané em paz ─ que, provavelmente à la Nelson Rodrigues, deve ter pedido perdão à mulher por ter sido traído. Foram felizes para sempre ─ ou até aparecer o pedreiro, mas aí é outra história.
Os flagelados sobreviventes das enchentes anuais de Nova Friburgo e da região serrana, iludidos sistematicamente pelo governo do Rio com a promessa de obras que nunca serão feitas, agora tem sobre suas cabeças, como manto protetor à prova de chuvas, deslizamentos e mortes, um certo Programa Nacional de Gestão de Risco e Resposta aos Desastres Naturais.
Não forma nem sigla: PNGRRDN parece sequência de letras de câmbio automático. No lugar do telefone da padaria, um rádio transmissor móvel, para Pezão comunicar o próximo desastre sem precisar comer pão velho. Cabral, é certo, estará comendo brioche em Paris. Esse é o avanço que empolga Dilma: transmitir o temporal pela “central móvel de comunicação”. A chuva também é móvel, bem como as encostas.
E mais: não faz sentido ligar para a padaria e aplicar no coitado do padeiro de Nova Friburgo uma pegadinha do tipo:
─ Por favor, a Dilma está? Aqui é o Pezão.
O trote do pintor, numa escala muito mais dramática, porque eventualmente letal, vem sendo dado sistematicamente na população por governantes que traem descaradamente os pobres manés desta vida.
Celso Arnaldo Araujo
10 de agosto de 2012
Augusto Nunes
Dilma fez aquele sobrevoo à la Capitão Hamilton na região devastada, deu uma descidinha básica para encenar uma careta compungida, solucionou na hora o problema das enchentes com uma represa construída na cabeça, separando o neurônio em duas metades, e embarcou de volta ao clima demi-sec de Brasília. O Pezão, a contragosto, ficou por lá – já que Cabral, enquanto a população serrana fazia splash, já tinha combinado um squash no condomínio Delta de Mangaratiba, onde graças a Deus fazia sol, com o Cavendish.
Mas não importa se foi Dilma ou Pezão o náufrago da padaria. Essa história do telefone do padeiro, reproduzida pelo Blog do Planalto, não seria plausível nem no pândego Diário da presidenta publicado na revista piauí: Pezão ficou ali ilhado, sozinho, descalço, dia e noite, insone, heroico, comendo pão velho e duro, comandando os trabalhos de resgate na região a partir do único aparelho de telefone ativo em toda a cidade, enquanto seus auxiliares diretos, com potentes iPhones, flanavam por aí trocando SMS e atualizando seus Facebooks.
Essa padaria fantástica, à parte a nova fornada de empulhações que agora já assa às cinzas o tal Programa Nacional de Gestão de Risco e Resposta a Desastres Naturais, ontem anunciado por Dilma, me trouxe à lembrança uma historinha que era contada, com muita verve, pelo veterano repórter Durval Ferreira ─ saudosíssimo colega da revista MANCHETE, remanescente da época romântica do jornalismo policial em São Paulo. Os chamados setoristas faziam plantão, juntos, nas delegacias centrais, à espera de crimes que valessem a saída ou da chegada de infratores que valessem a entrada.
Numa tarde de domingo particularmente vazia de sangue e fatos, chega uma notícia que, num dia bom, não daria nem um rodapé de jornal: um português, dono de padaria na Liberdade ─ daqui para frente, vamos chamá-lo pelo exótico nome de Seu Mané, para não identificá-lo ─ tinha sido recolhido ao distrito por aplicar uma coça na mulher, mulata sestrosa de múltiplos talentos.
Aos policiais, de homem para homem, contou sua desgraça: contratara um pintor para dar um trato na fachada do estabelecimento e o gajo acabou dando um trato na fachada e na retaguarda de sua mulher. Pega em flagrante, nos fundos da padaria, levou uma bifa.
O pintor, bem, o pintor se mandou, para nunca mais ser visto na Liberdade ou na falta dela. Seu Mané acabaria perdoando a moça – que era mulata para muitos e incontáveis talheres e também perdoou Seu Mané.
Mas os setoristas de plantão, que ouviram a história de um policial que deu com a língua nos dentes, não perdoaram a desdita do português. Figuraço: baixo, careca, roliço, irritadiço, um tipo do baixo mundo de Eça, língua armada com os piores palavrões desde Camões. No dia seguinte, num jornal mais popular, saiu a inevitável manchete:
─ Pintor passa o pincel na mulher do padeiro.
Bem, no dia seguinte esses jornais embrulhariam bacalhau, o caso estaria encerrado. Mas o pior, para Seu Mané, ainda estava por vir. A temporada era fraca, nada acontecia de bom ─ ou ruim ─ nos plantões policiais daquela semana, os setoristas tinham tempo de sobra. E então começou o bullying que levaria o português à loucura:
─ É da padaria?
─ Sim senhôre.
─ O sr. faz pizza para viagem?
─ Perfeitamente.
─ Dá para mandar o pintor trazer?
Antes que o jornalista desligasse, às gargalhadas, Seu Mané já tinha mandado o sujeitinho colocar a pizza nos lugares mais improváveis. No dia seguinte:
─ Seu Mané?
─ Sim senhôre.
─ Aqui é o pintor. Acho que esqueci a broxa aí.
Mané caiu de novo. E cairia todos os dias, durante quase um mês, diante de um interminável estoque de variações de maldades em torno do pintor lançadas pelos jornalistas, que se revezavam na empreitada cruel. Até que os repórteres se cansaram. E desistiram de infernizá-lo. Deixaram Seu Mané em paz ─ que, provavelmente à la Nelson Rodrigues, deve ter pedido perdão à mulher por ter sido traído. Foram felizes para sempre ─ ou até aparecer o pedreiro, mas aí é outra história.
Os flagelados sobreviventes das enchentes anuais de Nova Friburgo e da região serrana, iludidos sistematicamente pelo governo do Rio com a promessa de obras que nunca serão feitas, agora tem sobre suas cabeças, como manto protetor à prova de chuvas, deslizamentos e mortes, um certo Programa Nacional de Gestão de Risco e Resposta aos Desastres Naturais.
Não forma nem sigla: PNGRRDN parece sequência de letras de câmbio automático. No lugar do telefone da padaria, um rádio transmissor móvel, para Pezão comunicar o próximo desastre sem precisar comer pão velho. Cabral, é certo, estará comendo brioche em Paris. Esse é o avanço que empolga Dilma: transmitir o temporal pela “central móvel de comunicação”. A chuva também é móvel, bem como as encostas.
E mais: não faz sentido ligar para a padaria e aplicar no coitado do padeiro de Nova Friburgo uma pegadinha do tipo:
─ Por favor, a Dilma está? Aqui é o Pezão.
O trote do pintor, numa escala muito mais dramática, porque eventualmente letal, vem sendo dado sistematicamente na população por governantes que traem descaradamente os pobres manés desta vida.
Celso Arnaldo Araujo
10 de agosto de 2012
Augusto Nunes
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