Tinha de ser em Tupã o cartório que lavrou a primeira escritura brasileira de um “casal de três”: um homem e duas mulheres. Tupã, bem antes de ser uma cidade do interior de São Paulo, era o deus do trovão dos guaranis. E nós, caras-pálidas, sabemos que os índios nunca se interessaram pela monogamia. Por que a maioria de nós sente uma necessidade visceral de regular o amor e de se apropriar do outro a qualquer custo?
O trio familiar – “triângulo” virou coisa antiga por sugerir traição – é do Rio de Janeiro e só foi para Tupã oficializar a união estável porque está ali uma tabeliã de cabeça aberta: a paulistana Cláudia do Nascimento Domingues. Ela faz doutorado na USP sobre “famílias poliafetivas”. Um nome pomposo que evita a armadilha da “poligamia” e confirma uma tendência: adaptar o Direito a uma realidade bem mais plural que o casamento tradicional.
A tabeliã Cláudia – que vive com um homem uma união estável e sem filhos – tem sido procurada nos últimos meses por vários tipos de famílias, ansiosas para registrar o “poliamor” em cartório, assegurar direitos e comemorar visibilidade social. Família de três mulheres. Família de dois homens e uma mulher. Família de quatro pessoas: dois homens que moram no Brasil e suas duas parceiras que viajam muito. “Esta última é uma relação estável de cinco anos, e todos os amigos sabem que se relacionam entre si. É uma união ampla, conjunta, múltipla”, diz Cláudia.
A série de adjetivos revela uma dificuldade natural: como classificar o mundo novo do amor sem amarras. Como revestir de respeito e legitimidade o que muitos chamariam pejorativamente de “suruba”. Numa sociedade estruturada na monogamia, onde casais prometem, no altar, no cartório ou na cama, fidelidade até que a morte os separe, como aceitar formatos de família tão, digamos, criativos?
Os casais de três ou quatro pessoas que têm buscado o cartório de Tupã fazem parecer careta a “relação aberta” da geração hippie. Até os casais gays, chamados de homoafetivos, começam a ter um ar conservador... caso exijam exclusividade no afeto. No próximo século, segundo Cláudia, cuja orientadora na USP é uma desembargadora do Rio Grande do Sul, Maria Berenice Dias, não olharemos o homo ou o heterossexual pela distinção de gêneros: “Será uma preferência, como quem gosta de vinho ou de cerveja”.
“Onde está escrito que família precisa ser de um tipo só?”, pergunta Cláudia. “Não estamos inventando nada, não é? Na verdade, estamos voltando ao passado, aos gregos, ou então imitando os índios.”
A televisão já ilustra de forma folclórica os “poliafetivos compulsivos”, aqueles homens que elas costumavam chamar de “galinhas”. É o caso de Cadinho, personagem de Alexandre Borges na novela Avenida Brasil, com suas três mulheres. Foram elas, cansadas de ser enganadas, que decidiram compartilhar Cadinho num contrato com regras, horários, direitos e deveres. Em sua tese de doutorado, Cláudia pretende incluir papos com o autor da novela, João Emanuel Carneiro, e também com Pedro Bial, por seu programa das quintas-feiras, Na moral.
Para oficializar a união estável do trio do Rio, as primeiras preocupações de Cláudia foram: algum deles é casado? Não. Algum tem impedimento legal para viver em conjunto? Não. “Marquei com o homem e as duas mulheres para entender seus motivos. Não queriam casar. Só queriam definir regras em contas conjuntas, compra de imóvel, herança. Parentes e amigos já os tratavam como família havia alguns anos. Lavramos a escritura no fim de março. Até onde sabemos, é a primeira do tipo no Brasil.”
Apesar de pioneira, essa escritura é mais aceitável porque todos estão de acordo. E quando uma pessoa casada tenta registrar no cartório uma família paralela, sem conhecimento do cônjuge, para garantir os direitos do(a) amante? “É uma questão para a Justiça decidir”, diz Cláudia. Se a pessoa não se divorciou, pode até estar separada, mas, por ter uma união civil reconhecida, não pode legalmente registrar em contrato público uma família paralela. Mesmo que a relação, correta ou não, seja de amor. “Quando o Direito não oferece alternativa, as pessoas sempre dão um jeito. Fazem um contrato privado.”
Um dos casais que procuraram a tabeliã planeja driblar a lei. Eles são casados oficialmente, mas há uma terceira pessoa aceita pelos dois. Pretendem então se divorciar para, depois, constituir uma “família poliafetiva”. Tortuoso, não? Pois isso se chama realidade.
São exceções, mas, quem sabe, moram no apartamento ao lado do seu. E, caso encarem com honestidade o “poliamor”, quem somos nós – alguns nos engalfinhando por casos extraconjugais passageiros ou longos – para julgar o que é certo e errado na expressão do afeto e do desejo?
25 de agosto de 2012
Ruth de Aquino, Época
O trio familiar – “triângulo” virou coisa antiga por sugerir traição – é do Rio de Janeiro e só foi para Tupã oficializar a união estável porque está ali uma tabeliã de cabeça aberta: a paulistana Cláudia do Nascimento Domingues. Ela faz doutorado na USP sobre “famílias poliafetivas”. Um nome pomposo que evita a armadilha da “poligamia” e confirma uma tendência: adaptar o Direito a uma realidade bem mais plural que o casamento tradicional.
A tabeliã Cláudia – que vive com um homem uma união estável e sem filhos – tem sido procurada nos últimos meses por vários tipos de famílias, ansiosas para registrar o “poliamor” em cartório, assegurar direitos e comemorar visibilidade social. Família de três mulheres. Família de dois homens e uma mulher. Família de quatro pessoas: dois homens que moram no Brasil e suas duas parceiras que viajam muito. “Esta última é uma relação estável de cinco anos, e todos os amigos sabem que se relacionam entre si. É uma união ampla, conjunta, múltipla”, diz Cláudia.
A série de adjetivos revela uma dificuldade natural: como classificar o mundo novo do amor sem amarras. Como revestir de respeito e legitimidade o que muitos chamariam pejorativamente de “suruba”. Numa sociedade estruturada na monogamia, onde casais prometem, no altar, no cartório ou na cama, fidelidade até que a morte os separe, como aceitar formatos de família tão, digamos, criativos?
Os casais de três ou quatro pessoas que têm buscado o cartório de Tupã fazem parecer careta a “relação aberta” da geração hippie. Até os casais gays, chamados de homoafetivos, começam a ter um ar conservador... caso exijam exclusividade no afeto. No próximo século, segundo Cláudia, cuja orientadora na USP é uma desembargadora do Rio Grande do Sul, Maria Berenice Dias, não olharemos o homo ou o heterossexual pela distinção de gêneros: “Será uma preferência, como quem gosta de vinho ou de cerveja”.
“Onde está escrito que família precisa ser de um tipo só?”, pergunta Cláudia. “Não estamos inventando nada, não é? Na verdade, estamos voltando ao passado, aos gregos, ou então imitando os índios.”
A televisão já ilustra de forma folclórica os “poliafetivos compulsivos”, aqueles homens que elas costumavam chamar de “galinhas”. É o caso de Cadinho, personagem de Alexandre Borges na novela Avenida Brasil, com suas três mulheres. Foram elas, cansadas de ser enganadas, que decidiram compartilhar Cadinho num contrato com regras, horários, direitos e deveres. Em sua tese de doutorado, Cláudia pretende incluir papos com o autor da novela, João Emanuel Carneiro, e também com Pedro Bial, por seu programa das quintas-feiras, Na moral.
Para oficializar a união estável do trio do Rio, as primeiras preocupações de Cláudia foram: algum deles é casado? Não. Algum tem impedimento legal para viver em conjunto? Não. “Marquei com o homem e as duas mulheres para entender seus motivos. Não queriam casar. Só queriam definir regras em contas conjuntas, compra de imóvel, herança. Parentes e amigos já os tratavam como família havia alguns anos. Lavramos a escritura no fim de março. Até onde sabemos, é a primeira do tipo no Brasil.”
Apesar de pioneira, essa escritura é mais aceitável porque todos estão de acordo. E quando uma pessoa casada tenta registrar no cartório uma família paralela, sem conhecimento do cônjuge, para garantir os direitos do(a) amante? “É uma questão para a Justiça decidir”, diz Cláudia. Se a pessoa não se divorciou, pode até estar separada, mas, por ter uma união civil reconhecida, não pode legalmente registrar em contrato público uma família paralela. Mesmo que a relação, correta ou não, seja de amor. “Quando o Direito não oferece alternativa, as pessoas sempre dão um jeito. Fazem um contrato privado.”
Um dos casais que procuraram a tabeliã planeja driblar a lei. Eles são casados oficialmente, mas há uma terceira pessoa aceita pelos dois. Pretendem então se divorciar para, depois, constituir uma “família poliafetiva”. Tortuoso, não? Pois isso se chama realidade.
São exceções, mas, quem sabe, moram no apartamento ao lado do seu. E, caso encarem com honestidade o “poliamor”, quem somos nós – alguns nos engalfinhando por casos extraconjugais passageiros ou longos – para julgar o que é certo e errado na expressão do afeto e do desejo?
25 de agosto de 2012
Ruth de Aquino, Época
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