“Nada”. Assim Ney Matogrosso respondeu à pergunta de Eric Nepomuceno sobre o que restara dos sonhos de sua geração. Bastante pessimista, o ex-Secos e Molhados falou do frenesi narcisista em que se travestiram os projetos libertários da geração 60.
Ney: Não restou nada
O que, afinal, define uma geração ? Como juntar numa categoria única interesses, identidades e objetivos necessariamente fragmentados, muitos deles contraditórios ? Os sonhos do artista não serão os mesmos, por exemplo, do militar e do sem terra, mesmo que tenham nascido no mesmo intervalo de tempo.
Óbvio que Ney falava de seus pares, subgrupo da classe média amordaçada pela censura, que desbundou e foi viver uma utopia ruralista, nutrida por sexo-drogas-rock’n’roll, da qual não restaram sequer escombros.
Tínhamos, é verdade, um inimigo comum: a ditadura militar. Os milicos que exilavam Chico, Caetano e Gil, eram os mesmos que censuravam o Pasquim, matavam adversários políticos a rodo, colocavam tarjas negras nas genitálias que apareciam em filmes da moda (o caso da Laranja Mecânica entrou, por grotesco, para o folclore da boçalidade), baniam músicas, confundiam
A Capital, de Eça de Queiroz, com O Capital, de Marx (e era cana dura para quem tinha qualquer um dos dois).
Época curiosa, em que ficávamos atentos a uma leitura excitante como o Almanaque do Exército, à cata de pistas para descobrir a linha ideológica dos futuros comandantes regionais. Quem é que sabe, hoje, o nome do comandante do 1º Exército ? Pouca gente, espero. Virou cultura de Almanaque Capivarol. A unir os incomodados e oprimidos, de liberais legítimos a comunistas, um filamento de esperança pelo colapso da hegemonia da caserna e seus cúmplices civis.
Sem o guarda-chuva do inimigo comum, o mar se abre. O que fazer com a liberdade ? Essa é uma questão nada trivial. Acompanhei as notícias da lusitana Revolução dos Cravos (lindo nome), em 1974, por um velho rádio a válvula Halicrafters.
Ondas curtas, chiado irritante. “Agora”, dizia um locutor emocionado, “música clássica não é mais privilégio das elites”. E toma de Mozart, Bach, Haydn. Pureza d’alma, ó pá.
Os escritores, habituados a se expressar por entrelinhas, se sentiram órfãos da pressão dos censores. Estranho, não ? Havia que decifrar sonhos atolados em décadas de lama verde-oliva, sem o filtro do Grande Irmão.
###
INCONSCIENTE
Sonhar não é um exercício neutro. O inconsciente tem interferências de classe, momento histórico, heranças culturais. Frustração no trabalho, excesso de cobrança nos estudos e falta de afeto familiar, encaixados numa sociedade extremamente hierarquizada, fazem o número de suicídios crescer todos os anos no Japão.
No ano passado, 150 japoneses com menos de 30 anos cometeram suicídio.
A maioria por não conseguir emprego ou julgar que não tinha bom desempenho na escola ou no trabalho. Dá para imaginar com o que sonham jovens submetidos a esse tipo de tirania corporativo-familiar. O que pensar, por exemplo, dos projetos da nova geração de jovens nascidos na Mauritânia ? Poucos escapam da fome crônica da África Ocidental. Só na chamada região do Sahel, estima-se que 1,5 milhão de crianças não conseguem se alimentar adequadamente. Para essa geração, o projeto é sobreviver.
E no Brasil ? Pergunte-se a um jovem executivo o que Eric perguntou a Ney e ele responderá que o sonho de sua geração será, digamos, adquirir o Global 6000, jato de luxo produzido pela Embraer, pela bagatela de US$ 60 milhões.
Ou um casamento com todos os penduricalhos. Coisa de meros US$ 1 milhão. Os multimilionários vão muito bem, obrigado, no Brasilzão.
Geração tanquinho ? Girando a roleta para um despossuído, o que ele diria ? Ah, doutor, quero mesmo é que me expliquem o que é tomada e interruptor (5 milhões de domicílios brasileiros não têm acesso à energia elétrica).
Se isso for pedir demais, gostaria de arrumar um jeito de sair da barriga da miséria (16,2 milhões de brasileiros, de acordo com o último censo do IBGE, encontram-se em situação de extrema pobreza, a maioria deles pardos ou negros). Geração calango ? nós ainda ousam
Das ruínas de velhos e íntimos desejos, contemplo “minha” geração. Quantos desonhar ? Quantos se limitam a reclamar ? Quantos trocaram o assalto ao paraíso por um bom restaurante rodízio ? Quantos se deslumbram com ilusionistas apenas para mascarar o tédio e a preguiça ? Não tenho respostas, mas também não cheguei ao pessimismo do setentão Matogrosso.
Continuo, ranzinza e teimoso, a repetir Fernando Pessoa: “Não sou nada./Nunca serei nada./Não posso querer ser nada./À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo”.
Ney: Não restou nada
O que, afinal, define uma geração ? Como juntar numa categoria única interesses, identidades e objetivos necessariamente fragmentados, muitos deles contraditórios ? Os sonhos do artista não serão os mesmos, por exemplo, do militar e do sem terra, mesmo que tenham nascido no mesmo intervalo de tempo.
Óbvio que Ney falava de seus pares, subgrupo da classe média amordaçada pela censura, que desbundou e foi viver uma utopia ruralista, nutrida por sexo-drogas-rock’n’roll, da qual não restaram sequer escombros.
Tínhamos, é verdade, um inimigo comum: a ditadura militar. Os milicos que exilavam Chico, Caetano e Gil, eram os mesmos que censuravam o Pasquim, matavam adversários políticos a rodo, colocavam tarjas negras nas genitálias que apareciam em filmes da moda (o caso da Laranja Mecânica entrou, por grotesco, para o folclore da boçalidade), baniam músicas, confundiam
A Capital, de Eça de Queiroz, com O Capital, de Marx (e era cana dura para quem tinha qualquer um dos dois).
Época curiosa, em que ficávamos atentos a uma leitura excitante como o Almanaque do Exército, à cata de pistas para descobrir a linha ideológica dos futuros comandantes regionais. Quem é que sabe, hoje, o nome do comandante do 1º Exército ? Pouca gente, espero. Virou cultura de Almanaque Capivarol. A unir os incomodados e oprimidos, de liberais legítimos a comunistas, um filamento de esperança pelo colapso da hegemonia da caserna e seus cúmplices civis.
Sem o guarda-chuva do inimigo comum, o mar se abre. O que fazer com a liberdade ? Essa é uma questão nada trivial. Acompanhei as notícias da lusitana Revolução dos Cravos (lindo nome), em 1974, por um velho rádio a válvula Halicrafters.
Ondas curtas, chiado irritante. “Agora”, dizia um locutor emocionado, “música clássica não é mais privilégio das elites”. E toma de Mozart, Bach, Haydn. Pureza d’alma, ó pá.
Os escritores, habituados a se expressar por entrelinhas, se sentiram órfãos da pressão dos censores. Estranho, não ? Havia que decifrar sonhos atolados em décadas de lama verde-oliva, sem o filtro do Grande Irmão.
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INCONSCIENTE
Sonhar não é um exercício neutro. O inconsciente tem interferências de classe, momento histórico, heranças culturais. Frustração no trabalho, excesso de cobrança nos estudos e falta de afeto familiar, encaixados numa sociedade extremamente hierarquizada, fazem o número de suicídios crescer todos os anos no Japão.
No ano passado, 150 japoneses com menos de 30 anos cometeram suicídio.
A maioria por não conseguir emprego ou julgar que não tinha bom desempenho na escola ou no trabalho. Dá para imaginar com o que sonham jovens submetidos a esse tipo de tirania corporativo-familiar. O que pensar, por exemplo, dos projetos da nova geração de jovens nascidos na Mauritânia ? Poucos escapam da fome crônica da África Ocidental. Só na chamada região do Sahel, estima-se que 1,5 milhão de crianças não conseguem se alimentar adequadamente. Para essa geração, o projeto é sobreviver.
E no Brasil ? Pergunte-se a um jovem executivo o que Eric perguntou a Ney e ele responderá que o sonho de sua geração será, digamos, adquirir o Global 6000, jato de luxo produzido pela Embraer, pela bagatela de US$ 60 milhões.
Ou um casamento com todos os penduricalhos. Coisa de meros US$ 1 milhão. Os multimilionários vão muito bem, obrigado, no Brasilzão.
Geração tanquinho ? Girando a roleta para um despossuído, o que ele diria ? Ah, doutor, quero mesmo é que me expliquem o que é tomada e interruptor (5 milhões de domicílios brasileiros não têm acesso à energia elétrica).
Se isso for pedir demais, gostaria de arrumar um jeito de sair da barriga da miséria (16,2 milhões de brasileiros, de acordo com o último censo do IBGE, encontram-se em situação de extrema pobreza, a maioria deles pardos ou negros). Geração calango ? nós ainda ousam
Das ruínas de velhos e íntimos desejos, contemplo “minha” geração. Quantos desonhar ? Quantos se limitam a reclamar ? Quantos trocaram o assalto ao paraíso por um bom restaurante rodízio ? Quantos se deslumbram com ilusionistas apenas para mascarar o tédio e a preguiça ? Não tenho respostas, mas também não cheguei ao pessimismo do setentão Matogrosso.
Continuo, ranzinza e teimoso, a repetir Fernando Pessoa: “Não sou nada./Nunca serei nada./Não posso querer ser nada./À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo”.
(Artigo enviado por Mário Assis)
25 de agosto de 2012
Jacques Gruman
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