"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



sábado, 1 de setembro de 2012

"PROGRAMA DE ÍNDIO"

 

Você é você e a sua circunstância. A sua história, o cenário onde ela se deu, a sua cultura.
Você é esse todo e se lhe arrancarem qualquer parte dele é você que estará sendo mutilado. Tanto quanto se lhe arrancassem um pedaço do corpo.
E ser humano nenhum se deixa despedaçar em silêncio e sem luta.
A natureza conservada é, por excelência, o locus da ausência do bem e do mal. Nela as coisa se dão ou deixam de se dar porque assim é. E essa é a lição mais importante que ela tem para nos ensinar.
Já no Brasil a coisa é bem mais "sofisticada". Aqui, o que sobra de natureza conservada é, para a maioria de nós, uma coleção de imagens de televisão sublinhada pelas judiciosas considerações de algum "especialista" sobre as suas preferências pessoais em torno das ideias do bem e do mal.
Ninguém viveu lá. Ninguém nunca foi lá. Nenhum pedaço da sua vida, da sua história, da história de alguém que você conheça se deu lá.
 
Aquilo não faz parte das suas memórias nem das memórias das suas memórias.
Não faz parte da sua cultura. Não é seu.
Conforme o peixe que lhe tenha sido vendido na escola, na TV, nas fontes costumeiras de pensamentos "politicamente aceitáveis", você - no vai da valsa ou até com paixão pela ideia - repete que é preciso "preservar o verde", os bichinhos que você nunca viu, os matos que você nunca cheirou.
O seu "Avatar" particular, enfim, tão irreal e impalpável quanto o de James Cameron. Uma mera coleção de vagas palavras, ideias e imagens.
Quem, no Brasil, jamais pôs os pés na Flona (de "Floresta Nacional") do Jamanxin? Ou pisou as Florestas Nacionais de Itaituba 1 e 2?
Quem, desta nossa massa de urbanóides, jamais ouviu falar que elas existem?
 
Algum amigo seu que, na adolescência, tenha ido acampar por lá com a primeira namorada? Que tenha passado uns dias de comer e beber o que elas têm para oferecer? Que, quase criança ainda, fez ali a primeira caçada da vida com o avô? Que tenha fisgado num dos rios que as cortam o seu primeiro peixe e sentido lá, diretamente nas mãos, a força de outra forma de vida? Que tenha passado umas férias ali com os pais quando pequeno e, desde então, nunca deixdo de voltar a esse santuário das suas memórias? Que, tendo-o amado tanto e, mais tarde, ficado rico, doou sua fortuna para estender a outros o privilégio de também poder plantar as suas em cenários assim?
Nada!
Nos nossos "parques nacionais" é proibida a entrada. Ninguém conhece. Ninguém nunca foi. São ficções que só existem em discursos autoritários e em imagens da televisão.
A função do governo, aqui, é esvaziá-los de brasileiros e vedar-lhes a entrada neles.
 
Agora pergunte se existe algum americano de mais de cinco anos de idade que nunca tenha posto os pés no Parque Nacional de Yellowstone ou nas Florestas Nacionais de Sequóias da Califórnia onde cada árvore tem um nome de gente como nas confrarias de velhos conhecidos. Que nunca tenha acampado num deles, ainda que fosse só com os colegas de escola porque frequentar fisicamente a natureza, palpá-la com as mãos e o nariz, aprender a viver nela e dela é matéria tão obrigatória quanto inglês e matemática.
Pergunte a um europeu de qualquer quadrante se ele não conhece, não comeu e não dormiu todas as suas montanhas, todas as suas árvores, todos os seus frutos, todos os seus animais selvagens.
A função do governo, em cada um desses países, é levar todo cidadão para dentro dos parques; garantir os meios para que cada um deles possa usa-los.
Nós falamos de natureza para pontilhar discursos sobre o bem e o mal.
Eles tratam de vivê-la.
 
Por isso eles reagem às eventuais ameaças contra esses pedaços do que são como quem defende um membro ou um órgão vital do próprio corpo.
Por isso nós abrimos mão dos nossos com a mesma emoção passageira de quem vê um filme de final infeliz e a mesma facilidade de quem muda de canal.
Esta semana li no Estadão mais um daqueles relatórios sobre o curso inexorável da devastação do Brasil.
Dezessete áreas protegidas estão dentro da zona de influência de projetos hidrelétricos e outros de natureza "estratégica" do PAC, filho da Dilma. Aproveitando o cheirinho de sangue no ar, os tribunais fervem de novas ações tentando arrancar mais um pedaço de alguma área indígena ou floresta nacional reservadas. Só por conta disso, mais 33 mil km2 do Brasil de sempre estão sob ameaças diretas...
E, veja bem, os nossos Yellowstones, as nossas florestas de sequóias ha muito já se foram. No país sem daniel boones; no país onde o escravo - índio ou negro - é que caçava para o branco ou empurrava o mato "ameaçador" sempre um pouco mais para longe, as araucárias, os ipês, os jequitibás de mil anos não são mais que lenha.
 
"Programa de índio".
 
É nessa terra de ninguém que afundam-se para sempre as Sete Quedas da vida sem que se ouça um único suspiro mais prolongado.
O que sobra em pé por aqui é aquilo que ninguém quis. O que até então ainda não se podia derrubar e por isso foi dado aos índios. Mas agora, com as novas estradas, a mineração, a tecnologia agrícola, as mega-hidrelétricas (dinossauros a quem a corrupção prolonga a vida), tudo pode seguir, como sempre, virando dinheiro fácil.
Venho de umas férias na amazônia boliviana.
Na Bolívia, como se sabe, é índio que sabe o que é bom pra índio. E, sendo assim, eles resolveram abrir a sua maior reserva preservada - aquela onde moram e de que vivem desde que o mundo é mundo - à exploração de pesca esportiva vendida e controlada por eles próprios, dentro dos padrões praticados em países que vêm sustentando assim as suas reservas naturais e o cenário dos idílios dos seus habitantes por séculos a fio.
 
Além do que de semelhante se oferece nesse programa ao que há de parecido com ele ao redor do mundo, está a oportunidade tão valiosa quanto é rara de observar o jeito como o indígena lida com esses ambientes, com todas as valiosas lições que isso encerra a respeito do que somos, de onde viemos e para onde vamos, e de darem-se culturas a conhecer dando saltos no tempo, incorporando uma da outra o que cada uma tem de mais aproveitável.
É tão bom que tem anos de fila na porta, apesar do caro que é!
No Brasil, onde quem sabe o que é bom pra índio é "especialista", dir-se-á que tudo isso é politicamente incorreto; que tais praticas "contaminarão a pureza da cultura indígena"; que os ianques estão é de olho no que é nosso; que como "os outros" não conseguem controlar o uso o jeito é proibi-lo e blá, blá, blá...
Frequentar e usar a natureza no Brasil é contra a lei. Torna-se, assim, um privilégio só de quem vive de pisoteá-la (à lei). Aqui, em meio à aguda escassez planetária de floresta em pé, a natureza só tem valor econômico deitada.
Está condenada à morte, portanto.
Nos temos muito que aprender. Até com a Bolívia...
 
fernaslm
01 de setembro de 2012

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