Artigos - Cultura
Na segunda tetralogia de dramas históricos de Shakespeare composta pelas peças Ricardo II, Henrique IV (partes I e II) e Henrique V, surge na segunda, terceira e quarta partes um personagem que salta às vistas (principalmente nas peças de Henrique IV): John Falstaff.
Glutão, hedonista, bufão e moralmente questionável, Falstaff foi o responsável por tentar levar o príncipe Hal – o então jovem filho de Henrique IV, que mais tarde se tornaria Henrique V – para os mais baixos caminhos da vida: roubo, orgias, bebedeiras, etc.
Talvez tenhamos nele um bom exemplo para nós brasileiros. Não se engane, não somos a figura do nobre príncipe sendo corrompida por um maldizente canalha. Não, a verdade é que nós somos Falstaff.
Declamamos nossas desgraças e delas fazemos muletas para corromper todos aqueles que aspiram, senão a salvação da alma humana, pelo menos a firme pavimentação em direção a ela – nomeadamente a Bondade, a Verdade e a Beleza.
Nossa vida brasileira é uma alusão a Falstaff. É insuportável ver algo superior, digno, sublime. Aos pouquíssimos que querem isso, as chacotas. “É mentalidade de colonizado”, dizemos a esses. Ah, quantos príncipes já aviltamos!
O dito país com mais católicos no mundo teve de espremer até a última gota para tirar um único Santo desse caldo. Evidentemente existem os santos anônimos, mas imagine quantos potenciais ‘célebres príncipes’ já foram aviltados por nós… coisa de Falstaff.
Justiça seja feita, há também de se dizer que Falstaff tem lá seus momentos bons.
Ele não é um puro vilão. Ele é um ser humano – uma alma –, mesmo que corrompida e corruptora, ele ainda é um ser humano em toda a sua inteireza; por esse e outros aspectos eu aludi ele ao ‘éthos’ brasileiro.
Ele não é uma personificação do mal como Macbeth, mas é aquele pequeno mal vindo em pequenas doses diárias.
Deste modo, como sabemos qual Falstaff somos, saibamos de antemão que há neste país qualquer coisa de incorruptível em um pequeno grupo de ilustres sujeitos, e esses são igual ao príncipe Hal, que surpreendentemente diz na cena II, Ato I (Henrique IV, parte I), de si para si:
Eu vos conheço, e quero, por um tempo, / prestar-me ao vosso humor vadio e infrene. / Com isso, imitarei o sol radioso / que consente que nuvens desprezíveis, / ante o mundo, a beleza lhe atenuem, / por que, quando lhe apraz ser ele próprio, / faça o anelo crescer a admiração. [...] Assim, mal eu me dispa desta vida / desregrada que levo, e me disponha / a pagar até mesmo o que não devo, / serei tanto melhor do que prometo, / quanto mais enganar a expectativa / do mundo inteiro. / Como metal brilhante em fundo escuro / há de minha reforma sobre os erros / resplandecer, mostrando-se mais bela / de ver e mais atraente, que a virtude / cujo brilho nenhum contraste exalta. / Serei assim, pelo erro convertido, / quando todos me derem por perdido.
Pois sim, o príncipe em toda sua nobreza está apenas jogando o jogo de Falstaff, mas não é refém dele. As cartas foram dadas já no começo do jogo. Só o vil bufão acha que tem o controle sobre o príncipe. Mal sabe ele que, no final da segunda parte de Henrique IV – quando o Quinto se coroa após a morte do pai –, a verdade se revelará a ele como uma cegante explosão de luz.
Falstaff, após saber da coroação do seu ‘garoto prodígio’, vai às pressas colher os louros da coroa, então eis que o recém-empossado e esplêndido Henrique V manda-lhe o petardo:
Não te conheço, velho; vai rezar. / Como vão mal as cãs num galhofeiro! / Muito tempo sonhei com um homem destes, / profano e velho, inchado pela orgia; / mas, desperto, renego do meu sonho. / Diminui teu corpo, aumenta a graça, / deixa a gula; compreende que o sepulcro/ vai abrir a boca três vezes / maior que para os outros. [...] não presumas que eu seja o que já fui, / pois Deus bem sabe – e o mundo há de nota-lo – / que me livrei da minha antiga forma [...] Quando ouvires dizer que eu sou o que fui, / volta para tornares-te o que foste: / tutor e incitador de meus excessos. (tradução de Carlos Alberto Nunes).
Após isso, Falstaff e seus companheiros são desterrados para longe da companhia do rei para morrer uma anônima e insignificante morte, cujo consolo era apenas a mesada do próprio Henrique, dada a eles como prova da caridade digna de um grande rei.
O exemplo está aí nessa tetralogia, principalmente nas duas partes de Henrique IV. A vida de Falstaff é uma indispensável lição para este decadente povo que nos tornamos nos últimos 40 anos.
Algo temos a aprender com Shakespeare, pois ele falou diretamente para a alma humana e eterna. Poucos conseguiram isso. A pergunta que resta após a lição é: quem queremos ser?
Leonildo Trombela Júnior é jornalista e estudante de filosofia.
Nenhum comentário:
Postar um comentário