Mais tarde, um pouco antes de perder a fé, militei na Juventude Estudantil Católica (JEC) e Juventude Universitária Católica (JUC). Os religiosos que nos orientavam eram mais abertos, desciam do púlpito e não se escondiam atrás das grades dos confessionários para enfrentar os jovens. O conflito sexual persistia. Em Santa Maria, eu apertava o padre Carlos Pretto contra a parede: "Se mulher é tão bom, por que é proibido?" Pretto armava uma longa história, de final curto e grosso. Que não devíamos ir para a cama com uma mulher por amor a ela. Nada mais fácil para um crente do que inverter uma evidência. De minha parte, era por amá-las que as queria na cama.
Mas Pretto não era de ferro, e as militantes de JEC e JUC, secundaristas e universitárias cheias de charme e desejo, fizeram um excelente trabalho de sapa. Mais adiante Pretto já ousava heresias desde "mulher e religião não se discute, se abraça" a outras do tipo "se batina fosse bronze, que badaladas!". Os sacerdotes que desceram do púlpito para falar conosco acabaram largando a batina, casando e fazendo filhos. Foi nossa revanche a longo prazo.
Naqueles dias de férias no Upamaruty, mal despontava uma tempestade, eu montava um cavalo em pêlo e o esbarrava frente às casas de meus tios e primos, espalhados num raio de várias léguas. Se caía um raio, eu berrava: "Manda outro, grande Filho da Puta!" Era uma forma de manifestar minha revolta ante o engodo. Tios e primos, camponeses que viam em Deus algo assim como um gestor das chuvas e raios, cobriam espelhos com panos, escondiam tesouras e facas de ponta e se persignavam assustados. Ensopado pela chuva, mais ou menos ébrio sem ter bebido nada, eu exercia minha liberdade recém-conquistada. Claro que se um raio atingia algum eucalipto mais alto, o culpado era este herege. Quando tive melhores noções de eletricidade, no curso científico, gelei ao perceber minha temeridade. Galopando na pampa deserta e junto a umbus e alambrados, minhas chances de receber um raio eram bem maiores do que imaginava. Pior ainda: acabaria dando razão ao suposto gestor dos raios.
Revoltas da adolescência. Hoje, jamais me divertiria às custas da fé dos simples. Gosto de reptar, isto sim, a fé dos cultos. Ninguém me convence que um Karol Wojtyla ou um Evaristo Arns, lidos, cosmopolitas e dominando várias línguas, acreditem naquele Deus sedento de sangue nascido no deserto.
Assumida minha condição de ateu, gozo particularmente de uma de suas vantagens, o senso de mistério. Para o crente, tenha caído um avião em sua cabeça, ou tenha acertado na loteria esportiva, tudo é normal, já estava escrito: foi Deus quem quis. Para o ateu, tudo é mistério e em boa parte obra do Acaso. Fosse crente, não me surpreenderia ter saído das grotas para viver em Estocolmo ou Paris, seria determinação das altas instâncias celestiais e teria sido por isso que Deus me apresentou a uma professora de francês. Ateu, até agora estou surpreso com meu passado e curioso com os dias que me sobram. O homem de fé jamais vai experimentar esta excitação que contamina o ateu, a de ver o amanhã como um mistério permanente. A primeira surpresa ocorreu ainda no campo. Estudei em escola rural, a uma légua de casa, a cada rancho na beira da estrada o grupo de crianças aumentava. No inverno, saíamos de pés nus quebrando geada, as alpargatas debaixo do braço para não ficar de pés molhados durante as aulas. Em uma sanga antes do colégio, lavávamos os pés, e só então se calçava as alpargatas. Mais tarde meus pais compraram um aranha, eu me sentia quase adulto ao ajudar a atrelar um tordilho percherão. Da confluência desta aranha e do tordilho, mais Ivone Garrido, uma professora de Dom Pedrito, dependeram minhas futuras andanças.
As professoras do primário nos ensinavam fundamentalmente a ler, escrever e contar. Poucas noções tínhamos de outras disciplinas. O que, visto de hoje, já foi muito. Não poucos universitários, hoje, desconhecem tabuada. Na hora de conferir uma conta, puxam uma maquininha de calcular. Volto ao Grupo Escolar de Três Vendas. No quinto ano primário, com escassas noções de história ou geografia, fomos informados que professoras "da cidade" viriam fiscalizar as provas. Pânico total de nossas professoras. Fora escrever e as quatro operações, mais alguns poemas cívicos, ninguém conhecia muita coisa além disso. Mas para tudo há solução. As provas chegaram numa sexta-feira. Numa época em que sequer havia rádio na região, fomos todos convocados – sei lá como, suponho que à pata de cavalo – num raio de léguas, para uma aula no domingo. Violadas as provas, recebemos as respostas para decorar.
Dia seguinte, as fiscais de Dom Pedrito constatavam, boquiabertas, a excelência pedagógica de nossas mestras. Os alunos escreviam tranqüilos, sem hesitar um segundo, foi nota dez pra todo mundo. Minha mãe era professora e claro que cúmplice. Mas não muito. Sempre exibiu uma vara de marmelo quando eu me recusava a estudar. Não só exibia como tampouco foi avara ao aplicá-la. Naquela segunda-feira, minha sorte estava selada. Findo o curso primário, bom em matemática, o máximo que podia aspirar era ser caixeiro nalgum bolicho das Três Vendas ou Ponche Verde, uma das poucas chances de escapar ao rabo do arado. Findas as provas, atrelei o tordilho à aranha. Uma fase havia terminado em minha vida. Voltava ao campo, talvez para lá morrer.
Dei de rédeas ao tordilho, a aranha já descia o lançante da coxilha. Foi quando Dona Ivone Garrido, a fiscal implacável, atravessou o alambrado de sete fios que cercava o colégio e gritou: "pára, Clotilde, teu filho é um gênio, ele não pode voltar para o campo". Minha mãe, que só queria ouvir isto, me tomou as rédeas das mãos e esbarrou o tordilho. Daqueles segundos geridos pelo deus Acaso – e aqui começa o mistério – decorrem minhas andanças e estas linhas.
Revisitei mês passado o grupo das Três Vendas. Na foto, o curto trecho de estrada em que o bom deus dos ateus, o Acaso, decidiu tirar-me do campo e jogar-me no mundo.
17 de janeiro de 2013
janer cristaldo
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