"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



sábado, 23 de fevereiro de 2013

OS FUNDADORES DO BRASIL

 Em memória a Ronald Dworkin (1931-2013)


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'Novos fundadores': José Dirceu, Paulo Maluf e Renan Calheiros


Sempre que alguma questão sobre o governo vem à baila nos Estados Unidos, a mesma questão pauta até o americano menos versado em História: o que os fundadores dos EUA queriam?

Os fundadores (the fouding fathers) da América não foram os navegantes que descobriram a rota para o continente. São as mentes que definiram o que a América representa ao mundo até hoje.

Enquanto o Brasil trouxe uma burocracia estatal pronta da Península Ibérica, tendo um governo antes de ter a quem governar, os EUA foram uma rota de fuga do lado mais atrasado do Império Britânico.

Intelectuais criaram as bases da liberdade que reinou na América após sua Revolução.
Ao reunir as colônias, garantindo uma independência do governo central (o federalismo que define “os Estados Unidos”), foi necessária apenas uma sucinta Constituição que cabe em umas 15 páginas. Essa Constituição continua sendo o guia de leis até hoje.

As famosas “emendas” da Constituição, que garantem os direitos mais fundamentais para os americanos, não trata de benesses que o Estado é obrigado a “dar” ao povo: pelo contrário, trata de restringir os poderes do Estado para não avançar sobre a liberdade individual.

A Primeira Emenda, ao invés de exigir que o Estado faça algo, proíbe o Congresso de estabelecer uma religião oficial, restringir a liberdade de expressão, imprensa, livre associação pacífica ou de impedir que a população faça petições ao governo. Um contraste chocante com os “objetivos sociais” da Constituição cidadã brasileira, que outorga a políticos o poder de serem “guardiões” de anseios da população.

A Segunda Emenda proíbe o governo de restringir o acesso a armas para se defenderem. A Terceira Emenda proíbe o Estado de aquartelar soldados em residências.
E assim prosseguem as proibições, do mais geral (garantindo discussões acaloradas sobre o que seria “livre associação pacífica”) ao mais específico (não se pode coagir cidadãos a terem sua propriedade privada confiscada para uso de soldados).

Essa forma de entendimento de uma Constituição com seus mais de 2 séculos de idade permitiu uma cultura de liberdade estranha ao Brasil. Enquanto qualquer medida do governo é sempre vista com desconfiança até pelo americano mais progressista, as Constituições brasileiras são pródigas em tratar o Estado como um serviço social, a função que o Estado é mais incapaz de exercer em qualquer país.


Enquanto mentes brilhantes, conhecidas e admiradas mundialmente, que criaram a Constituição americana, “o legislador” brasileiro é um anônimo amontoado amorfo e heterogêneo de forças políticas, tendendo do coronelismo ao populismo mais boçal, que, sem perguntar sequer à tia do café do Congresso, definiu o que são os “objetivos” do povo.

O nome fantasia do bom mocismo mascara as intenções mais nefastas. Se os políticos (não essa entidade abstrata chamada “o Estado”) são os guardiões únicos e “escolhido pelo povo para representá-lo” dos desejos de um país continental, não são mais restrições ao poder de políticos para mandar e desmandar na vida alheia que a Constituição garante, e sim que qualquer ato que gere grande interesse (do público ou dos próprios políticos) terá de passar pelas mãos dos deputados e senadores – talvez as pessoas com menor carga de confiança no país inteiro.

Se intelectuais criaram uma Constituição nos EUA para garantir a liberdade, aqui muitos intelectuais servem ao oposto: servem a políticos e partidos para justificarem qualquer invasão de governantes à vida, ao bolso e à liberdade da população.

Quando se enxerga essa distinção entre o Estado “provedor” que nos torna dependentes de compras de votos e das “intenções sociais” de congressistas do escol de José Sarney a Renan Calheiros, e os direitos negativos, que impediriam tais governantes de tomarem decisões por nós, entende-se por que o Brasil substitui founding fathers do porte de Benjamin Franklin, Thomas Jefferson e George Washington por “novos fundadores” como José Dirceu, Paulo Maluf ou Renan Calheiros.

Sem os “criadores” de algo que realmente nos deu a liberdade para colher os frutos de nosso próprio trabalho, resta correr sempre ao “Estado provedor” e render loas a políticos que vendem sempre a mesma conversa: eles estão tentando nos “dar” algo (sem nunca explicar de quem tiram para tal), lutando contra forças malignas que tentam “impedi-los” (a imprensa, o Judiciário, seus concorrentes ao cargo).

Num país sem intelectuais históricos e livres de deputados, sem fundadores da liberdade e ainda envergonhado de copiar modelos que funcionam só por um nativismo ufanista, a população cai fácil no conto de que só não é mais rica porque o Estado ainda não conseguiu tirar da cartola e dar a ela mais riqueza, e compra barato (ou, na verdade, por um preço altíssimo) a conversa de qualquer político dizendo “fui eu que fiz isso por você” ou “Nunca antes na história desse país…”

23 de fevereiro de 2013
Flavio Morgenstern

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