Grande parte dos neurônios da esquerda triunfante brasileira foi irremediavelmente perdida na guerra fria. Com seus aliados cubanos, ela nos jogou no século passado durante a visita da blogueira Yoani Sánchez.
Sartre pediria um dose de absinto para entender que outro furacão ameaça Cuba: a revolução digital. Marx precisaria de boas almofadas para acomodar seus furúnculos no bumbum ao contatar que uma ditadura comunista não resiste ao avanço tecnológico e científico da humanidade.
Cuba e Venezuela estão ligadas por fibra ótica. Do ponto de vista técnico, a ilha poderia estar toda conectada ao mundo e, pela criatividade e boa educação de seu povo, achar novos caminhos para superar seu atraso econômico. Mas o instrumento não pode ser usado em sua amplitude porque ameaça a estabilidade do governo. Para que o governo exista o atraso precisa sobreviver.
Yoani não é a primeira voz dissidente em Cuba. Mas foi a que melhor usou a conexão com o mundo não só para divulgar seus artigos, mas para garantir algum nível de proteção diante da burocracia. De longe, com seus cabelos longos, saias compridas, pode sugerir aquela personagem que sobe no fio e desanda a fazer milagre no filme Teorema, de Pasolini.
Mas é articulada, responde a todas as perguntas, até às mais provocativas, e certamente também foi arrastada para o século passado com aquelas pessoas gritando palavras de ordem.
Digo isso porque no seu blog confessou que a experiência com os militantes brasileiros lhe lembrou coisas parecidas em Cuba, sobretudo os gritos de "traidora" contra uma vizinha que iria para o Porto de Mariel na grande debandada permitida pelo governo.
Numa entrevista ressaltou que nem os jovens cubanos usam mais o termo ianque. Um forte cheiro de naftalina exalou não só dos cartazes e gritos, mas de toda a história da campanha organizada pela embaixada cubana, com apoio do batalhão digital do PT.
O curioso é que dentre aqueles cartazes havia um que Yoani empunharia com naturalidade: o que pede o fim do embargo econômico à ilha. O problema é o bloqueio mental, porque torna mais denso o cerco econômico. A manobra articulada pelos cubanos e seus aliados na esquerda é típica de estrategistas que perderam o contato com a realidade. Constantemente obtêm o oposto do que projetaram.
A campanha contra Yoani ampliou a repercussão de sua visita ao Brasil e estendeu o halo de simpatia em torno de uma pessoa que luta pela liberdade de expressão. Em todos os contatos espontâneos ela recebeu carinho no País. Isso talvez tenha mostrado rapidamente a uma estrangeira que nossa política externa expressa a vontade de um partido dominante, não a vontade nacional.
Os neurônios perdidos na guerra fria fazem enorme falta à esquerda no poder. Por que não contestar com argumentos a luta pela liberdade de expressão num regime ditatorial? Simplesmente porque a burocracia cubana e, agora, a brasileira já não se dispõem ao debate, apenas à desqualificação dos que delas divergem.
No livro de Reinaldo Arenas Antes que Anoiteça segui, emocionado, alguns lances do aniquilamento de uma geração de intelectuais e poetas pelas forças da repressão.
Percebi que, tanto nele como em Raúl Rivero e mesmo em Juan Pedro Gutierrez, que vive em Havana, existe um grande vínculo com a vida, com os sentidos, e intuí que talvez venha daí a força para prosseguir adiante, apesar da aspereza do cotidiano numa ditadura.
No dossiê que os burocratas cubanos prepararam contra Yoani consta que ela gosta de comer bananas e, às vezes, tomar cerveja com os amigos. Seu último fim de semana foi passado no Rio. Deve ter percebido que o crime que lhe atribuem é uma delinquência de massa, com tanta gente tomando cerveja num domingo de muito calor. A burocracia investe contra isso não apenas pela cerveja ou mesmo pelas bananas.
Ela investe contra o prazer, contra a vida, da mesma forma que investiu contra os antecessores de Yoani. Esse é o núcleo indestrutível que ela não consegue alcançar. Suas táticas puritanas no Brasil, então, não têm a mínima chance de prosperar.
Yes, nós temos bananas. O Brasil não é só um grupo de caras de barba vociferando nas ruas e nos blogs. A passagem de Yoani foi uma contribuição nacional para iluminar a realidade cubana e dissipar a aura de romantismo em torno da revolução. Os adversários ajudaram, é verdade. Fizeram a parte do leão, admito. Se continuo nesse tom, acabo me empolgando e escrevendo que os adversários são bons companheiros, ninguém pode negar...
Em alguns momentos você pode errar de século ou mesmo de alvo. Os sequestradores do embaixador americano, em setembro de 1969, quase o confundiram com o embaixador de Portugal.
Quando houve um quebra-pau em Minas na passagem do Brizola por BH, um pouco antes do golpe de 64, José Maria Rabelo era protegido por um segurança que socava todo mundo aos gritos de "vamos acabar com esses comunistas!". José Maria agarrou-o pelos braços e disse: "Comunistas somos nós, comunistas somos nós". E ele respondeu: "Ah, bem".
A recepção que cubanos e petistas eletrônicos deram a Yoani não tem a graça do século passado. É um equívoco que envolve o destino de 11 milhões de cubanos e a reputação internacional do Brasil.
No passado, pelo menos, havia alguma imaginação. Se um dia a esquerda encastelada no poder for obrigada a voltar a lutar nas ruas por uma causa justa, estará perdida. Imaginem quem será convencido por um grupo de pessoas, narizes de palhaço, gritando coisas do século passado...
Ainda não perceberam que o século passou e levou consigo a Juventude Hitlerista, os Guardas Vermelhos, deixando-nos apenas com uns estridentes palhaços chamando de traidora uma jovem mulher cuja vida é o exercício de liberdade.
Eduardo Suplicy bem que tentou fazê-los discutir, mostrar que tudo aquilo era absurdo. O embaixador cubano chegou a perguntar se o senador não era da CIA. Suplicy da CIA? Só quem não o conhece poderia pensar nisso. E quem conhece um pouco a CIA sabe que, apesar de todas as suas loucuras, não seria ousada a esse ponto.
02 de março de 2013
Fernando Gabeira
O Estado de São Paulo
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