O professor Luigi Zingales é um imigrante, um americano por opção e não por nascimento, e tem se dedicado a estudar a diferença entre o capitalismo americano e o capitalismo no resto do mundo. Estas são a sua análise e as suas recomendações.
A crise econômica do ano passado, centrada como foi no setor financeiro que é o coração do capitalismo americano, vai deixar marcas duradouras. A regulamentação financeira, o papel dos grandes bancos e as relações entre o governo e os principais players do mercado nunca mais vão ser as mesmas.
Mas o mais importante é o quanto pode mudar a atitude da opinião publica sobre o sistema. A natureza da crise e das respostas do governo a ela ameaçam minar a crença da opinião publica na honestidade, na justiça e na legitimidade do capitalismo democrático. Ao permitir que se criassem as condições que tornaram essa crise possível (particularmente a concentração de poder nas mãos de umas poucas instituições), e ao responder à crise do jeito que respondeu (especialmente com as gigantescas operações de resgate de bancos e grandes corporações), os Estados Unidos se arrisca a começar a derivar na direção do corporativismo europeu e do capitalismo de camaradagem de regimes mais estatizados. Isso ameaça a marca distintiva do capitalismo americano que, até agora, tinha conseguido evitar a associação automática que a opinião publica faz, no resto do mundo, entre esse sistema e a corrupção, que foi o que proporcionou a este país viver, até aqui, relativamente livre do populismo anti-capitalista.
Isto está começando a mudar? E se está, é apenas uma reação passageira à recessão ou uma mudança mais profunda e destrutiva da atitude dos americanos?
Os sinais mais recentes que temos colhido não são animadores…
Pau nos ricos
Um amigo meu trabalhou como consultor para o hoje infame gigante dos seguros American International Group (AIG). Para evitar que ele abrisse o seu próprio hedge fund, a AIG lhe ofereceu um acordo de não competição: uma soma em dinheiro para compensá-lo por não explorar essa oportunidade. Trata-se de uma prática ultra conhecida e aceita. Mas, infelizmente para o meu amigo, o pagamento era para ser feito no final de 2008. Assim, ele passou os primeiros meses de 2009 em pânico: seu contrato foi listado como um dos notórios bônus de retenção de empregados do AIG. No auge da fúria contra esses bônus, ele recebeu diversas ameaças de morte. Embora ele não tivesse nenhuma obrigação legal de fazer isso, devolveu o dinheiro à companhia esperando que o gesto pudesse evitar que seu nome fosse publicado nos jornais. No caso disso não ser suficiente para protegê-lo, deixou preparado um plano para a fuga de sua mulher e seus filhos. Era a única coisa responsável a fazer Afinal, manifestantes irados tinham atacado as casas de diversos executivos da AIG cujos nomes apareceram nos jornais e somente por sorte muitos deles não acabaram feridos.
Embora episódios desse tipo tenham, felizmente sido bastante raros, eles dão um testemunho de um descontentamento profundo. Numa pesquisa recente, 65% dos americanos disseram que o governo deveria cortar as bonificações para executivos das grandes corporações e 60% disseram que o governo devia intervir para melhorar o modo como essas corporações são geridas. Essas opiniões não refletiam, exatamente, confiança no governo: somente 5% dos americanos disseram, na mesma pesquisa, que confiam muito no governo e 30% que não confiam nada no governo. O problema é que, no momento, os americanos confiam menos ainda nas grandes corporações: menos de um em cada 30 americanos disseram que confiam muito nelas e um em cada três disseram que não confiam nada nelas.
Essas atitudes são familiares para os estudiosos da opinião publica na maior parte do mundo. Mas não são comuns nos Estados Unidos. Até recentemente, os americanos apoiavam os princípios básicos da economia de mercado e até expressavam a sua tolerância por alguns dos seus efeitos colaterais indesejáveis como a desigualdade de renda.
O capitalismo sempre teve um apoio publico excepcionalmente forte nos Estados Unidos porque o modelo americano de capitalismo sempre se distinguiu dos demais ao redor do mundo, especialmente por estar baseado num sistema de mercado realmente aberto e livre. O capitalismo não se apóia apenas na liberdade de empreender, mas sobretudo nas regras e políticas que permitem liberdade de acesso aos recursos financeiros para os iniciantes e que mantêm um jogo equilibrado entre os competidores. Os Estados Unidos sempre estiveram mais próximos que todos os outros dessa combinação ideal, o que não é coisa desprezível levando-se em conta que as pressões e as recompensas do jogo econômico não levam naturalmente a esse equilíbrio. Pois não obstante todos se beneficiem de um mercado livre e competitivo, ninguém em particular aufere lucros por manter o sistema competitivo e o jogo econômico equilibrado. O verdadeiro capitalismo pede uma ação forte dos lobbies.
Essa afirmação pode parecer estranha diante dos bilhões de dólares que as empresas gastam fazendo lobby no Congresso dos Estados Unidos, mas esse é exatamente o ponto. A maior parte dessa ação de lobby tenta desequilibrar o jogo numa ou noutra direção e não mantê-lo equilibrado. A maior parte do esforço de lobby é pró-business, no sentido de que promove interesses de negócios existentes e não pró-mercado, no sentido de fomentar a competição livre e aberta. A competição força as empresas estabelecidas a provar sua competência todos os dias; por isso os maiores players tendem a usar sua força para restringir essa competição e fortalecer suas posições. O resultado é que há uma forte tensão entre a agenda pró-mercado e a agenda pró-business, ainda que.
A exceção americana
Num estudo recente, Rafael Di Tella e Robert MacCulloch mostraram que o apoio ou a rejeição ao capitalismo num dado país está diretamente associado à realidade do trabalho. Onde o trabalho, e não a sorte, determina o sucesso, a avaliação é positiva. Onde se dá o contrário, a idéia de capitalismo é associada à de corrupção. E é basicamente isso que explica o apoio ao capitalismo nos Estados Unidos. De acordo com um estudo recente, somente 40% dos americanos acreditam que a sorte pesa mais que o trabalho para explicar as diferenças de renda. No Brasil, 75% acreditam que é a sorte o fator decisivo; na Holanda 66%, na Alemanha 54%.
Há quem afirme que essa percepção da legitimidade do capitalismo é mero resultado de propaganda do chamado sonho americano, um mito que estaria profundamente arraigado na cultura americana, e não, necessariamente apoiada na realidade. É verdade que os dados brutos não mostram uma abundancia de evidencias de que a mobilidade social na base da pirâmide seja maior nos Estados Unidos que em outros países desenvolvidos. Mas ainda que essa diferença não apareça na estatística geral, está fortemente presente no topo da pirâmide que, frequentemente, é a que recebe maior atenção e mais influi para definir a atitude das pessoas. Bem antes que o boom da internet criasse um monte de jovens bilionários, a partir de 1996, um em cada quatro bilionários americanos podiam ser descritos como self-made men – comparados com um a cada dez na Alemanha. E os mais ricos entre os bilionários self-made dos Estados Unidos – de Bill Gates e Michael Dell a Warren Buffet e Mark Zuckerberg – construíram suas fortunas em negócios competitivos, com pouca ou nenhuma ajuda do governo.
O mesmo não pode ser dito da maioria dos países onde as pessoas mais ricas tendem a fazer fortuna em negócios regulamentados pelo governo, nos quais as conexões políticas são o fator decisivo de sucesso. Os oligarcas russos, Silvio Berlusconi, na Itália, Carlos Slin, no México e mesmo os grandes tycoons de Hong Kong estão todos nessa categoria. Fizeram suas fortunas em negócios altamente dependentes das concessões do governo como energia, empreendimentos imobiliários, telecomunicações, mineração. O sucesso nesses negócios quase sempre depende mais de ter as conexões certas do que de ter espírito empreendedor e iniciativa.
Na maior parte do mundo a melhor maneira de se fazer dinheiro não é ter idéias brilhantes e trabalhar duro para implementá-las, mas sim cultivar boas conexões no governo. Esse modelo do “capitalismo de camaradagem” molda as atitudes do publico a respeito do sistema econômico do pais. Quando perguntados sobre o mais importante fator determinante de sucesso financeiro, os administradores de empresa italianos põem “conhecer pessoas influentes” em primeiro lugar (80% consideram isso importante ou muito importante). “Competência e experiência” apareciam em quinto lugar, atrás até de quesitos como “Lealdade e obediência”.
Esses diferentes caminhos para a prosperidade revelam mais que uma diferença de percepção. O capitalismo americano é realmente diferente das suas contrapartidas européias, por razões que estão profundamente enraizadas na história.
As raízes do capitalismo americano
Na America, diferentemente do resto do Ocidente, a democracia precede a industrialização. Quando a Segunda Revolução Industrial estava em curso no final do século XIX, os Estados Unidos já tinham vivido várias décadas de voto universal (masculino), assim como várias décadas de educação para todos. Isso criou uma opinião publica exigente, pouco disposta a aceitar políticas econômicas com distorções e injustiças evidentes. Não é por coincidência que o conceito de lei antitruste – uma idéia pró-mercado e não pró-business – tenha se desenvolvido nos Estados Unidos do fim do século XIX e início do XX. Também não é por coincidência que no início do século XX, alimentada por uma imprensa atuante e investigativa e um movimento político populista (mas não anti-mercado), os Estados Unidos aumentaram a regulamentação da economia para reduzir o poder das grandes empresas. Ao contrário da Europa – onde a oposição aos excessos do poder econômico vinham de um movimento socialista anti-mercado – nos Estados Unidos essa oposição era entusiasmadamente pró-mercado. Quando Louis Brandeis atacava os grandes trustes, ele não estava tentando interferir com o mercado, ele estava apenas tentando fazer com que ele funcionasse melhor. O resultado é que os americanos foram os primeiros a entender que os interesses do mercado e o das empresas nem sempre são coincidentes.
O capitalismo americano também se desenvolveu numa época em que o envolvimento do governo na economia era muito fraco. No início do século XX, quando a moderna América capitalista estava tomando forma, os gastos do governo dos Estados Unidos correspondiam a 6,8% do PIB. Depois da II Guerra Mundial, quando o capitalismo finalmente tomou forma na Europa Ocidental, o gasto médio dos governos europeus correspondia a 30% do PIB. Até a I Guerra Mundial, os Estados Unidos tinham um governo federal magérrimo comparado ao governo nacional de qualquer outro país. Isso se devia, em parte, ao fato de os Estados Unidos nunca terem sofrido uma ameaça militar significativa, o que permitia ao governo gastar uma pequena parcela do orçamento em armamento. A natureza federativa do regime americano também fez a sua parte para limitar o tamanho do governo central.
Quando o governo é pequeno e relativamente fraco, o melhor meio de se fazer dinheiro é abrir um negócio particular. Mas quanto mais amplo for o espectro dos gastos governamentais, mais fácil fica fazer dinheiro desviando recursos públicos. Começar um negócio do zero é difícil e envolve muito risco. Ganhar um favor do governo, ou mesmo fazer um contrato com ele, é muito mais fácil e muito mais seguro. Assim, em nações com governos grandes e poderosos, o Estado acaba por se colocar no centro do sistema econômico, mesmo quando esse sistema é relativamente capitalista. Isso acaba por misturar política com economia na percepção da opinião publica. Quanto maior a parcela dos capitalistas que fizeram fortuna graças às suas conexões políticas, mais o sistema será avaliado como injusto e corrupto.
Um outro aspecto que distingue o capitalismo americano é o fato dele ter se desenvolvido com pouca influencia estrangeira. Enquanto os capitais europeus (especialmente o britânico) tenham tido um papel importante no desenvolvimento econômico da América dos séculos XIX e XX, as economias européias da época não eram mais desenvolvidas que a americana. Assim, os capitalistas europeus podiam investir na ou competir com as companhias americanas, mas nunca chegaram a dominar o sistema. O capitalismo americano se desenvolveu de forma mais ou menos orgânica, e ainda mostra as marcas dessas origens. O código de falências americano, por exemplo, tem um viés claramente pró-devedor, porque os Estados Unidos nasceram e se desenvolveram como um país de tomadores de empréstimos.
A situação é muito diferente em países que desenvolveram economias capitalistas depois da II Guerra Mundial. Esses países (na Europa não soviética, partes da Ásia e na maior parte da América Latina) se industrializaram sob a sombra do gigante norte-americano. Nesse processo, as elites locais se sentiam ameaçadas pela perspectiva de colonização econômica por companhias americanas muito mais eficientes e capitalizadas. Para se proteger, construíram deliberadamente um sistema pouco transparente onde as conexões locais eram muito importantes, porque isso lhes dava uma vantagem. Essas estruturas têm se provado resistentes desde então. Depois que um sistema é montado para recompensar boas relações mais que a eficiência, passa a ser dificílimo reformá-lo, já que as pessoas no poder são as que mais perderiam com as mudanças.
Finalmente, os Estados Unidos puderam desenvolver melhor a sua agenda pró-mercado que a sua agenda pró-business porque nunca sofreu influencia do marxismo. É possível que o tipo de capitalismo que os Estados Unidos desenvolveram seja a causa mais que o efeito da ausência de movimentos marxistas significativos no país. Mas, seja como for, essa diferença em relação a outros regimes ocidentais foi significativa para o desenvolvimento da atitude do americano médio em relação à economia. Em países com partidos marxistas fortes, as forças pró-mercado e as forças pró-business foram compelidas a se aliar para enfrentar o inimigo comum. Se alguém enfrenta a ameaça de nacionalização (isto é, o controle dos meios por uma pequena elite política), mesmo o capitalismo de relacionamentos (que envolve o controle dos meios por uma pequena elite de negócios) começa a parecer uma alternativa atraente.
O resultado é que muitos países não puderam desenvolver um capitalismo mais aberto e competitivo porque não podiam se dar o luxo de dividir a oposição ao marxismo. Pior que isso, a bandeira da liberdade de mercado acabou sendo apropriada pelas forças pró-business, que estavam melhor equipadas e tinham melhores condições. Paradoxalmente, à medida que as idéias marxistas entraram em declínio, esse problema se agravou, em vez de melhorar, na maioria desses países. Após décadas de convivência e submissão, as forças pró-mercado não conseguiram mais se separar do campo pró-business. Tendo desaparecido a oposição ideológica do marxismo e não tendo de enfrentar nenhuma oposição da ideologia pró-mercado, as forças pró-business passaram a nadar de braçada. Em nenhum país esse fenômeno é mais evidente que na Itália, onde o movimento pró-mercado hoje é literalmente propriedade de um único homem, o primeiro ministro Silvio Berlusconi, que quase sempre parece estar dirigindo o país no interesse do seu império de mídia.
Por todas essas razões, os Estados Unidos desenvolveram um modelo de capitalismo que chega mais perto que nenhum outro da . Por isso a visão que muitos americanos têm do capitalismo é aquela do “corra para a riqueza via trabalho duro” das historias de Horatio Halger, que vieram a definir o sonho americano. No resto do mundo, Horatio Halger é um desconhecido e a imagem de mobilidade social é dominada por histórias como a de Cinderela ou a de Evita: simples fantasias, em lugar de sonhos plausíveis. Foi esse entendimento do que seja oportunidade que ajudou a fazer do capitalismo algo popular e seguro nos Estados Unidos.
Como o sistema de liberdade de mercado se apóia nesse apoio publico, e esse apoio publico depende da continuação da confiança do publico na justiça do sistema, qualquer erosão dessa percepção ameaça o sistema inteiro. Essa erosão ocorre quando conexões com o governo ou o poder de interesses arraigados do mercado superam a competição realmente livre e justa como o melhor caminho para a riqueza e o sucesso. Tanto o governo quanto as grandes corporações têm forte incentivo para empurrar as coisas nessa direção e, assim, se deixados fora de controle, constituem uma ameaça para a forma peculiar de capitalismo americano.
Ainda que os Estados Unidos tenham tido a grande vantagem de começar a partir de um modelo superior de capitalismo e de desenvolver uma ideologia para sustentá-lo, o sistema ainda é vulnerável a essas pressões – e não apenas em situações de crise. Nem mesmo a mais persuasiva e resistente das ideologias pode sobreviver às condições e aos fundamentos que a criaram. O capitalismo americano precisa de defensores que compreendam os desafios que o ameaçam, e que possam defende-lo perante o publico. Mas nos últimos 30 anos, na medida em que foi desaparecendo a ameaça comunista, os defensores do capitalismo foram se tornando mais raro enquanto as tentações corporativistas aumentavam. Foi isso que criou as condições para a eclosão da crise que agora enfrentamos – e nos deixou menos aptos a discernir como poderemos nos recuperar dela.
O legado do excepcionalismo americano
Um sistema financeiro saudável crucial para o funcionamento de qualquer economia de mercado. O acesso mais universal possível aos recursos financeiros é essencial para aparelhar os melhores talentos e lhes permitir prosperar e crescer. É fundamental para trazer sangue novo para o sistema, e para tornar mais forte a competição. O sistema que aloca recursos financeiros aloca também poder e renda; se esse sistema não é justo, equitativo, há pouca esperança de que o resto da economia seja. E o potencial para as distorções e abusos no sistema financeiro é sempre muito grande.
Os americanos sempre foram sensíveis a essas distorções e abusos. Mas ainda que tenham sempre rejeitado um discurso anti-capitalista genérico, sempre acalentaram uma espécie de populismo anti-financeiro. Essa tendência levou a inúmeras decisões políticas ao longo da história dos Estados Unidos que, embora ineficientes do ponto de vista econômico, ajudaram a preserva a saúde do capitalismo democrático americano no longo prazo. Nos últimos anos da década de 1830, o presidente Andrew Jackson se opôs a renovar o mandato do Segundo Banco dos Estados Unidos – um movimento que contribuiu para o pânico de 1837 – porque ele o via como um instrumento de corrupção política e uma ameaça às liberdades civis. Uma investigação iniciada por ele provou “alem de qualquer duvida que esta poderosa instituição se dedicou ativamente a influenciar a eleição dos funcionários públicos usando dinheiro”.
Ao longo da maior parte da historia americana as regulamentações estaduais para bancos foram pautadas pelas preocupações com o poder dos bancos de Nova York sobre o resto do país, e o medo de que grandes bancos drenassem o dinheiro do campo para desviá-lo para as cidades. Para lidar com esses medos, vários estados criaram inúmeras restrições: desde o numero de agências (cada banco só podia ter uma única agência), às restrições para a expansão dentro de um mesmo estado, a proibição de atividades inter estaduais. De um ponto de vista estritamente econômico tais restrições parecem malucas. Forçavam o re-investimento de depósitos na mesma área onde tinham sido colhidos, distorcendo violentamente a alocação de recursos. E, ao impedir os bancos de crescer, tornando-os menos diversificados e mais sujeitos à falência. Mas, assim mesmo, essas políticas tiveram um efeito colateral positivo: fragmentaram o setor bancário reduzindo o seu poder político e, em conseqüência, ensejando o nascimento de um vibrante mercado de seguros.
Mesmo a separação entre banco de investimento e banco comercial introduzida pela lei Glass-Steagall, durante o New Deal foi produto de uma longa tradição americana. Ao contrário de muitos outros regulamentos para o setor, a Glass-Steagall ao menos tinha um racional econômico: impedir os bancos comerciais de explorar seus correntistas enfiando-lhes os bônus de firmas para as quais o banco tinha emprestado dinheiro e tinham ficado inadimplentes. A maior consequência dessa lei foi a fragmentação que provocou e que ajudou a reduzir a concentração da industria bancária criando interesses divergentes para diferentes setores do mercado financeiro, e ajudando a reduzir o seu poder político.
Nas ultimas três décadas, todos esses impedimentos foram levantados ao longo da progressiva desregulamentação da atividade bancária. As restrições estaduais eram altamente ineficientes desde sempre, mas as inovações tecnológicas as tornaram completamente insustentáveis. Que sentido faz limitar o numero de filiais se os bancos podem fazer transações eletrônicas no país inteiro?
Assim, começando no final dos 70, os regulamentos estaduais começaram a ser relaxados ou eliminados aumentando a eficiência dos bancos e vitaminando o crescimento econômico. Mas a mudança também provocou o aumento da concentração. Em 1980 havia 14.434 bancos nos Estados Unidos, mais ou menos o mesmo numero de 1934. Em 1990 o numero tinha caído para 12.347; em 2000, para 8.315. Em 2009, o numero está abaixo dos 7.100. Mas o mais importante é que a concentração dos depósitos e dos empréstimos aumentou muito mais. Em 1984, os cinco maiores bancos controlavam só 9% dos depósitos. Em 2001 a porcentagem cresceu para 21% e no final de 2008 para 40%.
O ponto crucial desse processo foi a aprovação, em 1999, da lei Gramm-Leach-Bliley, que anulou as restrições impostas pela lei Glass-Steagall. Essa lei foi erroneamente acusada de ser a maior protagonista da atual crise mas, na verdade, teve pouco ou nada a ver com ela. As maiores instituições que faliram ou foram resgatadas pelo governo nos últimos dois anos foram bancos de investimento puro sangue - como Lehman Brothers, Bear Sterns e Merril Lynch – que não se beneficiaram da extinção da lei Glass-Steagall; ou eram bancos comerciais puro-sangue como o Wachovia e o Washington Mutual. A única exceção foi o Citigroup, que fundiu suas operações comercial e de investimento antes que a nova lei o permitisse, graças a uma isenção especial.
O efeito real da lei Gramm-Leach-Bliley foi político, mais que econômico. No regime anterior, bancos comerciais, bancos de investimento e seguradoras tinham agendas diferentes e, consequentemente, seus esforços de lobby se compensavam mutuamente. Depois que as restrições foram levantadas, os interesses de todos os grandes players do mercado financeiro se alinharam, o que deu ao setor um poder irresistível de moldar a agenda política. A concentração da industria bancária só fez aumentar esse poder.
A mais importante fonte de poder da industria financeira era a sua lucratividade, pelo menos a que constava dos livros. Nos anos 60, a fatia do PIB produzida pelo setor financeiro chegava a pouco mais que 3%. Em 2000, estava beirando os 8%. Essa expansão refletia o rápido crescimento não só dos lucros como também dos salários. Em 1980, o salário relativo de um trabalhador do setor financeiro era comparável ao de outros trabalhadores do mesmo nível nos demais setores. Em 2007, uma pessoa trabalhando em finanças ganhava 70% mais. Qualquer tentativa de explicar essa diferença pela qualificação ou pelo que o trabalho demandava não fica em pé. Mas o fato é que as pessoas trabalhando em finanças estavam fazendo muito mais dinheiro que todas as outras.
Essa lucratividade enorme permitia à industria gastar quantias desproporcionais às investidas por qualquer outra fazendo lobby sobre o sistema político. Nos últimos 20 anos o setor financeiro deu 2,2 bilhões de dólares em contribuições de campanha, muito mais que qualquer outra industria. E nos últimos 10 anos, gastou 3,5 bilhões em trabalhos de lobby.
Naturalmente, a explosão dos salários e dos lucros também atraiu os melhores talentos – com repercussões que foram muito alem do setor financeiro, atingindo profundamente também os governos. Há 30 anos, os melhores alunos que saiam das faculdades iam para a ciência, a tecnologia, o direito e os negócios; nos últimos 20 anos, foram todos para o setor financeiro. E, lá dentro, passaram naturalmente a trabalhar pelos seus próprios interesses. É natural que uma pessoa trabalhando com derivativos comece a acreditar sinceramente na importância e no valor dos derivativos para a saúde do sistema, do mesmo modo que um engenheiro nuclear acredita que a energia nuclear pode resolver os problemas do mundo. E se a maior parte da elite política fosse recrutada entre os engenheiros nucleares, não seria mais do que natural esperar que eles enchessem o país de usinas nucleares. De fato, existe um exemplo exatamente desse cenário na França onde, por razões culturais complicadas, uma parcela incomumente grande da elite política estudou engenharia na Ecole Polytechnique – o que fez com que a França seja o país mais dependente de energia nuclear em todo o mundo.
Um efeito semelhante aconteceu com as finanças nos Estados Unidos. A proporção de pessoas treinadas e experimentadas em finanças trabalhando nos mais altos escalões das ultimas presidências da republica é extraordinária. Quatro dos últimos seis secretários do Tesouro cabem nessa descrição. Na verdade, os quatro estavam direta ou indiretamente ligados a uma única empresa: Goldman Sachs. Mas isso não era a norma; dos seis secretários do Tesouro que os antecederam, só um tinha um background financeiro. Hoje, gente do setor financeiro ocupa cargos não só na secretaria do Tesouro mas em inúmeros outros departamentos, especialmente a Casa Branca. O chefe da equipe de Barak Obama, Rahm Emanuel, já trabalhou para um banco de investimentos, assim como seu predecessor sob George W. Bush, Joshua Bolten.
Não há nada de intrinsecamente maligno nesses desenvolvimentos. Na verdade é até natural que governos procurando os melhores quadros acabem por achá-los no mundo financeiro, para onde muitos dos melhores migraram. O problema é que pessoas que passaram a maior parte de suas vidas trabalhando em finanças têm uma tendência natural de pensar que os interesses de sua industria e os interesses do país sempre coincidem. Quando o secretário do Tesouro Henry Paulson foi ao Congresso, no outono passado, para dizer que o mundo como ele o entendia ia acabar se os deputados não aprovassem 700 milhões de dólares em socorro de emergência, ele estava falando sério e em boa fé. E, em certa medida, ele estava certo: o mundo dele – o mundo em que tinha vivido e trabalhado - teria mesmo acabado se não tivesse havido a operação de socorro. O Goldman Sachs teria quebrado e as repercussões para todas as pessoas que ele conhece seriam enormes. Mas o mundo de Henry Paulson não é o mesmo mundo em que vive a maioria dos americanos e nem mesmo o mundo em que nossa economia, como um todo, existe. Saber se esse mundo também teria acabado sem as operações de socorro do Congresso é uma questão muito mais controvertida; e, lamentavelmente, esse debate nunca ocorreu.
O problema é que as pessoas no governo tendem a confiar nas suas redes de relacionamento para obter “informações do mundo real”. E se todas as pessoas dessa rede vêm do mesmo meio, as informações e idéias circulando entre os formuladores de políticas ficarão muito limitadas. Uma piada significativa é atribuída a um funcionário do Tesouro de Bush que notou que no calor da crise financeira, toda vez que o telefone tocava e o prefixo 212, de NY, aparecia na bina, a mensagem era a mesma: “comprem os ativos podres”. E uma tal unanimidade torna difícil até para o mais inteligente e bem intencionado dos formuladores de políticas chegar às conclusões certas.
O circulo vicioso
A crescente concentração da industria financeira e sua influência política cada vez maior minou a tradicional diferenciação que o americano médio fazia entre liberdade de mercado e o jogo das grandes corporações. Isto quer dizer não apenas que os interesses do setor financeiro dominam o entendimento dos formuladores de políticas mas também – o que é mais importante – que a percepção do publico da legitimidade do sistema econômico está sob risco.
E se o sistema de liberdade de mercado é politicamente frágil, o seu componente mais frágil é justamente o setor financeiro. Ele é frágil porque se baseia inteiramente na intocabilidade dos contratos e no respeito estrito às normas legais, e nenhuma dessas duas coisas podem se manter intocadas sem o apoio da opinião publica. Quando as pessoas estão furiosas a ponto de ameaçar a vida dos banqueiros; quando uma maioria de americanos começa a pedir a intervenção do governo não só para regulamentar o setor mas também para controlar o modo como as empresas são tocadas; quando os eleitores perdem a confiança no seu sistema econômico porque o vêm como fundamentalmente corrupto – então a garantia da propriedade privada também começa a balançar. E quando o direito de propriedade começa a balançar, a sobrevivência de um setor financeiro atuante e, com ele, toda a economia, entram em cheque.
O envolvimento do governo com o setor financeiro na esteira da crise - e particularmente as operações de socorro de grandes empresas e bancos – exacerbou o problema. A desconfiança do publico em relação aos banqueiros se misturou com sua desconfiança em relação ao governo, e as preocupações com o desperdício de dinheiro publico se somaram às preocupações com o efeito deletério da decisão de se recompensar os culpados pelo desastre de Wall Street. Isso fez com que muitos políticos tentassem salvar suas reputações se voltando contra o setor financeiro para exigir uma espécie de vingança. A aprovação pela Câmera do exame de uma proposta de taxar retroativamente em 90% os bônus pagos às instituições financeiras incluídas no TARP (o programa de resgate), mostra o quanto essa combinação de revanche com demagogia pode se tornar perigosa.
Felizmente essa proposta, em particular, nunca chegou a se transformar em lei. Mas o clima de revanche contra o universo financeiro contribuiu fortemente, por exemplo, para a expropriação dos avalistas de crédito da Chrysler. Ao condenar publicamente os credores da Chrysler que pediam que seus direitos contratuais fossem respeitados e excluí-los do programa de resgate, o presidente Obama estava apenas explorando o sentimento de rejeição do publico. Essa exceção acabou sendo paga pelos investidores e mandou um recado para o futuro. Ainda que o gesto de Obama parecesse conveniente no curto prazo, ele ainda pode se revelar mortífero para o sistema financeiro, no longo prazo. Porque a proteção para credores securitizados é crucial para manter o acesso ao crédito de empresas em dificuldades ou para empresas em processo de concordata. O precedente da Chrysler vai por em risco a continuação desses financiamentos no futuro, especialmente para as empresas mais necessitadas deles e, assim, vai contribuir para aumentar a pressão por mais intervenção do governo.
O padrão que se estabeleceu na esteira da crise ameaça, portanto, abrir um circulo vicioso. Para evitar uma identificação, no imaginário publico, os políticos acabam apoiando e até insuflando os ataques ao setor financeiro; isso assusta os investidores legítimos, que passam a não ter mais certeza de contar com o cumprimento dos contratos e com o respeito à lei e seca o mercado dos recursos para empresas em dificuldades para as quais a ajuda do governo passa a ser o ultimo recurso.
Não é só por coincidência que na sequencia dos ataques irados contra a ganância dos executivos de Wall Streen, o governo pôs em cena o mais generoso subsidio jamais inventado para Wall Street. O Programa Publico Privado de Investimeno anunciado em março pelo secretario do tesouro Timothy Gartner é um esquema tão generoso que, resumidamente, os investidores privados recebem um subsidio de US$ 2 para cada dólar que investirem na compra de “ativos tóxicos”.
Essas condições são justificadas pelas incertezas levantadas pela revanche populista e, ao mesmo tempo, exacerbam as condições que geram essa revanche, confirmando a impressão de que o governo e os grandes players do mercado financeiro estão jogando juntos às custas dos contribuintes e dos pequenos poupadores. Se o Programa Publico Privado de Investimento funcionar, as mesmas pessoas que causaram a crise vão ficar fabulosamente ricas com a ajuda do governo. E isso com certeza não vai fazer bem para a imagem do capitalismo americano junto à opinião publica.
Esse é exatamente o circulo vicioso em que o capitalismo está preso na maioria dos países do mundo. De um lado, investidores e empresários se sentem ameaçados pela hostilidade do publico e, com isso, justificam a busca de privilégios junto ao governo. Do outro, os cidadãos comuns se sentem ultrajados pelos privilégios que os empresários e investidores recebem aumentando a hostilidade. Para todo mundo que sabe como o capitalismo é visto fora da America, mundo afora, o que está acontecendo agora nos Estados Unidos parece muito familiar.
O futuro do capitalismo americano
O capitalismo americano está numa encruzilhada. Um dos caminhos pode transformar a irritação do povo em apoio político para algumas reformas genuinamente pró-mercado, ainda que isso não sirva aos interesses das grandes financeiras. Puxando pelo melhor lado da tradição populista será possível colocar limites para a industria financeira e restaurar os princípios que dão uma dimensão ética ao capitalismo: liberdade, meritocracia, um link direto entre recompensa e esforço e um senso de responsabilidade que assegure que aqueles que podem ganhar também podem suportar perdas. Isso implica abandonar a noção de que qualquer empresa possa ser grande demais para quebrar, criar regras para impedir as grandes corporações de manipular o governo em detrimento do mercado. Ou seja, voltar a olhar a economia com um aproach pró-mercado em vez de pró-business.
O outro caminho é aplacar a ira popular com medidas como a criação de limites para bônus e seguir segurando as pontas dos grandes players financeiros, tornando-os dependentes do governo e a economia dependente deles. Medidas desse tipo jogam para a platéia nos momentos críticos mas, no longo prazo, ameaçam o sistema financeiro e o apoio do publico ao capitalismo americano. E, alem disso, reforçam os comportamentos que resultaram na crise. Esse é o caminho do capitalismo das grandes corporações: um caminho que apaga a diferença entre políticas pró-mercado e medidas pró-business, o que acaba destruindo a fé que os americanos sempre depositaram na legitimidade do capitalismo democrático.
Infelizmente, por enquanto parece que o governo Obama escolheu esse ultimo caminho. É uma escolha que nos joga numa espiral negativa de ressentimento crescente do publico e pressões cada vez maiores pelo capitalismo para os amigos tão comum no resto do mundo – o que pode acabar com o excepcionalismo econômico que foi tão crucial para a prosperidade americana. Quando a poeira tiver baixado e o pânico tiver passado, este efeito lateral pode bem despontar como a mais séria e destrutiva conseqüência desta crise financeira.
Luigi Zingales é professor de Emprendedorismo e Finanças na Booth School of Business da Universidade de Chicago e co-autor do livro Salvando o Capitalismo dos Capitalistas.
Um painel político do momento histórico em que vivem o país e o mundo. Pretende ser um observatório dos principais acontecimentos que dominam o cenário político nacional e internacional, e um canal de denúncias da corrupção e da violência, que afrontam a cidadania. Este não é um blog partidário, visto que partidos não representam idéias, mas interesses de grupos, e servem apenas para encobrir o oportunismo político de bandidos. Não obstante, seguimos o caminho da direita. Semitam rectam.
"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)
"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)
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