"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

TESTEMUNHAS NEGAM LÓGICA

Comentei, em crônica passada, a recusa dos testemunhas de Jeová de receberem transfusões sanguíneas. De um leitor, recebo:

“Por motivos bíblicos, as Testemunhas de Jeová recusam transfusões de sangue. (Veja Levítico 7:26, 27; 17:10- 14; Deuteronômio 12:23- 25; 15:23; Atos 15: 20, 28, 29; 21:25. ) Mas aceitam — e procuram arduamente — alternativas médicas ao sangue. “As Testemunhas de Jeová buscam ativamente o melhor tratamento médico”, disse o Dr. Richard K. Spence, quando era diretor-cirúrgico de um hospital de Nova York. “Como grupo, são os consumidores mais bem informados que um cirurgião poderia encontrar.”

Longe de mim pretender discutir as vantagens médicas de cirurgias com ou sem sangue. Não tenho ciência para tanto. Nas transfusões sanguíneas podem ocorrer contaminações, mas isto depende da excelência – ou precariedade - dos hospitais e laboratórios. É fator que nada tem a ver com sangue em si. Seja como for, ninguém pode pretender buscar fundamentos na Bíblia para recusar transfusões sanguíneas.

Vamos aos versículos citados pelo leitor. Ora, tanto o Levítico como o Deuteronômio falam em comer sangue, não em transfusão. É diferente.

Levítico 7: 26 - E nenhum sangue comereis, quer de aves, quer de gado, em qualquer das vossas habitações. 17: 10 - Também, qualquer homem da casa de Israel, ou dos estrangeiros que peregrinam entre eles, que comer algum sangue, contra aquela alma porei o meu rosto, e a extirparei de seu povo.

Deuteronômio, 12: 23-24 - Tão-somente guarda-te de comeres o sangue; pois o sangue é a vida; pelo que não comerás a vida com a carne. Não o comerás; sobre a terra o derramarás como água. 15: 23 - Somente do seu sangue não comerás; sobre a terra o derramarás como água.

Decididamente, Moisés não conhecia o boudin aux pommes.

Como tampouco nos tempos do Novo Testamento existia transfusão sanguínea, é de supor-se que em Atos o evangelista se referia à antiga tradição veterotestamentária do não comer.

Atos: 15: 19 - Por isso, julgo que não se deve perturbar aqueles, dentre os gentios, que se convertem a Deus. 15:20 - (...) mas escrever-lhes que se abstenham das contaminações dos ídolos, da prostituição, do que é sufocado e do sangue. 15:29 - Que vos abstenhais das coisas sacrificadas aos ídolos, e do sangue, e da carne sufocada, e da prostituição; e destas coisas fareis bem de vos guardar. 21: 25 Todavia, quanto aos gentios que têm crido já escrevemos, dando o parecer que se abstenham do que é sacrificado aos ídolos, do sangue, do sufocado e da prostituição.

Escreve-me um outro leitor: “As Testemunhas de Jeová apenas se abstém da transfusão sanguínea de hemoderivados, exceto diminutas partículas. Na imensa maioria dos casos, mesmo nas emergências médicas, a perda de sangue é perigosa pelo risco de choque hipovolêmico”.

Sei! O leitor quer me convencer que os profetas bíblicos tinham consciência do choque hipovolêmico, em época em que não havia sequer transfusão de sangue. Isso sem falar que o choque hipovolêmico só pode ocorrer após a perda de aproximadamente um quinto do volume sangüíneo normal, o que corresponde mais ou menos a um litro de sangue. Contem outra!

Mas se o Velho Testamento vê o sangue como algo imundo, a ponto de considerar imunda toda mulher, o Novo Testamento vai pregar uma peça aos que sentem asco pelo sangue. Lemos em Lucas:

"E, tomando um pão, tendo dado graças, o partiu e lhes deu, dizendo: Isto é o meu corpo oferecido por vós; fazei isto em memória de mim. De forma semelhante, depois de cear, tomou o cálice, dizendo: Este é o cálice da Nova Aliança no meu sangue derramado em favor de vós".

O mesmo vamos encontrar em Mateus, Marcos e no I Coríntios. O pão usado na celebração, segundo alguns cristãos, é visto como o Corpo de Cristo sem pecado, oferecido na cruz como resgate. O vinho é seu sangue derramado para remissão da humanidade condenada ao pecado herdado e morte.

Ou seja: na missa come-se a carne de Cristo e não um símbolo da carne de Cristo. Bebe-se o sangue de Cristo e não um símbolo do sangue de Cristo. A Igreja Católica transformou o sangue, de elemento imundo, a instrumento de redenção da humanidade. Vamos aos textos do magistério da Santa Madre.

O dogma da transubstanciação, se foi aventado no concílio de Latrão (1215), só toma corpo no concílio de Trento (1551). Na encíclica Ecclesia de Eucharistia, no capítulo 1 § 15, lemos: "Pela consagração do pão e do vinho se opera a transformação de toda substância do pão na substância do corpo do Cristo nosso Senhor e de toda a substância do vinho na substância de seu sangue; esta transformação, a Igreja católica a chamou justa e exatamente de transubstanciação".

Que mais não seja, o cânon 1° da 13ª sessão do concílio assim proclama:

"Se alguém nega que o Corpo e o Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, com sua Alma, e a Divindade, e conseqüentemente Jesus Cristo todo inteiro, estão contidos verdadeiramente, realmente, e substancialmente no Sacramento da Muito Santa Eucaristia; mas diz que eles lá estão somente como em símbolo, ou ainda em forma, ou em virtude: seja anátema".

Os testemunhas de Jeová divergem da interpretação dada pela Igreja de Roma, afinal já estavam atrelados à má reputação do sangue no Velho Testamento. Rejeitam tanto o dogma da transubstanciação como o da consubstanciação. Em sua comunhão, celebrada uma vez por ano, usam o pão e o vinho, mas como símbolos do Cristo. Para isto, usam de um recurso de tradução dos Evangelhos. O “isto é meu corpo” transforma-se em “isto significa meu corpo”. Não há dogma que um bom tradutor não remende.

Por outro lado, toda essa lengalenga de levar a Bíblia ao pé da letra não passa de retórica. No Levítico, a execução dos adúlteros é lei: “O homem que adulterar com a mulher de outro, sim, aquele que adulterar com a mulher do seu próximo, certamente será morto, tanto o adúltero, como a adúltera”.

É também no Levítico que lemos: “Com homem não te deitarás como se fosse mulher; é abominação.” E logo mais adiante: “Se também um homem se deitar com outro homem, como se fosse mulher, ambos praticaram coisa abominável; serão mortos; o seu sangue cairá sobre eles”.

A Bíblia prega não só a lapidação de mulheres, morte de homossexuais, como a lei de talião, a escravidão, a destruição dos altares de outras tribos e o genocídio. Pela lógica, os testemunhas de Jeová deveriam pregar e praticar, ainda hoje, não só a lapidação de mulheres e a morte de homossexuais, como também a lei de talião, a escravidão, a destruição dos altares de outras religiões e o genocídio.

Fevereiro 19, 2012
janer cristaldo

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