"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



quinta-feira, 22 de março de 2012

MUNDOS APARTADOS

Tive dois amigos, muito talentosos e de vasta cultura, que me confessaram sua falta de disposição para a leitura ordenada de “Em Busca do Tempo Perdido”, a monumental obra de Marcel Proust. Limitaram-se à apreciação de alguns trechos.

Qual a razão desse distanciamento intelectual? Proust não é um escritor polêmico, não suscita controvérsias políticas ou religiosas. Talvez se deva atentar nos centros pessoais de atividades e interesses dos leitores.

Qual o público ledor de Proust? Eu o vejo como um escritor para as elites intelectuais, amantes da ficção literária, seduzidas pelo seu inigualável conhecimento das complexidades psicológicas, sua técnica revolucionária de narrativa, a beleza do seu estilo. Será possível um cultor das letras não admirar Proust?

Às vezes acontecem aberrações desse gênero: Tolstoi detestava Shakespeare! Mas (de um modo geral), em outra categoria de intelectuais, os cientistas sociais (sociólogos, economistas, politicólogos, juristas, etc.), Proust não tem a mesma acolhida. O motivo é claro. Ele não se ocupou do objeto do maior interesse deles: os fatos sociais, isto é, fatos próprios da coletividade humana e que, portanto, transcendem a singularidade individual. Todos sabem que o mundo social, manifesto em esferas como a econômica, a política, a religiosa etc., preexiste e sobrevive a cada um dos indivíduos.

Um romancista alienar-se da apreciação de fatos sociais não é incapacidade e sim uma voluntária limitação do campo literário. Veja-se o grande Machado de Assis. Já outros provocaram debates entre sociólogos, pensadores políticos e historiadores. São exemplos Tolstoi, Dostoievski, Balzac, Dickens etc. Escritores desse gênero nem sempre atacaram instituições ou propuseram mudanças estruturais.

Balzac, o primeiro romancista sociólogo, era um saudosista da antiga monarquia e Dostoievski foi sabotado na União Soviética devido a seu reacionarismo, Eça de Queiroz se mostrou impiedoso na crítica a algumas realidades sociais de seu país e essa foi a orientação dos romancistas regionais brasileiros.

Talvez aí esteja a explicação para o caso daqueles amigos que, embora reconhecendo a extraordinária lucidez das observações e reflexões proustianas, não sentiam ressonância delas em suas concepções, especulações e preocupações intelectuais. As iluminações do mundo de Proust se amorteciam no mundo cultural deles.

Humberto Braga
22 de março de 2012

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