O significado cambiante das palavras, que são empunhadas da forma que melhor convém a quem as empunha, me diverte. Triste sina a da direita no Brasil, escrevia eu em 2005. Em países mais civilizados, ser de direita é não concordar com as propostas da esquerda, direito legítimo de todo cidadão. No Brasil, direita significa portar toda a infâmia do mundo. Que o diga Clóvis Rossi, quando afirmou: “É um caso de estudo para a ciência política universal. Já escrevi neste espaço uma e outra vez que o PT fez a mais radical e rápida guinada para a direita de que se tem notícia na história partidária do planeta”.
Isto é: se o PT se revela corrupto, ele não é mais esquerda. É direita, porque só a direita é corrupta. Mesmo que o PT seja hoje o mesmo desde que nasceu, mesmo que os grandes implicados na corrupção – Genoíno, Mercadante, Zé Dirceu, Lula – sejam seus pais fundadores. Segundo Rossi, o PT guinou para a direita. E por que guinou para a direita? Porque suas falcatruas foram trazidas à tona. Permanecessem submersas, o partido continuaria sendo de esquerda.
É o que os franceses chamam de glissement idéologique. O conceito de esquerda sempre muda, à medida em que se corrompe. A direita é a caixa de Pandora, o repositório de todos os males do mundo, inclusive os das esquerdas. Pois quando as esquerdas cometem crimes – ou “erros”, como preferem seus líderes – é que não eram esquerda, mas direita.
Mas o conceito de direita também muda. Ou pelo menos muda no bestunto dos correspondentes tupiniquins na Europa. É o que deduzimos de artigo do correspondente Jamil Chade, do Estadão: “Considerada uma ameaça à democracia por incitar ao racismo e à xenofobia, a extrema direita adaptou seu discurso e, diante da crise financeira européia, chegou ao poder nos últimos anos em vários pontos da Europa. Nove países europeus já têm partidos de extrema direita em suas coalizões de governo central ou como peças fundamentais nos Parlamentos”.
O que um dia foi direita é hoje extrema direita. Trocando em miúdos: quando os líderes de direita têm votação inexpressiva e estão afastados do poder, a direita continua sendo direita. Mas se consegue captar um quinto do eleitorado, vira incontinenti extrema-direita. O articulista situa os partidos de extrema direita na Holanda, Dinamarca, Noruega, Finlândia, Áustria, Hungria, Suíça, Suécia e Itália. Por que extrema direita? Existe algum partido propondo o extermínio de judeus ou árabes, campos de concentração ou segregação racial?
Pelo que sabemos, não. O que existe são cidadãos preocupados com a economia – e também com o sistema jurídico – de seus países, que pedem a repatriação dos imigrantes sem papéis e a limitação da imigração. Não há xenofobia, mas desejo de preservação da própria cultura e dos empregos. Muito menos racismo. Existe uma repulsa ao islamismo, mas Islã não é raça. É religião. Os muçulmanos, oriundos de países teocráticos, não entendem a divisão entre igreja e Estado e querem impor a sharia na Europa. Os europeus reagem e, a meu ver, reagiram muito tarde.
Aconteceu no primeiro turno destas eleições na França. Marine le Pen conseguiu quase vinte por cento dos votos. Marine era de direita. Agora, foi promovida à extrema direita, uma ameaça à democracia por incitar ao racismo e à xenofobia. Marine é filha de Jean Marie Le Pen, líder do Front National, tido como nazista. Ora, desconheço qualquer ligação de Le Pen com o nazismo ou com ideais nazistas. Nazista foi, isto sim, François Mitterrand, que recebeu uma condecoração do governo de Vichy, a Francisque. Mas ninguém ousa – nem ousou – rotular Mitterrand como nazista. Afinal, aderiu ao socialismo.
As esquerdas têm a Europa engasgada na garganta. O ódio à Europa está na primeira frase do Manifesto Comunista. Claro que as esquerdas adoram as cidades, a gastronomia, o luxo europeus. O problema é que os europeus chegaram lá não via marxismo, mas via capitalismo. Seria bem mais fácil, para as viúvas do Kremlin, gostar da Europa se a prosperidade do continente fosse decorrência da doutrina aquela que morreu no século passado.
Falar em prosperidade, uma discreta Schadenfreude tem alimentado as esquerdas nestes dias de crise européia. Schadenfreude é a palavra que os alemães usam para definir o sentimento de alegria ou prazer pelo sofrimento ou infelicidade dos outros. Ainda há pouco, Luís Fernando Verissimo via, no naufrágio do transatlântico Concordia, nas costas italianas, um símbolo da decadência do continente. Calma, companheiro. A Europa precisa ainda decair muito para um dia empatar com o Brasil.
Semana passada, o sóbrio Estadão publicou uma notícia insólita. Que muitos holandeses, para enfrentar a crise, estão vendendo o que sobra da comida feita em casa ou freqüentando bares onde se pode levar a própria refeição. Consegue alguém acreditar nisto? Quem vende restos de comida? Para começar, se a comida é escassa, cozinha-se de modo a não sobrar nada. Continuando, restos de comida nunca vão constituir fonte de renda. E quem vai bater de casa em casa para comprar restos de comida?
Mais insólita ainda é a idéia de freqüentar bares onde se pode levar a própria refeição. Se tenho comida em casa, por que iria deslocar-me até um bar para comê-la? Não faz sentido. Que mais não seja, algo o bar vai cobrar-me pelo uso de mesas, toalhas, pratos, talheres. Se me falta dinheiro para comer, por que iria eu encarecer o pouco de comida que me resta? O repórter fala de um bar no qual os clientes trazem sua própria comida, que é aquecida pelos funcionários de graça. Só é preciso pagar pelas bebidas. Até pode ser. Mas se trata de UM bar. Que encontrou uma fórmula de vender bebidas. É de supor-se que os holandeses tenham como aquecer a comida em casa.
Outro exemplo deste repúdio à Europa e suas instituições é o recente escândalo em torno ao rei da Espanha. De repente, Juan Carlos foi anatematizado por praticar um esporte perfeitamente legal, caçar elefantes, esporte que deve ter praticado desde que se conhece por gente. Mais ainda, a imprensa encontrou uma amante para o rei, enfeite que nenhum estadista dispensa. Na Espanha, já há quem fale em fim da monarquia e abdicação de Don Juan Carlos.
Não bastasse isto, li em algum jornal, já não lembro qual, que o rei teria tido 1.500 amantes. Por um lado, nada de surpreender. Para um homem que detém o mais alto poder de um país, a cifra é perfeitamente exeqüível. Mas como é que não sabíamos disto? Alguém acredita que entre as 1.500 a nenhuma – nenhumazinha – ocorreu bater com a língua nos dentes? Ora, certamente centenas entre 1.500 não resistiriam a falar aos jornais sobre a real preferência. Strauss-Khan que o diga. Sem ter a visibilidade de um rei, por uma piguancha perdeu a chance de ocupar hoje o lugar do socialista François Hollande.
Leitores me perguntam o que acontecerá com a França caso vença Hollande. Ora, não vai acontecer nada. Como nada aconteceu na transição de Giscard d’Estaing para Mitterrand, nem na de Mitterrand para Chirac ou Sarkozy.
Desiludam-se as esquerdas. A França não muda.
30 de abril de 2012
janer cristaldo