"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



terça-feira, 3 de abril de 2012

O SENTIDO ESCATOLÓGICO DA PÁSCOA

Esses três dias, que a Igreja chama de grandes e santos, têm, dentro do desenrolar da semana santa, uma finalidade bem definida. Eles situam as celebrações dentro da perspectiva do Fim, eles nos relembram o sentido escatológico da Páscoa. Muito frequentemente a semana santa é considerada como uma "linda tradição," um "costume," uma data importante do calendário. É o acontecimento anual esperado e amado, a Festa "observada" desde a infância, durante a qual a gente se encanta com a beleza dos ofícios, com o fausto dos ritos, e na qual a gente se ocupa de preparar a ceia pascal, que não é de menor importância. . . Depois, uma vez que tudo isto tenha acabado, nós retomamos a vida normal. Mas, teremos mesmo consciência de que "a vida normal" não é mais possível depois que o mundo rejeitou seu Salvador, depois que "Jesus ficou triste e abatido.. .," que sua alma "ficou infinitamente triste até a morte. . ." e que ele morreu na cruz? Foram mesmo homens "normais" que gritaram: "Crucifica-o!" Homens normais que cuspiram nele e o pregaram na cruz.. . Se eles o odiaram e o mataram, é precisamente porque ele veio sacudir e desestabilizar sua vida normal. Foi mesmo um mundo perfeitamente "normal" que preferiu as trevas e a morte, em lugar da vida e da luz. . . pela morte de Jesus o mundo "normal," a vida "normal" foram irrevogavelmente condenados. Ou, mais exatamente, o mundo e a vida revelaram sua natureza verdadeira e anormal, sua incapacidade de acolher a luz, o terrível poder que o mal exerce sobre eles. "É agora o julgamento deste mundo" (João 12:31). A Páscoa de Jesus significa o fim para "este mundo" e, desde então, ele está "no seu fim." Este fim pode se estender por centenas de séculos, mas isto não altera em nada a natureza dos tempos em que vivemos que é "o último tempo." "O rosto deste mundo passa" (ICor. 7:31).

Páscoa significa "passagem"; para os judeus a festa da Páscoa era a comemoração anual de toda sua história, enquanto salvação, e da salvação enquanto passagem da escravidão no Egito à liberdade, do exílio à Terra prometida. A Páscoa era também a prefiguração da derradeira passagem, que conduz ao Reino de Deus. Ele, o Cristo, é o cumprimento da Páscoa. Ele completou a derradeira passagem, a da morte para a vida, deste "mundo velho" ao mundo novo, ao tempo novo do Reino. Ele tornou possível para nós esta passagem. Vivendo "neste mundo," nós podemos já "não ser deste mundo"; quer dizer, estarmos livres da escravidão da morte e do pecado, participantes do "mundo que há de vir." Mas, é necessário para tanto cumprirmos nossa própria passagem, condenar o velho Adão em nós mesmos, revestir o Cristo na morte batismal e ter nossa verdadeira vida oculta em Deus com o Cristo, no "mundo que há de vir."

A Páscoa não é, pois, mais uma comemoração, bonita e solene, de um acontecimento passado. É o próprio acontecimento manifestado, dado a nós, acontecimento sempre eficiente, que revela que o nosso mundo, nosso tempo e nossa vida estão no seu fim, e que anuncia o começo da vida nova. O papel dos três primeiros dias da semana santa é, precisamente, o de nos colocar diante do sentido último da Páscoa, de nos preparar para compreendê-la em toda sua amplidão.

Esta orientação escatológica, quer dizer, última, decisiva e final, é bem sublinhada pelo tropário comum a esses três dias:

« Eis que aparece o Esposo no meio da noite!.
Feliz o cervo que Ele encontrar acordado,
infeliz o que Ele encontrar indolente.
Vigia, pois, ó minh'alma:
não te deixes vencer pelo sono!
À morte tu serias entregue,
para fora do Reino banida.
Mas, acorda e clama:
Santo, Santo, Santo és Tu, ó Deus!
pelas orações da Mãe de Deus,
tem piedade de nós!»

Meia-noite é o instante em que o dia velho termina para dar lugar a um novo dia. Esta hora é assim para o cristão o símbolo do tempo em que vive. Por um lado, a Igreja está ainda neste mundo, compartilhando de suas fraquezas e tragédias. Por outro, seu ser verdadeiro não é deste mundo, pois ela é a Esposa de Cristo e sua missão é de anunciar e revelar a chegada do Reino e do novo Dia. Sua vida é um velar perpétuo e uma espera, uma vigília orientada para a aurora desse novo Dia. . . mas nós sabemos o quanto nosso apego ao "velho dia," ao mundo, com suas paixões e pecados, permanece ainda bastante tenaz. Nós sabemos o quanto ainda pertencemos profundamente a "este mundo." Nós vimos a luz, nós conhecemos o Cristo, nós ouvimos falar da paz e da alegria da vida nova nele, e, entretanto, o mundo nos mantém ainda em escravidão. Esta fraqueza, esta constante traição ao Cristo e esta incapacidade de dedicar a totalidade do nosso amor ao único objeto de amor verdadeiro, são magnificamente expressadas no exapostilário desses três dias:

«Eu contemplo tua câmara nupcial,
ó Salvador meu!
Ela está toda enfeitada,
e eu não tenho as vestes para nela entrar.
Torna luminosa a roupagem da minha alma,
ó Tu que dás a luz,
e salva-me!»

O mesmo tema é ainda mais desenvolvido nas leituras do Evangelho destes dias. Primeiro, é o texto inteiro dos quatro evangelhos (até João 13:31), lido nas Horas (Prima, Tercia, Sexta, Nona), que mostra que a cruz é o apogeu de toda a vida de Jesus e de seu mistério, a chave para verdadeiramente o compreender. Tudo, no Evangelho, conduz a esta última "hora de Jesus" e tudo deve ser visto sob sua luz. Em seguida, cada ofício possui seu próprio perícope de evangelho.

A Segunda-Feira

Nas matinas: Mateus 21:18-43 — a parábola da figueira estéril, símbolo do mundo criado para dar frutos espirituais e relutante em sua resposta a Deus.

Na liturgia dos Pré-santificados: Mateus, 24:3-35 — o grande discurso escatológico de Jesus, os sinais e o anúncio do Fim. "O céu e a terra passarão, mas minhas palavras não passarão."

A Terça-Feira

Nas matinas: Mateus 22:15 e 23-39 — condenação do farisaísmo, quer dizer, da religião cega e hipócrita daqueles que pensam que são condutores de homens e a luz do mundo, mas que, de fato, "fecham o Reino dos céus aos homens."

Na liturgia dos Pré-santificados: Mateus 24:36-26:2 — o Fim; as parábolas do Fim: as cinco virgens que têm óleo suficiente em suas lâmpadas, e as cinco néscias que não são admitidas no banquete de núpcias; a parábola dos dez talentos: "Estejai prontos, pois eis que o Filho do Homem virá à hora em que não o pensais." E finalmente, o Juízo Final.

A Quarta-Feira.

Nas matinas: João 12:17-50 — a rejeição do Cristo; o acirramento do conflito; o último aviso: "É agora o julgamento deste mundo. . . aquele que me rejeita e não recebe minhas palavras terá seu juiz: a palavra que anunciei, ela é que o julgará no último dia."

Na liturgia dos Pré-santificados: Mateus 26:6-16 — a mulher que derrama o óleo precioso sobre Jesus, imagem do amor e do arrependimento que, sozinhos, nos unem ao Cristo.

Estes perícopes do evangelho são explicados e comentados na hinografia desses dias: os estiquérios (stykeroi), as triodes (cânones curtos de três odes cantados nas matinas) ao longo dos quais ecoa esta exortação: o fim e o julgamento estão próximos, preparemo-nos!

«Indo, Senhor, para Tua Paixão voluntária,
no caminho Tu dizias aos Teus apóstolos:
Eis que subimos a Jerusalém
e que o Filho do Homem será entregue,
segundo o que d'Ele está escrito.
Vamos, pois, nós também, acompanhemo-lo,
o espírito purificado;
sejamos crucificados com ele
e morramos Nele para as volúpias da vida
a fim de vivermos com ele e de escutá-lo dizer:
“ Eu não subo mais a Jerusalém terrestre para sofrer,
mas subo para meu Pai e vosso Pai,
para meu Deus e vosso Deus,
e eu vos farei subir comigo para a Jerusalém do alto,
no Reino dos Céus.»

(Segunda-feira nas Matinas)

«Ó, minh'alma,
eis que o Mestre te confiou um talento.
Recebe este dom com temor;
Faze-o frutificar para aquele que to deu;
distribua-o aos pobres
e tu terás o Senhor como amigo.
Assim, quando Ele vier em Sua glória,
tu ficarás a Sua direita
e tu ouvirás a palavra bem-aventurada:
“ Entra, servo meu, na alegria de teu Mestre"
"Em Tua grande misericórdia,
faz que eu seja digno, apesar do meu afastamento,
oh, Salvador!»

(Terça-feira nas Matinas)

Durante todo o tempo de quaresma, lê-se nas vésperas dois livros do Antigo Testamento: o Gênesis e os Provérbios; no começo da Semana Santa, eles são substituídos pelo Êxodo e pelo Livro de Jó. O Livro do Êxodo é a história da libertação de Israel da escravidão no Egito, e de sua Páscoa; ele nos predispõe a alcançar o sentido do êxodo do Cristo rumo a seu Pai, do cumprimento Nele de toda a história da salvação. Jó, o homem da dor, é o ícone de Cristo do Antigo Testamento. Esta leitura anuncia o grande mistério dos sofrimentos do Cristo, de sua obediência e de seu sacrifício.

A estrutura litúrgica destes três dias é ainda aquela dos ofícios de quaresma: ela compreende a oração de Santo Efrém, o Sírio, e as metanóias que o acompanham (1), a leitura mais longa do salmodiário, a Liturgia dos Pré-Santificados e o canto litúrgico da quaresma. Nós estamos ainda no tempo do arrependimento, porque só o arrependimento pode nos fazer participar da Páscoa de nosso Senhor e nos abrir as portas do festim pascal.

Na grande e santa quarta-feira, durante a última Liturgia dos Pré-santificados, depois de ter alçado os santos Dons sobre o altar, o padre lê uma última vez a oração de Santo Efrém. Neste momento, a preparação chega a termo. O Senhor nos convida agora para a sua última Ceia.

«Senhor e mestre de minha vida
Afasta de mim o espírito de preguiça,
o espírito de dissipação
de domínio e de vã loquacidade
Concede a teu servo
o espírito da temperança
de humildade
de paciência e de caridade
Sim, Senhor e Rei,
Concede-me que veja as minhas faltas
e que não julgue a meu irmão
pois tu és bendito pelos séculos dos séculos. Amém.»

(1) Esta oração, atribuída a Santo Efrém, o Sírio, é lida duas vezes ao final de cada ofício de quaresma, de segunda a sexta-feira: diz-se uma primeira vez fazendo uma metanóia depois de cada súplica; depois inclina-se doze vezes dizendo: "Ó Deus, purifica-me, pecador!"; por fim, repete-se toda a oração com uma última prosternação no final.

Alexandre Schmémann e Olivier Clément in Ecclesia
03 de abril de 2012
Postado por Pedro da Veiga

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