“Criou-se uma nova ruptura, profunda demais, entre o mundo ocidental, orgulhoso de seu suposto pragmatismo, e o mundo muçulmano, que, finalmente desperto, tem a coragem de se manifestar”.
Quem escreveu o período acima? Algum analista contemporâneo de política internacional? Algum jornalista consciente, preocupado com as repercussões da “primavera árabe”? Não: foi o cineasta italiano Roberto Rossellini (1906-1977), no início dos anos 1970.
Trata-se de um trecho de “Islã – Vamos Aprender a Conhecer o Mundo Muçulmano”, saindo aqui pelo selo Martins.
O texto foi pensado como roteiro para um programa de televisão que jamais foi ao ar.
Com sua capacidade de antever mudanças de rumo do planeta, Rossellini, àquela altura, já havia migrado para a TV, por entender que esse veículo de massa servia mais ao seu propósito político-pedagógico do que o velho cinema, com sua estrutura em celuloide e exibição em salas montadas para isso, a “arte do século 20″, na frase de Lenin.
Pai do neorrealismo italiano, Rossellini entendia que, já em meados dos 1960, era a TV, esse “eletrodoméstico” como a qualificava, com desdém, Federico Fellini, que daria as cartas no mundo das comunicações. E, que, assim sendo, de nada adiantava brigar com o novo veículo, mas servir-se dele para os mesmos propósitos do cinema.
De fato, Rossellini realizou um produtivo trabalho para a tela pequena, com filmes notáveis como A Tomada do Poder por Luis XIV (1966), e a série sobre filósofos, com as cinebiografias de Sócrates (1971), Pascal (1972) e outros pensadores.
O Islã seria a sua próxima meta, pois intuía e compreendia que a cisão entre Ocidente e Oriente, apontada como intransponível por Kipling, poderia se transformar no xis da questão da era moderna. Quem dirá, hoje, que estava errado?
No entanto, o tema foi considerado supérfluo pela TV italiana, que decidiu não financiar o filme. O próprio Rossellini sabia que a série não se transformaria em realidade sem a colaboração ativa, e material, dos países muçulmanos. Como não teve nem uma coisa e nem outra, nada aconteceu.
Por sorte, restaram os manuscritos, reunidos pelo filho do cineasta, Renzo Rossellini, e publicados nesse pequeno volume, que inclui também uma indispensável filmografia, completa e comentada, da produção de seu pai. Fãs de Rossellini, e todo cinéfilo digno desse nome, terão agora esse guia indispensável para a obra do diretor de Roma Cidade Aberta, Alemanha Ano Zero e Viagem à Itália.
Do trabalho sobre o Islã fica o testemunho da grande erudição de Roberto Rossellini, de sua capacidade de síntese e o dom de intuir o fundamental em qualquer questão que se apresentasse, mesmo a mais complexa e multifacetada.
No caso, ao contrário do que em geral se acredita, os caminhos de diálogo passam mais, segundo Rossellini, pelo conhecimento e pela compreensão cultural do que pela política. Ele mesmo diz, em seu texto que “para pensar é preciso saber”. Porém, do alto da sua soberba, o Ocidente, “por presunção e chauvinismo” nada conhece do mundo muçulmano. Ou, o que é pior, o “conhece” pelo filtro dos preconceitos e dos mitos depreciativos. Quer dizer, vê o Outro de maneira esquemática e deformadora. E, claro, ameaçadora, pois nada assusta mais que o desconhecido.
De modo que a finalidade desses programas de TV, que não foram realizados, seria eminentemente cultural. Informar ao distinto público que a cultura islâmica não é, em absoluto, inferior à cultura europeia. Ao contrário, essas regiões desprezadas, das quais só se conhecem o petróleo, os xeques riquíssimos e as pessoas paupérrimas, os camelos, a areia e os beduínos, foram, de fato, o berço da civilização, que, sem ela, não existiria da maneira como a conhecemos. O texto que segue, enxuto, sintético e elegante, nos dá conta, de maneira breve, da influência dos idiomas, da matemática, da astronomia, da navegação e da agricultura sobre o mundo greco-romano – e, por extensão, o nosso próprio mundo.
Conhecer o outro: eis a tarefa civilizatória proposta por Roberto Rossellini. Proposta infalível para a paz, através do conhecimento? Nada disso. Eis uma frase impecável, e dura: “… para nos odiarmos bem, ou para nos destruirmos bem, ou para nos suportarmos bem, ou para colaborarmos bem, devemos, de toda forma, nos conhecermos bem.”
Se a sabedoria não é panaceia, por outro lado, a ignorância não leva a nada. Ou melhor: leva a isto que aí está.
03 de abril de 2012
Luiz Zanin
Transcrito do Estadão
Um painel político do momento histórico em que vivem o país e o mundo. Pretende ser um observatório dos principais acontecimentos que dominam o cenário político nacional e internacional, e um canal de denúncias da corrupção e da violência, que afrontam a cidadania. Este não é um blog partidário, visto que partidos não representam idéias, mas interesses de grupos, e servem apenas para encobrir o oportunismo político de bandidos. Não obstante, seguimos o caminho da direita. Semitam rectam.
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"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)
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