“Minha vida está destruída há anos, e eu me sinto feliz por poder sair de um mundo que se tornou cruel e louco”. O trecho da carta a um amigo brasileiro é considerado há décadas uma evidência da decisão drástica pela morte voluntária de Stefan Zweig, que no 23 de fevereiro de 1942, ao lado de sua segunda mulher, Charlotte Elisabeth, teria tomado uma dose mortal de veneno em sua casa em Petrópolis.
A hipótese do duplo suicídio, motivado pela convicção de que a vitória do nazi-fasicsmo na Segunda Guerra era inevitável, conseqüência de sentimentos de tristeza diante das notícias sombrias que vinham da Europa, nunca foi seriamente contestada por nenhum pesquisador, nem mesmo pelos autores das três biografias do escritor austríacos publicadas no Brasil – Donald Prater, Dominique Bona e Alberto Dines (Morte no paraíso). Nunca, até agora. Pois no romance Lotte e Zweig (Leya, 128 pgs. R$39,90), Deonísio da Silva usa a narrativa ficcional como veículo para afirmar sua convicção de que que o casal foi vítima de um atentado de um comando nazista.
Nascido em Viena em 1881, Stefan Zweig escreveu dezenas de romances, peças teatrais, ensaios e biografias, chegando a ser um dos escritores mais famosos vendidos em todo o mundo, nos anos 30. Judeu, teve que fugir da Alemanha nazista, primeiro para os Estados Unidos, em seguida para o Brasil, onde se radicou em Petrópolis e escreveu Brasil – País do futuro e seu livro dr memórias, O mundo que eu vi.
Indícios não faltam de que, 70 anos depois, o episódio permanece, no mínimo, mal explicado. O casal foi encontrado morto, em sua casa na cidade serrana, logo após o carnaval de 1942. Não houve autópsia, a posição dos corpos foi modificada, e o pedido de acesso aos corpos por um rabino foi negado. A morte de Zweig foi comemorada nos círculos nazistas, e não eram incomum que assassinatos praticados por comandos nazistas fossem camuflados como suicídios. Nesta entrevista, Deonísio da Silva fala sobre o mistério que ainda cerca a dupla morte e sobre o desafio de escrever ficção com personagens reais.
- Fale sobre o desafio de escrever ficção com personagens reais. Quais são as dificuldades e limites? E quais são as vantagens?
DEONÍSIO DA SILVA: De algum modo, todos os personagens são reais, mas os inventados são muito mais, cada qual a seu modo, na dimensão em que os situamos. Gosto muito dos olhos das pessoas, que dizem mais do que sabemos delas. Persona em latim é máscara. Capitu é mais real do que qualquer mulher do século XIX! Os personagens de Shakespeare são mais reais do que os históricos, e alguns históricos somente persistem porque se tornaram ficcionais. Mas, claro, quando colocamos no texto um Estevão Ramos, tradução do nome alemão de Stefan Zweig, este último foi encontrado por tantas pessoas nas ruas do Rio, de Petrópolis, onde morava e onde morreu, acompanhado de Lotte, que o amava de verdade, uma mulher que tantos conheceram de fato, o desafio é não fazer bobagem, em primeiro lugar, em não fazer nada que contrarie em essência o que eles foram. E o que eles foram? Um casal de judeus que fugia do nazismo mundo afora e veio parar no Brasil. Mas sobre as vantagens não vejo nenhuma. Dá uma trabalheira danada reconstituir contextos e personagens.
- Seu romance sugere que a morte de Zweig e Lotte pode não ter sido um duplo suicídio, somo se acredita, mas assassinato por um comando nazista. Como nasceu essa tese, e quais são seus fundamentos?
DEONISIO: Um suicídio é sempre um homicídio, em geral as pessoas se esquecem disso. Portanto, é preciso um inquérito que esclareça, ainda que sem punição, muito embora alguns suicídios mereçam que sejam identificados e punidos os culpados, pois às vezes há culpados. O inquérito da morte dos Zweig foi uma farsa. O médico legista não era legista. A autópsia foi proibida por ninguém menos do que o presidente Getúlio Vargas, que veraneava em Petrópolis, como então era costume. Os judeus pediram os corpos para serem enterrados no Rio. Ora, os judeus não enterravam suicidas em seus cemitérios, por que queriam aqueles corpos? Acho que alguns rabinos, muito sagazes, viram algo estranho ali. Além do mais, era usual os nazistas organizarem execuções que parecessem suicídios e era frequente que ordenassem que as vítimas se suicidassem, como fizeram até mesmo com gente deles, como foi o caso do general Rommel, que recebeu ordem de Hitler de se suicidar, em troca de enterro digno e amparo aos familiares.
- É sabido que havia uma rede de espiões nazistas no Brasil, incluindo brasileiros. Mas quais seriam o sentido e a justificativa para o assassinato de Zweig pelos nazistas? Eram comuns ações desse tipo no Brasil?
DEONISIO: Escritor é bicho desconfiado. “O desconfiado Jeremias”, título de um dos capítulos leva um recado ao leitor. Aquele Jeremias tem muito do autor. E dei esse nome a ele porque o profeta Jeremias, cujo nome quer dizer “Javé revela”, encarregado pelo delegado, seu chefe, vê coisas que o chefe não vê. O chefe não lê nada, Jeremias está lendo Nada de novo no front quando recebe a tarefa. É à luz do que lê que ele desconfia de tudo. E vai compondo a sua versão a partir de bilhetes que a polícia ignora, da mudança da posição dos corpos, do roubo das joias de Lotte. Albert Speer, pouco antes de morrer, confessou a Alberto Dines, o melhor biógrafo de Stefan Zweig, que a morte de Zweig foi muito comemorada na Alemanha, inclusive no círculo íntimo do poder nazista. Se perseguiam e matavam daquele modo anônimos judeus, por que deixariam viver Stefan Zweig, que corria mundo afora escrevendo contra eles? Era muito comum exterminar inimigos no Brasil. E o governo Vargas ajudava a combatê-los aqui, como três décadas mais tarde também a ditadura militar ajudou as ditaduras do Cone Sul e foi por elas ajudada.
- Biografias de Zweig, como de Alberto Dines e Donald Prater, não cogitam essa hipótese. Eles estavam errados?
DEONISIO: Olha, o Alberto Dines é, além de um intelectual que admiro e respeito, um querido amigo. Tenho grande orgulho de contar com sua apresentação numa das abas. A biografia que ele faz do Zweig é fartamente documentada. Mas documentos são constituídos! Os militares que executaram Wladimir Heroz nos cáraceres de São Paulo também provaram que tinha sido suicídio. Depois foi comprovado que não foi, que foi uma execução. Mas digamos que a ditadura militar tivesse triunfado até hoje. É provável que tivesse prevalecido a versão deles. Comparo dois judeus executados em tempos diferentes para que o leitor seja um Jeremias e desconfie também. Desconfiados, chegaremos à verdade. Quer ver outros exemplos? Quem identificou Joseph Mengele, que morreu afogado na praia de Bertioga, no litoral de São Paulo? Eu acho que alguém o reconheceu e o matou. Mas Badan Palhares achou que o sujeito morreu lá numa boa, foi nadar, se afogou etc. Badan Palhares fez também os laudos (falsos ou ao menos controversos) de Paulo César Farias, de Suzana Marcolino, que foram amplamente contestados e por autoridades no assunto. Minha convicção: Zweig e Lotte foram executados. Pode até que tenham recebido ordens de se matar, mas dá no mesmo! Aquelas duas tragédias daquela noite de 22 de fevereiro de 1942 não tiveram testemunhas!
- Quando Zweig se mudou para o Brasil, em 1940, ainda não era clara a posição de Getúlio Vargas em relação à Segunda Guerra. Além disso, nas colônias alemãs no país havia focos de simpatia ao nazismo. Levando em conta que o Brasil vivia um regime com características fascistas, como o escritor lidava com a realidade do país e que relação tinha com outros imigrantes de língua alemã?
DEONISIO: É verdade o que você diz, mas as coisas são ainda mais complexas. Fui casado mais de 30 anos com uma linda e intuitiva mulher de ascendência alemã, a poeta e professora Soeli Maria Schreiber, mãe de nossa única filha, que herdou a porção alemã de sua mãe, na inteligência como na intuição. Algunsde meus melhores amigos no mundo são austríacos ou alemães, como a austríaca Elfriede Prem, e além do mais sou catarinense, nasci, cresci e vivi entre descendentes de alemães. Morei no sul até os 32 anos, e te digo: poucos rejeitavam tanto o nazismo como os descendentes de imigrantes alemães. Eles entendiam mais profundamente o que se passava. Tinham informações confidenciais, obtidas de cartas e relatos de parentes. Poucos deles apoiavam aquelas brutalidades. Stefan Zweig era um pacifista, era até meio ingênuo, e o filme do Sylvio Back, Lost Zweig, mostra isso de forma muito original. Há uma cena em que Lourival Fontes, alto funcionário de Getúlio Vargas, mostra a Zweig que o livro dele, Brasil – País do Futuro, tivera sua edição paga pelo governo e estava encalhado. Aquilo deixa Zweig arrasado. Quanto à relação de Zweig com imigrantes alemães, ele tinha uma grandeza extraordinária, jamais olhou com preconceito alguém em razão de sua etnia ou cultura.
- Fale sobre a rotina do casal em Petrópolis, sua situação financeira, suas perspectivas de vida e sobre a relação que mantinham? O que mais te atraiu em Zweig e em Lotte, como personagens?
DEONISIO: Era uma vida triste. No começo, Zweig adorou a cidade, o bangalô, ele ganhava bem, não tinha dificuldade financeira alguma, e isso é meio caminho para evitar os principais problemas do cotidiano, sobretudo para quem quer escrever. Eles se amavam muito. Mas eu penso em detalhes em minha história de amor. E o beijo na boca, como fica? E aquela asma infernal que tanto maltratava a sua amada? E dormir em camas separadas nas noites frias de Petrópolis? Veja você que ela aproxima a sua cama da do marido para morrer abraçada a ele. Já que não vivia abraçada, que assim morresse, que tristeza! Os amores em geral nos fascinam. Os amores dramáticos fascinam um pouco mais. Os amores trágicos nos prendem do começo ao fim da história, ainda que saiba, como neste caso, o fim da história. Uma coisa bonita: eles recebiam os amigos, visitavam os amigos, amigos ilustres, como a escritora Gabriela Mistral, que depois ganharia o Prêmio Nobel de Literatura, e vivia em Petrópolis naqueles anos. Todo ano não celebramos a Semana Santa? Mas todos sabemos o fim. Judas se suicidará e Jesus, traído pelo amigo, morrerá na cruz. E alguém perde o espetáculo? O rito é o mesmo, seja celebrado pelo Papa ou pelo mais humilde pároco do mais remoto cafundó. Mas nunca do mesmo modo! Há sutis diferenciações em cada rito!
-As informações disponíveis sobre Lotte são relativamente escassas. Em que você baseou a construção da personagem?
DEONISIO: No poema Confissão, de Mário Quintana, mas, por um desses acasos, que têm suas leis, mas que entretanto nós as desconhecemos, quando o romance foi publicado, uma leitora querida, querendo me dar um presente, depois d eler o livro, me mandou esse poema, que achei de uma concidência extraordinária, mas sabemos que coincidências nã há. É tudo Maktub, tudo estava escrito e, como no jogo do bicho,, vale o escrito, ah, como vale. O poema do Mário Quintana é: “Que esta minha paz e este meu amado silêncio\ Não iludam a ninguém\ Não é a paz de uma cidade bombardeada e deserta\ Nem tampouco a paz compulsória dos cemitérios\ Acho-me relativamente feliz\ Porque nada de exterior me acontece…\ Mas, em mim, na minha alma,\ Pressinto que vou ter um terremoto!” Foi com esse poema que o olhar de Lotte tomou conta de mim. Naturalmente, tive que inventar muito, pois escrevi um romance, não um documento, fiz uma biografia, mas desautorizada.
- Suicidas são personagens recorrentes em seus romances. Existe alguma razão para isso?
DEONISIO: Sim. Meu tio caçula, irmão de meu pai, suicidou-se. Quando coroinha, o padre nos assustava com suicidas, que eram enterrados fora do cemitério, em lugar onde os outros pudessem passar sobre eles nos enterros dos mortos “normais”, isto é, daqueles que “aguardavam a ordem do Senhor para partirem”, cena qu epus no romance Teresa d ´Ávila. Judas, o traidor, se suicidava todo ano, na Semana Santa, aquilo mexia muito comigo. Os suicidas da literatura universal, que são muitos, tanto personagens quanto escritores, fora aqueles a quem faltou coragem, como Goethe, um suicida nato, que entretanto morreu velhinho. Outro dia, conversando com o psicanalista Jacob Goldberg, meu personagem no Lotte & Zweig (agora já posso dizer, ele me autorizou num jantar, bebendo vinho), ele me disse que atende no consultório suicidas que jamais se matam porque entre a intenção e o ato vai uma distância enorme! Vou te fazer uma confidência: escrevi uma cena que cortei do romance, entre tantas outras igualmente cortadas, o livro chegou a ter 400 páginas e ficou com cento e poucas, eu não gosto de chatear o leitor com descrições desnecessárias. Um suicida está morrendo, tomou um veneno infernal, uma pessoa misericordiosa lhe traz um copo d´água, o moribundo pergunta: é filtrada? Este achado genial não é meu, está numa crônica de Nelson Rodrigues, quando uma viúva finge extrema dor com a morte do marido e entre soluços hipócritas tem tempo de verificar a procedência da água.As pessoas querem viver, mesmo os suicidas, eles sempre querem viver, paradoxalmente a morte é uma tentativa desesperada de chamar a atenção para alguém que os ajude a viver! Por isso, o suicídio é um assassinato coletivo. Muitos se omitem, querendo ou não, diante da tragédia dos outros.
LEIA TAMBÉM:
Nenhum comentário:
Postar um comentário