Saudade não é nostalgia. Supõe emoção da perda. Evoca seres, fatos e feitos que a memória registra nos arquivos mais valiosos da mente. Embora findos na realidade circunstante, sobrevivem na essência do pensamento de quem lhes testemunhou o valor. Não é a lembrança fria do passado, mas a referência que anima o presente, ainda que de forma imperceptível.
O Centro Integrado de Educação Popular, Ciep, é marco na história recente do país. Inclui-se entre as poucas ousadias do Estado brasileiro destinadas à superação do atraso, pré-requisito para o fim da desigualdade social que macula a cidadania.
Gerado no Rio de Janeiro durante o governo de Leonel Brizola, nasceu para expandir-se por todo o território nacional. Primava pelo princípio inegociável da qualidade, sem o qual a sociedade igualitária nunca deixará de ser sonho ingênuo da população, acalentado pelos embustes das elites que lhe roubam a cena.
Concebido pelo talento de Darcy Ribeiro, tinha o propósito de garantir à criança pobre o direito à educação plena, instrumento libertador que lhe tem sido negado em nome de interesses mesquinhos que mantêm a ordem dominante.
Valendo-se de projeto arquitetônico de Oscar Niemeyer, cada Ciep acolhia mil alunos em espaços compatíveis com a dignidade ambiental que a educação requer. Além de salas de aula, biblioteca, quadra esportiva, era dotado de atendimento médico e odontológico, cozinha e refeitório.
O conteúdo pedagógico enfatizava a escrita, a leitura e a aritmética, sem prejuízo das demais matérias. Buscava qualificar o aprendizado da linguagem a fim de que a comunicação erudita fosse também assimilada pelas classes pobres, nivelando por cima a inadiável progressão social dos excluídos.
Implantada no coração de uma comunidade de despossuídos, despontava como avanço para a elevação da autoestima dos moradores, propiciando-lhes acesso a um direito que sempre privilegiou as classes ricas. As famílias orgulhavam-se da escola pública que as tratava com distinção. Crianças e adolescentes tinham no Ciep a chance real para aprendizado lúdico, prazeroso, interativo. Trabalhavam a cognição em ambiente seguro, dignificante.
Anteviam a realização de originalidades potenciais, crescendo-lhes a expectativa de vencer a humilhante segregação que os estigmatizava. Desenvolviam atividades educativas, artísticas, desportivas e culturais em tempo integral, das oito horas da manhã às cinco da tarde.
Permaneciam sob os cuidados da equipe de educadores durante o período em que a maioria dos pais saía de casa para trabalhar. Recebiam alimentação, assistência à saúde, além do amparo ao organismo em fase de crescimento físico e desenvolvimento neuropsicomotor.
A educação oferecida não se restringia aos limites medíocres da escolaridade em vigor. Ia muito além. Reproduzia a visão de Winnicot, para quem educar é garantir a estimulação favorável em ambiente seguro e afetivo. Darcy Ribeiro definiu bem o projeto: “Sem essa base, a criança estará condenada à marginalidade e ao risco de cair em delinquência”.
E completou: “Isso é verdade, sobretudo para a criança das áreas metropolitanas, que tem mais a escola do lixo e da criminalidade do que a escolaridade mínima indispensável para se realizar pessoalmente através do trabalho e para exercer conscientemente a cidadania”.
O compromisso social era abrangente. Atraía crianças moradoras de rua que, motivadas, mudavam de vida. Passavam a residir na escola, onde ficavam sob os cuidados de “pais sociais” — funcionários preparados para a preciosa missão.
A construção das unidades era rápida; o custo, reduzido. Fundava-se na lógica do pré-moldado, ganhando celeridade na execução. Quinhentas delas chegaram a enriquecer o cenário educacional do Rio de Janeiro.
Com o Centro Integrado de Educação Popular disseminado país afora, a sociedade já teria dado o salto para a dimensão igualitária sonhada. Infelizmente, obras que visam à igualdade social serão sempre desmontadas pelo poder econômico.
O modelo Ciep foi desfeito há mais de vinte anos. Restaram os prédios precários, convertidos em escolas desqualificadas, coerentes na perpetuação da pobreza. Desativado, abriu caminho para a UPP – Unidade de Polícia Pacificadora. A desigualdade social foi assim preservada. Para os ricos, a política; para os pobres, a polícia.
O Ciep desperta saudade. É o PAC que transformaria o país. O projeto foi encerrado, mas a ideia não morreu. Os dirigentes deveriam repensar a educação nacional, sem preconceito. Experiência não falta.
Dioclécio Campos Júnior é médico, professor
titular aposentado da UnB, secretário de Estado
da Criança do DF, foi presidente da Sociedade Brasileira de Pediatria.
04 de abril de 2012
Dioclécio Campos Júnior
Um painel político do momento histórico em que vivem o país e o mundo. Pretende ser um observatório dos principais acontecimentos que dominam o cenário político nacional e internacional, e um canal de denúncias da corrupção e da violência, que afrontam a cidadania. Este não é um blog partidário, visto que partidos não representam idéias, mas interesses de grupos, e servem apenas para encobrir o oportunismo político de bandidos. Não obstante, seguimos o caminho da direita. Semitam rectam.
"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)
"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)
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