"A verdade será sempre um escândalo". (In Adriano, M. Yourcenar)

"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o soberno estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade."
Alexis de Tocqueville (1805-1859)



sábado, 12 de maio de 2012

FILHOS DA GUERRA SUJA - PARTE 2



stela de Carlotto, que assumiu o cargo de Chicha, era outra avó em busca de um bebê perdido. Em abril de 1978, Estela, na época diretora de uma escola em La Plata, soube por intermédio de uma ex-presa que sua filha, Laura, sequestrada em novembro de 1977, estava num campo de detenção chamado La Cacha e estava grávida. Estela conhecia a irmã de um general importante e foi pedir a ele que interferisse pela libertação da filha. O único efeito desse conhecimento foi que, alguns meses depois, Estela e o marido foram convocados a comparecer a uma delegacia de polícia para receber o cadáver da filha crivado de balas. Estela uniu-se às Abuelas de Plaza de Mayo alguns dias depois.

Numa viagem ao Brasil, em 1980, para entrevistar exilados sobreviventes dos campos de detenção, Estela conheceu Alcira Ríos, advogada, e seu marido, Luís Córdoba, dois dos cinco únicos prisioneiros de La Cacha, em 1978, que haviam sobrevivido ao campo. Em La Cacha, Alcira, que durante cinco meses foi mantida acorrentada a uma parede num fosso semelhante a uma caverna, conhecera Laura, que fora levada para lá dez meses antes. Quando o marido de Alcira foi cruelmente torturado e adoeceu com uma infecção, Laura cuidou dele e usou sua influência junto aos guardas para conseguir antibióticos. Nessa altura, ela já dera à luz um bebê chamado Guido, em homenagem ao avô. Depois do nascimento, disseram para Laura que seu bebê seria levado para a avó. Alcira lembrava-se de como Laura chorava e gemia: “Eu tenho um filho! Onde en mierda ele está?” Em agosto de 1978, disseram para Laura que ela ia ser levada para a Escuela Superior de Mecánica de la Armada, o mais temido campo de detenção do país, onde ela seria preparada para ser solta. Disseram que em breve estaria em casa, com seu filho e sua mãe. No dia 24 de agosto, na noite de sua “transferência”, ela teve permissão para despedir-se dos outros prisioneiros em La Cacha. Rastejou para dentro da caverna de Alcira e lhe pediu alguma coisa para poder se lembrar dela. “O que eu tinha que pudesse lhe dar?”, me disse Alcira. “Só tinha as roupas com que havia sido sequestrada. Mas eu tinha um sutiã, de renda preta. Dei para ela e Laura pôs o sutiã.” Anos depois, quando as investigações dos crimes da Guerra Suja estavam em andamento, o corpo de Laura foi exumado; tinha sido enterrada com o sutiã preto de Alcira.

Em 1984, Alcira voltou do exílio e Estela convidou-a para trabalhar para as Abuelas. A situação legal em que se viu envolvida era complexa. Um ano antes, a liderança militar argentina, humilhada pelos ingleses na Guerra das Malvinas, cedera o poder a um governo eleito democraticamente, chefiado pelo presidente Raúl Alfonsín. Em 1985, um inédito relatório da Comissão da Verdade para apurar os Crimes da Guerra Suja, intitulado “Nunca Mais”, redundou no julgamento e na prisão de, entre outros, nove ex-líderes da Junta Militar. Mas em 1986, sentindo-se ameaçado pela agitação militar que sucedeu os julgamentos, Alfonsín aprovou uma lei nova, Ponto Final, que punha um fim às investigações sobre a violência política durante a Guerra Suja. No ano seguinte, uma outra lei, Obediência Devida, determinava que as pessoas não podiam ser perseguidas por crimes cometidos no cumprimento de ordens de seus superiores. Em 1990, o sucessor de Alfonsín, presidente Carlos Menem, perdoou e libertou os líderes da Junta. Os argentinos, oficialmente livres da ditadura, eram, no entanto, obrigados a viver numa acomodação passiva com seus crimes e seus criminosos. Alguns dos mais famigerados sádicos da Junta Militar vagavam por Buenos Aires com sorrisos desafiadores e contavam suas histórias na televisão. Mulheres cruzavam no supermercado com seus torturadores e estupradores. Policiais veteranos recebiam em suas casas de campo velhos colegas de farda para parrilladas e brindavam uns aos outros como heróis que haviam salvado a nação do comunismo.



asos de roubo de bebês forneciam uma pequena brecha às leis da anistia: pais condenados nos tribunais por terem adotado filhos de desaparecidos – ou “se apropriado” deles –, sabendo da verdade sobre sua origem, podiam ser presos. Em 1998, as Abuelas, em conjunto com outro grupo de direitos humanos, investigaram o caso de Claudia Poblete. Ela e os pais foram sequestrados em 1978, quando tinha 8 meses de idade. Seus pais foram torturados e mortos e Claudia foi criada por um militar e sua mulher. Por meio do exame de dna, as Abuelas identificaram a família de Claudia, então com 21 anos de idade, e seus pais adotivos foram condenados à prisão. (A mãe adotiva, com mais de 70 anos na época, teve permissão para cumprir a pena em regime de prisão domiciliar.) Segundo as leis da anistia, no entanto, os dois policiais responsáveis pelo sequestro, tortura e assassinato dos pais biológicos de Claudia não podiam ser processados. O juiz do caso, Gabriel Cavallo, num arrazoado de 188 páginas, argumentou que as leis Ponto Final e Obediência Devida estavam em conflito com a obrigação que a Argentina havia assumido, perante as leis internacionais, de levar a julgamento os responsáveis por crimes contra a humanidade. As duas leis foram revogadas pelo Congresso Nacional em 2003 e consideradas inconstitucionais pela Corte Suprema em 2005. Os dois policiais do caso Claudia, detidos em 2003, foram os primeiros processados por desaparecimentos desde 1987. Um morreu no hospital de uma prisão em abril de 2006, antes do começo do julgamento; o outro foi condenado a 25 anos de prisão.

Embora o caso tenha sido um triunfo histórico para as Abuelas, o grupo também sofreu repetidas frustrações: muitos exames de DNA deram negativo; nem todos os netos recuperados aceitaram os avós biológicos, para eles, pessoas estranhas. Muitos, fiéis aos únicos pais que haviam conhecido, se recusavam até a fazer o exame. Em 1983, Chicha Mariani achou que tinha encontrado sua neta, uma garota com uma história muito parecida com a de Clara Anahí. “Quando se constatou que não era ela, senti a terra se abrir debaixo de meus pés”, disse Chicha. Mais tarde, naquele mesmo ano, ela viu num jornal a fotografia de Marcela Noble Herrera, filha adotiva da proprietária da maior empresa de comunicação do país, e achou que talvez tivesse afinal descoberto a menina que tanto procurava. “A primeira vez que vi Marcela”, contou-me, sorvendo mate no café da manhã, com bananas e coalhada, em sua mesa de jantar coberta de documentos, “foi logo depois de Alfonsín tomar posse como presidente. Marcela estava de meias Morley” – meias com reforços nos joelhos – “iguais às meias que eu usava antigamente. E as pernas eram iguaizinhas às minhas. Vi as fotos dela na Inglaterra, na França, com presidentes e reis, e com o papa. Eu a vi crescer. Tem o mesmo corpo da mãe de minha nora. E sua personalidade parece ser semelhante à nossa – reservada, discreta, sincera, sensível e muito inteligente.”



a ocasião em que conversei com Chicha, no ano passado, a questão da paternidade biológica de Marcela Noble Herrera se tornara central no relato das décadas de esforços, esperança e dor das Abuelas. Estava também no centro de um caso legal que havia envolvido a elite da mídia e da política argentina numa prolongada batalha pública. Um caso que passara a representar a reação volúvel, e não raro paradoxal, da Argentina com respeito a seu passado violento e que havia fascinado boa parte da população por mais de dez anos.

A história de Marcela começa com Ernestina Herrera de Noble, a mulher que a adotou em 1976. Ernestina era a viúva de Roberto Noble, fundador do império de mídia Clarín, que começou com um jornal, Clarín, e agora inclui estações de rádio e televisão, além do mais popular site de notícias da internet em língua espanhola na América Latina. Ernestina, de origem humilde, era 23 anos mais jovem do que o marido e foi nomeada proprietária e diretora titular do Grupo Clarín quando ele morreu, em 1969, embora a direção efetiva da empresa tenha ficado nas mãos de um círculo de executivos em quem Noble confiava. (A única filha de Noble, que ele tivera com outra mulher, aceitou um acordo em troca da renúncia a qualquer pretensão sobre a propriedade do grupo.) Em 1976, quando a Junta Militar tomou o poder, Ernestina tinha 50 anos e parecia estar no auge da crise de meia-idade. Dizem que era propensa a ceder a impulsos destemperados, a beber, e que também passava seus dias em iates com novos amigos. Segundo a jornalista Graciela Mochkofsky, que no último mês de agosto publicou, na Argentina, um livro intitulado Pecado Original: Clarín, los Kirchner y la Lucha por el Poder, os membros da diretoria do Clarín, preocupados com o futuro da empresa e com as próprias carreiras, caso algo acontecesse com Ernestina, apresentaram-lhe uma proposta. Ela adotaria duas crianças, disseram, e as nomearia herdeiras do Clarín. Então, se Ernestina morresse antes de as crianças chegarem à idade adulta, os homens da diretoria poderiam ser os regentes da empresa, até os jovens ficarem aptos a herdá-la. Ernestina concordou com o plano. Entre os executivos do Clarín estavam Rogelio Frigerio, que tinha sido o segundo homem na hierarquia do Ministério da Economia entre 1958 e 1962, e um advogado chamado Bernardo Sofovich. Esses homens incumbiram-se de encontrar dois bebês para Ernestina, uma menina e um menino, e naquele verão um Juizado de Menores conferiu a ela a guarda das crianças que se tornariam Marcela e Felipe Noble Herrera, herdeiros de uma fortuna que agora alcança muitos milhões.

O Clarín nunca se opôs abertamente ao regime militar e, em 1976, a empresa lucrou devido a suas relações amistosas com a Junta quando lhe foi oferecida uma parceria na primeira indústria de papel do país, Papel Prensa. (A maioria dos jornais concorrentes ainda tinha de importar papel.) O negócio impulsionou a expansão econômica do Grupo Clarín, dirigido por Héctor Magnetto, ex-contador da empresa e seu futuro presidente. Em 1985, o Clarín era um dos jornais em língua espanhola de maior circulação no mundo inteiro.



urante as duas primeiras décadas depois da Guerra Suja, os presidentes argentinos geralmente encaravam o Grupo Clarín como um rival ou um adversário, a ser cortejado ou contestado. Mas o Clarín nunca seguiu um programa ideológico bem definido; a empresa estava mais preocupada com o fato de cada governo representar uma oportunidade para seus negócios ou uma barreira para sua expansão. O presidente Alfonsín resistiu à pressão do Clarín para revogar uma lei que impedia que jornais comprassem estações de rádio ou de televisão. Quando a desordem política e a vasta impopularidade afundou o governo de Alfonsín, ele culpou o Clarín. Carlos Menem, que governou como um neoliberal privatizante, revogou aquela lei e, em troca, esperava o apoio do Clarín. De início, o Clarín, cujas empresas de mídia associadas se expandiram acentuadamente, atendeu suas expectativas. Mas quando outros jornais começaram a publicar investigações sobre corrupção no governo Menem, o Clarín, para não se tornar irrelevante, imitou-os de maneira agressiva. Menem tinha tanto medo do Clarín que incentivou seus aliados ricos a construírem um império de mídia concorrente. Quando isso desmoronou, junto com as ambições de Menem, o grupo Clarín apoderou-se dos despojos.

Em 2001, a economia da Argentina entrou em colapso, desencadeando uma corrida aos bancos, o efetivo congelamento das poupanças individuais, protestos de massa nas ruas, uma série de mandatos presidenciais anulados, a repentina desvalorização do peso, um calote da dívida externa do país e o descrédito dos políticos tradicionais de todos os principais partidos. Em 2003, Néstor Kirchner, ex-governador de uma remota província na Patagônia, foi eleito presidente de uma Argentina desmoralizada e humilhada. O governo de Kirchner despejou dinheiro em programas sociais e o índice de pobreza do país caiu pela metade. Uma grande alta do preço da soja ajudou a impulsionar a recuperação da economia. Num de seus primeiros atos como presidente, Kirchner retirou os retratos dos ex-líderes da Junta Militar da galeria do Colégio Militar. Transformou em lei a revogação das Leis Ponto Final e Obediência Devida e converteu as então já idosas integrantes das Madres e Abuelas de Plaza de Mayo em ícones de seu governo, instalando-as de forma solene a seu lado em eventos públicos, e dizia: “Nós todos somos filhos das Madres e Abuelas de Plaza de Mayo.” Seu governo indicou Estela de Carlotto para o Prêmio Nobel da Paz. Em janeiro de 2006, as Madres encerraram suas passeatas semanais e anunciaram que o Palácio Presidencial não abrigava mais um inimigo.

Ao mesmo tempo, Kirchner e sua mulher, Cristina Fernández de Kirchner, acumularam uma fortuna espantosa e surgiram denúncias de corrupção e de favorecimentos ilícitos. Em 2007, Kirchner declarou que iria se afastar para que Cristina pudesse concorrer à Presidência: marido e mulheresperavam se alternar no poder por mais doze anos. Em dezembro daquele ano, porém, menos de uma semana depois de Cristina ser eleita, o Clarín publicou uma incendiária matéria de primeira página afirmando que um venezuelano detido com uma mala cheia de dinheiro no aeroporto de Ezeiza, em Buenos Aires, no mês de agosto, trazia uma doação não declarada do presidente da Venezuela, Hugo Chávez, para financiar a campanha dela. A matéria não agradou a Kirchner, que mantivera uma forte aliança com o Clarín e com Héctor Magnetto durante todo o seu mandato e, dez dias antes, havia suprimido barreiras de leis antitruste a fim de permitir que o Clarín fundisse duas empresas de transmissão de dados por cabo. (Em 2009, esse negócio representava 60% das receitas do Clarín.) A partir daí, até a repentina morte de Néstor Kirchner em 2010, causada por um ataque cardíaco, o casal Kirchner esteve unido numa feroz luta pública contra o Clarín.

Era comum dizer na Argentina que nenhum governo poderia sobreviver a quatro tapas– manchetes da primeira página do jornal – negativas e consecutivas, mas Cristina se vangloriava de que “havia batido o recorde”. A Guerra contra o Clarín, como é amplamente conhecida na Argentina, foi travada em várias frentes: Cristina aprovou leis antimonopólio e leis da mídia que já começaram a encolher o domínio do grupo. Seu governo também acusou o Clarín e outro jornal de terem adquirido suas ações da fábrica Papel Prensa com o conhecimento, senão com a efetiva cumplicidade, do sequestro, tortura e assassinato de membros da família e de sócios dos donos originais da fábrica cometidos pelos militares. (O Clarín está se defendendo de tal acusação num processo em andamento na Justiça.) Mas, em 2009, a batalha emblemática tanto para os Kirchner quanto para o Clarín dizia respeito à origem dos filhos adotivos de Ernestina Herrera de Noble.



arcela e Felipe quase nunca são vistos em público e os detalhes de suas vidas particulares são guardados a sete chaves, embora se saiba que Marcela estudou jornalismo na Universidade Católica e agora trabalha no Clarín, preparando-se para, um dia, suceder à mãe. Tem pele bonita, é loura, de rosto grande e aspecto reservado. Muitas vezes usa roupas simples e conservadoras da Zara, uma rede espanhola de lojas relativamente baratas. Felipe tem pele mais morena, é atarracado, com um início de calvície. Estudou desenho industrial e dizem ser ainda mais reservado do que a irmã.

Pouco depois do fim do regime militar, as Abuelas de Plaza de Mayo começaram a ouvir rumores de que os irmãos eram filhos de dissidentes desaparecidos. Na época, as Abuelas trabalhavam com um sistema jurídico nem um pouco cooperativo – muitos juízes ainda tinham laços com a ditadura –, nem sempre contavam com o apoio da mídia. Sob o governo da Junta Militar, o Clarín, como a maioria dos jornais argentinos, se recusava a publicar notas sobre pessoas desaparecidas enviadas pelas Madres e Abuelas. Depois, quando o governo Alfonsín recebeu aplausos por sua Comissão da Verdade, o jornal começou a publicar editoriais dando apoio à causa das Abuelas. As Abuelas sabiam que era importante manter do seu lado o jornal mais popular do país. Mas era difícil fazerem-se de surdas no caso dos filhos de Ernestina. Ainda mais quando se dizia que duas das figuras mais sinistras da Guerra Suja, o bispo Antonio Plaza e o general Ramón Camps, estavam envolvidas na tarefa de conseguir crianças para ela adotar.

Durante o regime militar, o bispo Plaza era o capelão da Polícia da Província de Buenos Aires, comandada por Camps. Plaza denunciou à polícia dúzias de pessoas que depois desapareceram, entre elas o próprio sobrinho, que o havia procurado para pedir ajuda. Muitas vezes, Plaza acompanhava Camps em suas rondas em centros de detenção e de tortura, e mais tarde elogiou as leis de anistia da Guerra Suja. Dizia que elas poupariam os policiais do destino do “pobre Eichmann”, oficial nazista responsável pelo extermínio de judeus, condenado à morte por um tribunal de Israel após ser sequestrado por agentes israelenses, em Buenos Aires, onde se escondia. Camps era antissemita (havia um número desproporcional de judeus argentinos entre os desaparecidos) e sádico. É tido como o responsável por milhares de sequestros, centenas de homicídios, dois estupros, dez roubos de bebês e dois abortos provocados por tortura. Plaza morreu em 1987. Camps foi considerado culpado de 73 acusações de tortura e, em 1986, foi sentenciado a 25 anos de prisão. Foi libertado pelas leis de perdão e morreu em 1994.

Em 1992, Estela de Carlotto pediu uma reunião com Ernestina Herrera de Noble, que designou Magnetto, o presidente de sua empresa, para falar por ela. Seguiram-se três encontros incômodos. “Como poderia la señora ter dois filhos de terroristas?”, perguntou Magnetto em tom queixoso. Acusações desse tipo só poderiam ter motivação política ou financeira, argumentou. Num encontro posterior, segundo um advogado das Abuelas, Magnetto se propôs a revelar a verdadeira identidade dos filhos, se Estela lhe dissesse quais eram as fontes daquela acusação. (O porta-voz do Clarín negou ter feito tal proposta.)



s Abuelas levaram dois anos para ter acesso aos registros de adoção de Marcela e Felipe. Na Argentina, como em todos os países da América Latina, as adoções eram regulamentadas de maneira frouxa, no melhor dos casos, mas alguns detalhes dos registros chamaram a atenção de Alcira Ríos. As duas adoções foram realizadas com uma pressa fora do comum e pelo mesmo juiz de menores, no município de San Isidro. Não havia nenhum registro do nascimento ou do hospital. Em geral, só isso já bastaria para justificar uma investigação das Abuelas. Por outro lado, as adoções de Marcela e Felipe, em maio e julho de 1976, respectivamente, ocorreram num momento precoce da ditadura e as datas não pareciam corresponder às datas conhecidas de nascimento em centros de detenção ou de roubos de bebês na jurisdição da corte de San Isidro. As Abuelas, com tantas investigações para realizar, decidiram deixar o assunto de lado.

No entanto, alguns anos depois, quando os rumores foram mencionados de novo durante o julgamento de um caso que não tinha relação com aquele, e insinuou-se que as Abuelas haviam menosprezado as suspeitas em deferência à riqueza e ao poder do Grupo Clarín, Estela e Alcira resolveram agir. Pediram à corte de San Isidro para abrir uma investigação e o juiz, Roberto Marquevich, logo tinha sobre a mesa as pastas do processo das adoções. Muitas pessoas envolvidas, inclusive o executivo do Clarín Bernardo Sofovich e a juíza que havia aprovado as adoções, Ofelia Hejt, já haviam morrido; outros, como o executivo do Clarín Rogelio Frigerio, estavam velhos demais, ou mentalmente senis, para testemunhar. Mas em 2001, Marquevich convocou todos que pôde alcançar, a fim de reconstituir a história.



egundo os arquivos, no dia 13 de maio de 1976, Ernestina testemunhou que na manhã de 2 de maio, em sua casa de campo em San Isidro, ouviu o choro de um bebê. Quando abriu a porta da frente, deparou com uma menina numa caixa de papelão. Manteve o bebê em casa por alguns dias, para o caso de alguém aparecer para reclamar a menina. Depois a levou para o Juizado a fim de comunicar o que havia ocorrido e também a um pediatra, acompanhada por sua vizinha, Yolanda Echagüe de Aragón, que havia presenciado a descoberta do bebê dentro da caixa. Ernestina contou para o Juizado que Roberto García, administrador de uma fazenda próxima, também tinha visto o bebê na porta da casa. No dia seguinte, sem fazer o menor esforço para conferir a história nem para identificar a mãe do bebê, a juíza Ofelia Hejt concedeu a custódia da criança a Ernestina e atribuiu uma data de nascimento para a menina, 23 de março de 1976, um dia antes do golpe militar. Entre as três testemunhas que deram boas referências do caráter de Ernestina, estava o bispo Plaza.

A pasta dos documentos de Felipe Noble Herrera foi aberta algumas semanas depois. Uma estudante de direito que se identificou como Carmen Luisa Delta, 25 anos de idade, disse que dera à luz um menino no dia 17 de abril, sem registrar o nascimento em nenhum hospital e sem nenhum pediatra. No dia 7 de julho, quando ela levou o bebê ao Juizado para entregá-lo para adoção, calhou de Ernestina estar lá e no mesmo dia recebeu a guarda da criança. No mês de maio seguinte, as duas adoções foram oficializadas.

Em 2001, Yolanda Echagüe de Aragón já havia morrido, mas constatou-se que tinha morado não na casa vizinha àquela que Ernestina dissera ser sua, mas a um quarteirão dali. A outra testemunha citada por Ernestina, Roberto García, atendeu à convocação de Marquevich. Disse ao juiz que nunca fora administrador de nenhuma fazenda em San Isidro. Tinha sido motorista de Roberto Noble e depois de Ernestina, até se aposentar em 1977. Contou que Ernestina nunca tinha morado numa casa em San Isidro, embora de vez em quando ele a levasse lá para visitar um chalé, cujo endereço exato não conseguia lembrar. Admitiu que a assinatura na declaração das testemunhas parecia ser a sua, mas disse que nunca tinha ido ao Juizado de Menores de San Isidro. Os advogados do Clarín, revelou ele, lhe trouxeram alguns documentos para assinar. Classificou de “mentiras” o relato de Ernestina das ações atribuídas a ele.

Carmen Luisa Delta, a estudante de direito que supostamente entregara Felipe para adoção, nunca existiu, pelo menos não com esse nome; o número de sua identidade correspondia à de um homem chamado Hugo Tarkowski.

A juíza Ofelia Hejt recebeu sua nomeação para o Juizado de Menores no início da ditadura. Em 1977, segundo os registros das Abuelas, ela autorizou a adoção de um bebê de 3 meses, apesar de haver indícios de que os pais do menino haviam desaparecido. Em 1984, as Abuelas descobriram o menino e restauraram sua identidade verdadeira.

No final de 2001, seis meses depois de abrir a investigação, o juiz Marquevich disse para Alcira que o caso não poderia prosseguir antes que se designasse uma parte queixosa. Nenhuma família nos registros das Abuelas estava em busca de crianças cujas supostas datas de nascimento coincidissem exatamente com as de Marcela e Felipe, mas Alcira sabia que os documentos de Ernestina estavam cheios de mentiras. Por que as datas de nascimento deveriam ser tratadas como dignas de crédito? Escolheu duas famílias que avaliou como mais prováveis, embora soubesse que eram reduzidas as chances de se descobrir que alguma delas tinha relação com Marcela ou Felipe. Um dos queixosos era a família de María del Carmen Gualdero, que estava grávida de nove meses quando foi sequestrada, em junho de 1976, perto de San Isidro; não se sabia se ela dera à luz no cativeiro ou não. A outra família estava em busca de Matilde Lanuscou. Durante anos, supôs-se que Matilde havia morrido aos 6 meses de idade, com os pais e dois irmãos numa investida de militares contra sua casa em San Isidro, em setembro de 1976. Mas quando exumaram as sepulturas, após a ditadura, o caixão de Matilde continha apenas roupas de bebê e uma chupeta. Era possível que ela continuasse viva, em algum lugar, e que pudesse até ser Marcela Noble Herrera.

 12 de maio de 2012

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