Artigos - Governo do PT
O projeto da Lei Geral da Copa, já aprovado na Câmara dos Deputados e no Senado é um contrato de risco assinado entre a União e a Fifa, que privatiza para si todo o lucro, e a União socializa os prejuízos com os brasileiros.
O projeto de lei que institui para a Copa um Código Penal especial mostra que a Constituição foi revogada e que o Brasil vendeu sua dignidade para os mercadores da Fifa.
Dois fatos recentes — a escolha do incendiário neto de Leonel Brizola para o Ministério do Trabalho e a deflagração da guerra contra os juros por parte da presidente Dilma Rousseff — indicam que o Brasil se espelha na Argentina da presidente Cristina Kirchner e toma o atalho do retrocesso institucional, que faz do governo partido e se caracteriza pelo confronto.
Essa fórmula é originalmente de Lula, o principal artífice da CPI do Cachoeira, mas Dilma dá mostras de que tenciona superá-lo em arroubos populistas para compensar a falta de carisma. A demagógica declaração de guerra aos bancos, em pronunciamento à nação no Dia do Trabalho, denuncia o voluntarismo teimoso da presidente, que lembra o velho Lula pré-mensalão.
É um devaneio achar que os juros altos decorrem apenas da ganância dos banqueiros. Eles também são sintomas de uma economia cartorial, em que o Estado perdulário e corrupto é sócio de todas as empresas, mediante a manipulação de impostos escorchantes através de incentivos fiscais discricionários.
Essa lamentável realidade estampa-se com muita clareza nos preparativos para a realização da Copa do Mundo de 2014 — que será responsável por um histórico rombo nos cofres públicos do País. O projeto da Lei Geral da Copa — já aprovado pela Câmara dos Deputados e com previsão de ser apreciado pelo Senado nesta semana [N. do E.: o projeto foi aprovado nesta quarta-feira (9)] — é um contrato de risco assinado entre a União e a Fifa, no qual a Fifa privatiza para si todo o lucro e a União socializa os prejuízos com os brasileiros. Os artigos 22 e 23 da referida lei deixam claro que “a União responderá pelos danos que causar, por ação ou omissão, à Fifa e seus representantes legais, empregados ou consultores” e assumirá toda responsabilidade civil por qualquer acidente que ocorra nos eventos, devendo até contratar seguro internacional para fazer frente aos gastos decorrentes desse encargo. E, como se não bastasse toda essa subserviência, a Lei Geral da Copa — com o objetivo de preservar os direitos comerciais da Fifa e seus parceiros — irá criminalizar, na prática, todo o pequeno comércio nas imediações dos estádios e em suas vias de acesso.
Como o País vive uma verdadeira anarquia jurídica, patrocinada pelo próprio Supremo Tribunal Federal, a tendência é que todas as leis aprovadas contra a Constituição e os brasileiros em favor da Fifa não sejam questionadas nem mesmo pela oposição. Serão apenas mais um sintoma da insegurança jurídica que cresce no País desde que o Supremo resolveu legislar em lugar do Congresso — e sempre em consonância com as teses da esquerda, hoje no poder.
A descriminalização do aborto de anencéfalos, a generosa demarcação de terras indígenas, a aprovação da união civil de homossexuais, a liberação das marchas da maconha e a judicialização cada vez maior da intimidade (como se viu na recente decisão sobre “abandono afetivo”, obrigando um pai a indenizar a filha em R$ 200 mil) — tudo isso é sintoma da desconstrução sistemática do Estado de Direito, que deixa de se alicerçar na razão do indivíduo para instrumentalizar o desejo das massas. Este desejo, por sua vez, submete-se à vontade do poder, como sabem todos os déspotas e demagogos. O Brasil não é a Venezuela nem a Bolívia, mas não está tão distante da Argentina e precisa se lembrar que as instituições não são fenômenos da natureza, mas construções humanas e históricas que precisam ser cultivadas sempre ou podem se deteriorar.
Segurança de exceção
Além da referida Lei Geral, tramita no Senado um verdadeiro Código Penal especial para a Copa apresentado pelos senadores Marcelo Crivella (PRB-RJ), Ana Amélia (PP-RS) e Walter Pinheiro (PT-BA). Com 52 artigos, totalizando quase 20 páginas, o projeto de lei é mais draconiano do que a antiga Lei de Segurança Nacional do regime militar e institui um Código Penal de exceção. De acordo com os autores, a proposta traz dispositivos destinados a aumentar a segurança da Copa das Confederações, a ser realizada em 2013, e da Copa do Mundo de 2014.
O projeto de lei cria novos tipos penais, regulamenta o direito de greve e busca disciplinar até a celeridade processual, não só durante a realização dos jogos, mas também no período de três meses que antecede os eventos. A despeito de seu caráter temporário, a proposta, caso aprovada, terá efeitos para além dos jogos, com base no que dispõe o artigo 3º do Código Penal, que diz: “A lei excepcional ou temporária, embora decorrido o período de sua duração ou cessadas as circunstâncias que a determinaram, aplica-se ao fato praticado durante sua vigência”.
Entre os tipos penais criado por essa nova Lei de Segurança Nacional, num total de oito, está o crime de terrorismo, que ainda não foi devidamente tipificado no Brasil, “talvez em razão da característica pacificidade do nosso povo”, como alegam os senadores Marcelo Crivella, Ana Amélia e Walter Pinheiro, autores do projeto de lei. “Nosso despreparo jurídico para o enfrentamento desse fenômeno é igualmente evidente. Embora a Constituição Federal considere o repúdio ao terrorismo como princípio que deve reger nossas relações internacionais (artigo 4º, inciso VII) e esse crime como inafiançável e insuscetível de graça ou anistia (artigo 5º, inciso XLIII), não possuímos tipificação satisfatória para combatê-lo. O único tipo penal aproximado que possuímos é da época do regime militar, inserido na Lei de Segurança Nacional” — acrescentam.
Os autores lembram, ainda, que, embora o Brasil tenha ratificado tratados internacionais “que repudiam certos atos como de caráter terrorista ou destinados a frustrar seu financiamento ou limitar deslocamento de suspeitos”, a matéria continuou carecendo de regulamentação, uma vez que a Constituição de 88, ao se limitar a dizer que o crime de terrorismo é “inafiançável e insuscetível de graça ou anistia”, deixou para a legislação ordinária o trabalho de caracterizá-lo, com o estabelecimento de penas e agravantes. Para suprir essa lacuna da legislação, os autores do projeto tipificam o crime de terrorismo “como provocar ou infundir terror ou pânico generalizado” e observam que eventos internacionais de grande porte, a exemplo da Copa do Mundo, são suscetíveis de encorajar atos de terrorismo, “como o ocorrido nas Olimpíadas de 1972, na Alemanha, em que 11 atletas israelenses foram feitos reféns e depois mortos pelo grupo palestino Setembro Negro”.
Futebolistas intocáveis
Todo esse arrazoado seria digno de aplauso se o seu único objetivo não fosse justificar uma legislação casuísta e vergonhosa, que cobre a nação de opróbrio. O artigo 4º do projeto de lei define terrorismo como “provocar ou infundir terror ou pânico generalizado mediante ofensa à integridade física ou privação da liberdade de pessoa, por motivo ideológico, religioso, político ou de preconceito racial, étnico ou xenófobo”, prescrevendo para esse tipo de crime a seguinte pena: reclusão de 15 a 30 anos, se não houver morte, ou reclusão de 24 a 30 anos, no caso de morte.
Como se vê, uma pena muito mais dura do que a destinada ao homicídio qualificado, que varia de 12 a 30 anos de reclusão. Isso significa que, mesmo se o crime tipificado como terrorismo limitar-se a espalhar pânico, sem deixar mortos, seu autor pode sofrer uma punição mais grave do que a prescrita para quem pratica um homicídio qualificado, com requintes de crueldade.
Mas até aí seria possível relevar a desproporcionalidade. Ocorre que, no parágrafo 2º do seu artigo 4º, o projeto de lei prevê agravantes que aumentam de um terço as penas previstas, caso o crime de terrorismo seja praticado, com ou sem mortes, nos seguintes casos:
“I) contra integrante de delegação, árbitro, voluntário ou autoridade pública ou esportiva, nacional ou estrangeira;
II) com emprego de explosivo, fogo, arma química, biológica ou radioativa;
III) em estádio de futebol no dia da realização de partidas da Copa das Confederações 2013 e da Copa do Mundo de Futebol;
IV) em meio de transporte coletivo;
V) com a participação de três ou mais pessoas”. Mesmo se o ato terrorista for praticado contra coisa (sem ter como alvo pessoas e sem fazer nenhuma vítima), a pena de reclusão, que é de 8 a 20 anos, também comporta agravante, podendo ser aumentada de um terço, o que a torna quase tão dura quanto a pena para o homicídio qualificado.
Ou seja, os futebolistas formam uma casta superior e intocável. Se um terrorista entrar numa creche e explodir dezenas de crianças, a sua pena será muito mais leve do que se der um susto num cartola corrupto do futebol durante o período de realização da Copa do Mundo. Se um dirigente for vítima de cárcere privado por algumas horas, por exemplo, mesmo que continue vivo e incólume, a pena de seu sequestrador começará com 20 anos de reclusão (uma vez que será agravada de um terço), enquanto o verdadeiro terrorista que chacinar crianças poderá ser beneficiado com uma pena muito mais branda, que tem como patamar mínimo apenas 12 anos de reclusão. Como se pode constatar nos cinco incisos citados, só existem agravantes quando o crime de terrorismo relaciona-se com os jogos, ainda que indiretamente. É o caso do ato terrorista praticado em transporte coletivo, que só é motivo de agravante pelo fato de se relacionar com a Copa e não pelo seu grande potencial de vítimas.
Constituição revogada
O caráter arbitrário do projeto de lei se mostra ainda mais evidente quando se atenta para o seu artigo 3º, que diz: “Os crimes previstos neste capítulo são puníveis quando praticados no período que antecede ou durante a realização dos eventos de que trata esta lei”. Isso significa que o crime de terrorismo está sendo tipificado com todo esse rigor não para atender a um clamor da população brasileira, mas para agradar a Fifa. E ao fazê-lo, revoga-se automaticamente a Constituição, pois os brasileiros deixam de ser iguais perante a lei. As vítimas que estão dentro dos estádios onde serão realizados os jogos da Copa ou num raio de até cinco quilômetros em volta deles são mais preciosas perante a lei do que as demais. Da mesma forma, o criminoso que atenta contra elas é punido com mais rigor, ainda que seu crime não seja tão grave quanto outros praticados longe dos estádios.
Essa lei é casuísta e efêmera, mas seus efeitos são permanentes. A Copa passará, mas a punição para os criminosos especialmente criados por ela irá permanecer no tempo. Em tese, só em 2054 é que o sequestrador de um dirigente de futebol chegará ao limite máximo de sua pena por conta de um crime de sequestro — sem tortura nem morte — praticado em 2014. Por outro lado, um criminoso que tenha praticado um delito de mesma gravidade ou até mais grave, com tortura e morte, mas não relacionado à Copa do Mundo, já terá deixado a cadeia pelo menos dez anos antes, pois, mesmo no caso de explosão de crianças ou envenenamento de mananciais (para ficar em dois exemplos), não haverá o mesmo aumento de um terço da pena como a que ocorre no caso de se mexer no fio de cabelo de um jogador ou cartola durante os jogos da Copa.
Nunca antes na história deste País (como diria Lula em sua recorrente demagogia) houve um projeto de lei tão casuísta. E ele tende a ser aprovado como parte da Lei Geral da Copa, pois seus autores integram a base do governo Dilma, e um deles, o senador Marcelo Crivella, até se tornou ministro da Pesca.
Benesses para jogadores
Mas esses dois projetos não são a única aberração legislativa referente à Copa do Mundo que tramita no Congresso Nacional. Desde 2009, quando se confirmou a realização deste evento no Brasil, a classe política brasileira se coloca de joelhos perante a Fifa, repetindo, é certo, a conduta da metade masculina da população que tende a perder o senso diante de homens jogando bola.
Sempre que vejo políticos discutindo futebol no Parlamento com extrema seriedade, como se debatessem os mais profundos problemas sociais, eu me convenço que o mundo nunca evoluiu, de fato, e que os instintos básicos de homens e mulheres (forjados nas cavernas para quem acredita em evolução) continuam prevalecendo nos fóruns da modernidade, onde a ciência faz morada. Entre eles, a eterna dicotomia entre o macho dominante e a fêmea submissa.
Só isso explica a falta de sensatez com que os homens transformam seus vícios privados em políticas públicas, fazendo de uma mera diversão como o futebol uma verdadeira questão de Estado. Alguém já viu políticas mulheres discutindo na televisão ou nos parlamentos temas como telenovelas e maquiagens, a exemplo dos homens, que discutem durante horas, com uma seriedade irritante, sobre seus respectivos clubes de futebol?
Esse fanatismo dos homens brasileiros pelo futebol é responsável pelas aberrações morais presentes na Lei Geral da Copa e ajudam a explicar a endêmica corrupção brasileira, que nasce, essencialmente, da Lei de Gerson (“levar vantagem em tudo”) e do histórico desrespeito que o brasileiro, de um modo geral, devota à coisa pública. Um exemplo inequívoco desse desrespeito é a instituição de um prêmio de R$ 100 mil para cada um dos jogadores titulares e reservas que disputaram as Copas de 1958, 1962 e 1970 — previsto no artigo 37 do projeto da Lei Geral da Copa.
Num país em que falta UTI infantil, em que pacientes de câncer morrem nas calçadas e em que escasseiam até remédios básicos nos postos de saúde, o governo vai dar a cada um dos 58 jogadores ricos ou milionários das referidas Copas — entre eles o famígero Pelé — um prêmio de 160 salários mínimos, obviamente arrancados do bolso do trabalhador que é obrigado a alimentar sua família com míseros R$ 622, o salário mínimo atual. A medida — que vai custar R$ 5,8 milhões aos cofres públicos — não constava do projeto original do Executivo enviado à Câmara pela presidente Dilma Rousseff em 2011, mas já fora decidida pelo então presidente Lula e acabou sendo incorporada ao projeto pelo seu relator, o deputado Vicente Cândido (PT-SP).
Em 23 de setembro de 2009, numa reunião realizada na Casa Civil com a Associação dos Campeões Mundiais do Brasil, o governo resolveu, por decisão do próprio Lula, pagar aposentadoria e “indenizar” (reparem na impropriedade da palavra) os jogadores da seleção brasileira que foram campeões mundiais. A indenização (a ser paga inicialmente aos campeões de 1958) seria estendida para os campões de 1962, 1970 e até 1994 e 2002 — ou seja, os milionários garotos-propaganda das cervejarias, como Ronaldinho, seriam “indenizados” à custa do suor do contribuinte.
E os valores eram mais assombrosos do que os constantes no projeto de lei que tramita no Congresso Nacional. Cada atleta da Seleção teria direito a uma indenização de mil salários mínimos (R$ 465 mil na época ou R$ 622 mil hoje). Além disso, os jogadores que estivessem em dificuldade financeira iriam receber uma aposentadoria estipulada em dez salários mínimos (R$ 4.650 à época ou R$ 6.220 hoje). No projeto de lei que tramita no Congresso, a aposentadoria será paga como complemento, até garantir ao jogador o limite máximo de aposentadoria, que, hoje, de acordo com a Dataprev, é de R$ 3.916,20, corrigidos anualmente. Isso num país em que, segundo os especialistas, apenas 1% dos brasileiros consegue manter o mesmo padrão de vida após a aposentadoria.
Paternalismo de Estado
Uma reportagem do programa “Globo Esporte”, publicada no sítio da Rede Globo em 4 de abril último, tenta justificar essas benesses a partir do caso do jogador Moacir Claudino Pinto, 75 anos, campeão mundial de 58, que enfrenta problemas de saúde. Ele mora há quase 50 anos no Equador, com a família, e está com câncer na próstata. À reportagem o jogador declarou:
“Estou passando por um momento difícil, bem difícil, de saúde. Preciso fazer uma operação da próstata e não há dinheiro para operar, preciso com urgência de 6 mil a 8 mil dólares [cerca de R$ 11 mil a R$ 14,5 mil]. Vamos esperar a boa vontade de qualquer pessoa que me ajude. Espero que o governo brasileiro, que disse que ia firmar uma ajuda aos campeões de 58, 62 e 70, cumpra”.
Esse mesmo jogador, vestindo uma camisa do Flamengo, define seu clube como “coisa séria, só alegria, só satisfação”. E arremata: “Flamengo é Flamengo. Todos me perguntam qual é a equipe que mais gosto. É o Flamengo. Primeiro, Flamengo; segundo, Flamengo; terceiro, Flamengo. Flamengo é tudo”.
Ora, se o Flamengo é tudo para este antigo atleta, por que o clube — que arranca milhões de reais dos torcedores, extorque os cofres públicos e fatura gordas verbas publicitárias — não pode custear sua cirurgia? Por que o cidadão Edson Arantes do Nascimento não tira míseros R$ 15 mil de seu farto bolso e não faz essa caridade para seu colega de profissão?
Em 22 de outubro de 2010, por ocasião do aniversário de 70 anos de Pelé, a consultoria inglesa Brand Finance estimou que a marca do jogador vale R$ 500 milhões. Pelé, segundo o jornal italiano “Corriere dello Sport”, não cede sua imagem por menos de 1 milhão de euros (R$ 2,53 milhões) e chega a faturar, por ano, cerca de 18 milhões de dólares (R$ 34,68 milhões). Ele e os demais milionários do esporte podem perfeitamente constituir uma fundação privada para amparar os ex-colegas que porventura estejam em dificuldade — atitude muito comum na cultura norte-americana. Mas seria esperar demais de uma nação em que o próprio Estado vende o País para a Fifa e, em vez de receber, paga a conta — com o bolso do cidadão.
Publicado no jornal Opção.
José Maria e Silva é sociólogo e jornalista.
12 de maio de 2012
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