“Ouça um bom conselho/ Que eu lhe dou de graça/ Inútil dormir que a dor não
passa” – os versos da canção “Bom Conselho” bem poderiam ilustrar o momento de
insônia, desespero, agressividade e confusão a granel, detectados em diferentes
áreas e segmentos do País – políticos, governantes, jornalistas e empresários,
principalmente – nas preliminares e início dos trabalhos da CPMI do Cachoeira e
seus insondáveis desdobramentos. Pelo visto, tudo pode acontecer, inclusive
nada.
Nas linhas seguintes deste artigo, no entanto, os versos de Chico Buarque de Holanda auxiliam a disfarçar, com poesia, o assombro e a indignação do jornalista diante das confissões do ex-delegado do DOPS (polícia política da ditadura nos anos loucos no Brasil), Cláudio Guerra, no livro “Memórias de uma Guerra Suja”, de autoria dos jornalistas Marcelo Netto e Rogério Medeiros, lançado esta semana em São Paulo.
No livro (que ainda não li e até onde sei ainda não chegou nas livrarias de Salvador), o ex-delegado capixaba, aos 71 anos, confessa ter participado da morte de, ao menos, 12 guerrilheiros e incinerado os corpos de outros 10 desaparecidos políticos na ditadura militar.
Isso li em reportagens publicadas no jornal Folha de S. Paulo (vide anexo), que tem mostrado interesse jornalístico e aberto ao assunto o espaço que ele merece. Os demais veículos, incluindo os blogs e portais eletrônicos, somente aos poucos e com algum atraso vão despertando para a gravidade e o interesse do tema.
No seu relato, o ex-agente, que promete depor, também, na Comissão da Verdade, afirma que os 10 corpos foram queimados no forno de uma usina de açúcar de propriedade de um ex-governador do Rio de Janeiro. “Fui responsável por levar dez corpos de presos políticos para lá, todos mortos pela tortura”.
Guerra enumera entre essas vítimas David Capistrano, João Batista Rita, Joaquim Pires Cerveira, João Massena Mello, José Roman e Luiz Ignácio Maranhão Filho, do PCB (Partido Comunista Brasileiro).
A lista macabra do ex-agente do DOPS, convertido a um culto evangélico (este seria o motivo alegado para o arrependimento e a confissão) tem outros nomes: Ana Rosa Kucinski e Wilson Silva, da ALN (Ação Libertadora Nacional); Joaquim Pires Cerveira, da FLN (Frente de Libertação Nacional); Eduardo Collier Filho e Fernando Augusto Santa Cruz Oliveira, da APML (Ação Popular Marxista-Leninista).
O paradeiro desses desaparecidos políticos nunca foi informado às famílias, diz a Folha na primeira reportagem sobre o livro.
Tem mais em outras reportagens e muito mais ainda no próprio livro, a deduzir pelas polêmicas que começam a pipocar de São Paulo ao Espírito Santo, do Rio de Janeiro à Bahia, de Pernambuco à Minas Gerais, acompanhadas de desmentidos de alguns acusados que andam por aí.
Agora, um registro de indignação e o testemunho pessoal e profissional sobre um dos nomes da lista de “presos políticos incinerados”: Eduardo Collier Filho, o querido colega pernambucano, na Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, que ambos frequentávamos nos resistentes e tumultuados anos 60.
Duda Collier, como era chamado pela maioria dos colegas, “o cara” de quase dois metros de altura, pinta perfeita de ator de filme político europeu. “Um pão de Recife que desceu em Salvador”, como sintetizavam, entre olhares e suspiros, muitas estudantes na Faculdade, no Restaurante Universitário da UFBA, no corredor da Vitória, nas assembléias da Reitoria e nas passeatas do centro da capital baiana.
Nas reuniões de militantes, Duda era conhecido como “O Cristão”, devido a sua filiação à Ação Popular (AP), organização de esquerda de origem católica. Ficamos amigos logo que ele desembarcou na Bahia.
Nascido no seio de uma das mais ricas e tradicionais famílias pernambucanas, vestido em folgadas calças e camisões de linho puro, Duda (o moço grandalhão de fina estampa) era para mim uma simpática contradição ambulante.
Buscava uma vaga para morar na RU-2 (Residência Universitária), colada à Igreja da Vitória (onde ele podia freqüentar suas missas dominicais). Considerado “um burguês” por alguns universitários, negava-se uma vaga para ele. Foi preciso abrir uma peleja interna para conseguir um lugar no sótão da RU-2, onde Duda Collier se abrigaria.
Graças, principalmente, a entrada na briga do grande amigo comum (depois meu saudoso compadre) Pedro Milton de Brito, um dos alunos mais brilhantes e respeitados da Faculdade de Direito e da UBFA (ex-presidente da OAB-BA, conselheiro federal da Ordem e referência baiana nas lutas de defesa dos direitos humanos), que também simpatizara, de cara, com aquele inquieto jovem e desengonçado pernambucano.
Um dia, em 1968, depois do AI-5, Duda Collier sumiu de repente, antes da Polícia Federal invadir a Faculdade de Direito, prender e algemar vários estudantes, levados depois para o Quartel do 19º BC. Entre eles, o autor destas linhas.
Ao sair, nunca mais encontrei Duda Collier pessoalmente. Sobre ele (e outros amigos desaparecidos na mesma época) tenho lido e sabido apenas de relatos chocantes e dolorosos, como os do ex-policial do DOPS no livro lançado na capital paulista.
Sigo, como tantos no País, aguardando a verdade.
07 de maio de 2012
Vitor Hugo Soares
Nas linhas seguintes deste artigo, no entanto, os versos de Chico Buarque de Holanda auxiliam a disfarçar, com poesia, o assombro e a indignação do jornalista diante das confissões do ex-delegado do DOPS (polícia política da ditadura nos anos loucos no Brasil), Cláudio Guerra, no livro “Memórias de uma Guerra Suja”, de autoria dos jornalistas Marcelo Netto e Rogério Medeiros, lançado esta semana em São Paulo.
No livro (que ainda não li e até onde sei ainda não chegou nas livrarias de Salvador), o ex-delegado capixaba, aos 71 anos, confessa ter participado da morte de, ao menos, 12 guerrilheiros e incinerado os corpos de outros 10 desaparecidos políticos na ditadura militar.
Isso li em reportagens publicadas no jornal Folha de S. Paulo (vide anexo), que tem mostrado interesse jornalístico e aberto ao assunto o espaço que ele merece. Os demais veículos, incluindo os blogs e portais eletrônicos, somente aos poucos e com algum atraso vão despertando para a gravidade e o interesse do tema.
No seu relato, o ex-agente, que promete depor, também, na Comissão da Verdade, afirma que os 10 corpos foram queimados no forno de uma usina de açúcar de propriedade de um ex-governador do Rio de Janeiro. “Fui responsável por levar dez corpos de presos políticos para lá, todos mortos pela tortura”.
Guerra enumera entre essas vítimas David Capistrano, João Batista Rita, Joaquim Pires Cerveira, João Massena Mello, José Roman e Luiz Ignácio Maranhão Filho, do PCB (Partido Comunista Brasileiro).
A lista macabra do ex-agente do DOPS, convertido a um culto evangélico (este seria o motivo alegado para o arrependimento e a confissão) tem outros nomes: Ana Rosa Kucinski e Wilson Silva, da ALN (Ação Libertadora Nacional); Joaquim Pires Cerveira, da FLN (Frente de Libertação Nacional); Eduardo Collier Filho e Fernando Augusto Santa Cruz Oliveira, da APML (Ação Popular Marxista-Leninista).
O paradeiro desses desaparecidos políticos nunca foi informado às famílias, diz a Folha na primeira reportagem sobre o livro.
Tem mais em outras reportagens e muito mais ainda no próprio livro, a deduzir pelas polêmicas que começam a pipocar de São Paulo ao Espírito Santo, do Rio de Janeiro à Bahia, de Pernambuco à Minas Gerais, acompanhadas de desmentidos de alguns acusados que andam por aí.
Agora, um registro de indignação e o testemunho pessoal e profissional sobre um dos nomes da lista de “presos políticos incinerados”: Eduardo Collier Filho, o querido colega pernambucano, na Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, que ambos frequentávamos nos resistentes e tumultuados anos 60.
Duda Collier, como era chamado pela maioria dos colegas, “o cara” de quase dois metros de altura, pinta perfeita de ator de filme político europeu. “Um pão de Recife que desceu em Salvador”, como sintetizavam, entre olhares e suspiros, muitas estudantes na Faculdade, no Restaurante Universitário da UFBA, no corredor da Vitória, nas assembléias da Reitoria e nas passeatas do centro da capital baiana.
Nas reuniões de militantes, Duda era conhecido como “O Cristão”, devido a sua filiação à Ação Popular (AP), organização de esquerda de origem católica. Ficamos amigos logo que ele desembarcou na Bahia.
Nascido no seio de uma das mais ricas e tradicionais famílias pernambucanas, vestido em folgadas calças e camisões de linho puro, Duda (o moço grandalhão de fina estampa) era para mim uma simpática contradição ambulante.
Buscava uma vaga para morar na RU-2 (Residência Universitária), colada à Igreja da Vitória (onde ele podia freqüentar suas missas dominicais). Considerado “um burguês” por alguns universitários, negava-se uma vaga para ele. Foi preciso abrir uma peleja interna para conseguir um lugar no sótão da RU-2, onde Duda Collier se abrigaria.
Graças, principalmente, a entrada na briga do grande amigo comum (depois meu saudoso compadre) Pedro Milton de Brito, um dos alunos mais brilhantes e respeitados da Faculdade de Direito e da UBFA (ex-presidente da OAB-BA, conselheiro federal da Ordem e referência baiana nas lutas de defesa dos direitos humanos), que também simpatizara, de cara, com aquele inquieto jovem e desengonçado pernambucano.
Um dia, em 1968, depois do AI-5, Duda Collier sumiu de repente, antes da Polícia Federal invadir a Faculdade de Direito, prender e algemar vários estudantes, levados depois para o Quartel do 19º BC. Entre eles, o autor destas linhas.
Ao sair, nunca mais encontrei Duda Collier pessoalmente. Sobre ele (e outros amigos desaparecidos na mesma época) tenho lido e sabido apenas de relatos chocantes e dolorosos, como os do ex-policial do DOPS no livro lançado na capital paulista.
Sigo, como tantos no País, aguardando a verdade.
07 de maio de 2012
Vitor Hugo Soares
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