Um dos botecos que freqüento em
fim de tarde, acho que já contei, está cercado de forças místicas. De um lado,
um oratório da TFP, aquele mesmo que nos idos de 1969 recebeu uma bomba. Obra de
comunistas, segundo os devotos filhos de Maria. Do outro lado, fenômeno recente,
um templo evangélico, mais um desses que brotam como cogumelos após a chuva,
nestes dias em que tanta gente busca muletas espirituais.
Nem um nem outro jamais me incomodaram. Enquanto peco no boteco, os marianos rezam ajoelhados ao lado de minha mesa, rezam talvez pela redenção deste pecador. Não são proselitistas. Fazem suas orações em voz baixa, recitam seus salve-rainhas, ave-marias e pai-nossos discretamente, muita vezes sob a chuva e em meio a madrugadas mais ou menos gélidas. Já os evangélicos, estes são mais barulhentos. Muito som, muita fúria e muito fanatismo. Como ficam a uma distância suportável do bar, não chegam a atrapalhar minhas horas de recolhimento.
Num destes dias, em que o famigerado espírito natalino paira sobre a cidade, mal acabo de pecar e estou voltando para casa, fui abordado por quatro ou cinco pivetinhas, na faixa dos dez anos, de bíblias em punho. Eivadas da palavra divina, estavam sedentas para trazer ovelhas ao rebanho.
— O senhor é católico? — perguntou-me a menor delas, pelo jeito a mais audaz.
— Não.
— É evangélico?
— Também não.
Com um ar incrédulo, de quem não queria acreditar no que iria ouvir, insistiu:
— O senhor é ateu?
— Sou.
Foi a vez de intervir uma mulatinha dentuça, que me exibiu suas canjicas e todo seu espanto, como se tivesse encontrado um dinossauro:
— Ateeeeuu? Mas Deus existe, moço. Falo com ele todos os dias.
A discussão é muito antiga e longe de mim pretender debater tema tão batido com uma criança. Ainda mais nesta época em que qualquer vedetinha da televisão fala com Deus a qualquer hora, sem sequer pedir audiência ao Supremo. Aceitei os alegados da mulatinha dentuça. Existe e matou um monte de gente, não é verdade? Em Sodoma, sabia?
Ela pensou um pouco:
— É! Mas eles estavam pecando. Deus avisou antes para pararem de pecar.
— Tudo bem, minha filha. Mas teu pai não peca de vez em quando? Os homens não pecam todos os dias? Isso é motivo para matá-los?
Ela ficou matutando.
— Vou perguntar para o pastor.
Sugeri que perguntasse também quem era o único homem justo de Sodoma.
— Isso eu sei. Era o Ló.
Muito bem. Ela conhecia bem o roteiro. E com quem dormiu Ló depois que fugiu de Sodoma?
Ela não sabia. Com as duas filhas, expliquei. Isso é exemplo?
— Vou perguntar ao pastor — defendeu-se a menina.
O pastor teria trabalho naquela noite.
A mais novinha me atacou com o Velho Testamento:
— O senhor conhece este livro?
— Claro que conheço, moça. Era aquele que falava de Adão e Eva, não era? Os dois viviam sós no paraíso, tiveram dois filhos...
— Caim e Abel — atalhou a apostolazinha.
— Exato. Depois o que aconteceu?
— Caim matou Abel.
— Isso mesmo. Depois Caim procriou, teve filhos, não é isso?
— É — disse a pivetinha.
— Muito bem. Com quem Caim teve filhos?
A menininha pensou um pouco, botou um dedo na boca, e teve de admitir:
— Com Eva, ué!
— E quem era Eva?
Ela puxou mais um pouco pela memória e respondeu, já um pouco assustada:
— Era a mãe dele, não é?
Era, e aí começa o problema. O mito bíblico explica o mundo a partir de um incesto. Não quis explicar à menina que nada tenho contra incesto, aliás tampouco nossa legislação, quem quiser levar a mãe para a cama que tenha bom proveito. Mas nesse momento já havia chegado reforço. Mais três ou quatro meninos, mais crescidos, nos cercavam e seguiam com interesse a discussão. Um deles, o mais taludo, aventou:
— Ah! Mas o Caim foi procurar mulher em Ur.
Tão pequeno e já falacioso. Ali estava uma vocação irreversível para o jornalismo mentiroso. Ur dos Caldeus, expliquei ao futuro safado, é uma cidade no sul da Babilônia, de onde teria vindo Abraão. Não existia nos tempos de Adão. Aliás, nem é preciso conhecer a bíblia para saber disto. Basta fazer palavras cruzadas.
Um outro, gorduchinho mas já sofismador, tentou salvar a turma:
— É, mas tem primo casando com prima.
— Sei disso. Nada melhor que namoro de prima em cozinha, diziam os antigos. Mas pai com filhas — e com as duas — me parece um pouco pesado.
— Vamos perguntar ao pastor — responderam num coral improvisado.
O pastor, já inquieto, estava chegando e recolheu a meninada, que atacava este pobre incréu como uma matilha de cães ensandecidos. Orre, bem feito! Quem manda os pais soltarem criancinhas imaturas na fé nas ruas desta São Paulo, infestada de ateus empedernidos? Liberto do cerco, continuei meu caminho, um vago sorriso me perpassando a alma. Havia confundido meia dúzia de crianças e dado trabalho ao pastor. Antes tarde do que nunca. Estava feita minha boa ação do ano.
* 29/12/2000
21 de maio de 2012
janer cristaldo
Nem um nem outro jamais me incomodaram. Enquanto peco no boteco, os marianos rezam ajoelhados ao lado de minha mesa, rezam talvez pela redenção deste pecador. Não são proselitistas. Fazem suas orações em voz baixa, recitam seus salve-rainhas, ave-marias e pai-nossos discretamente, muita vezes sob a chuva e em meio a madrugadas mais ou menos gélidas. Já os evangélicos, estes são mais barulhentos. Muito som, muita fúria e muito fanatismo. Como ficam a uma distância suportável do bar, não chegam a atrapalhar minhas horas de recolhimento.
Num destes dias, em que o famigerado espírito natalino paira sobre a cidade, mal acabo de pecar e estou voltando para casa, fui abordado por quatro ou cinco pivetinhas, na faixa dos dez anos, de bíblias em punho. Eivadas da palavra divina, estavam sedentas para trazer ovelhas ao rebanho.
— O senhor é católico? — perguntou-me a menor delas, pelo jeito a mais audaz.
— Não.
— É evangélico?
— Também não.
Com um ar incrédulo, de quem não queria acreditar no que iria ouvir, insistiu:
— O senhor é ateu?
— Sou.
Foi a vez de intervir uma mulatinha dentuça, que me exibiu suas canjicas e todo seu espanto, como se tivesse encontrado um dinossauro:
— Ateeeeuu? Mas Deus existe, moço. Falo com ele todos os dias.
A discussão é muito antiga e longe de mim pretender debater tema tão batido com uma criança. Ainda mais nesta época em que qualquer vedetinha da televisão fala com Deus a qualquer hora, sem sequer pedir audiência ao Supremo. Aceitei os alegados da mulatinha dentuça. Existe e matou um monte de gente, não é verdade? Em Sodoma, sabia?
Ela pensou um pouco:
— É! Mas eles estavam pecando. Deus avisou antes para pararem de pecar.
— Tudo bem, minha filha. Mas teu pai não peca de vez em quando? Os homens não pecam todos os dias? Isso é motivo para matá-los?
Ela ficou matutando.
— Vou perguntar para o pastor.
Sugeri que perguntasse também quem era o único homem justo de Sodoma.
— Isso eu sei. Era o Ló.
Muito bem. Ela conhecia bem o roteiro. E com quem dormiu Ló depois que fugiu de Sodoma?
Ela não sabia. Com as duas filhas, expliquei. Isso é exemplo?
— Vou perguntar ao pastor — defendeu-se a menina.
O pastor teria trabalho naquela noite.
A mais novinha me atacou com o Velho Testamento:
— O senhor conhece este livro?
— Claro que conheço, moça. Era aquele que falava de Adão e Eva, não era? Os dois viviam sós no paraíso, tiveram dois filhos...
— Caim e Abel — atalhou a apostolazinha.
— Exato. Depois o que aconteceu?
— Caim matou Abel.
— Isso mesmo. Depois Caim procriou, teve filhos, não é isso?
— É — disse a pivetinha.
— Muito bem. Com quem Caim teve filhos?
A menininha pensou um pouco, botou um dedo na boca, e teve de admitir:
— Com Eva, ué!
— E quem era Eva?
Ela puxou mais um pouco pela memória e respondeu, já um pouco assustada:
— Era a mãe dele, não é?
Era, e aí começa o problema. O mito bíblico explica o mundo a partir de um incesto. Não quis explicar à menina que nada tenho contra incesto, aliás tampouco nossa legislação, quem quiser levar a mãe para a cama que tenha bom proveito. Mas nesse momento já havia chegado reforço. Mais três ou quatro meninos, mais crescidos, nos cercavam e seguiam com interesse a discussão. Um deles, o mais taludo, aventou:
— Ah! Mas o Caim foi procurar mulher em Ur.
Tão pequeno e já falacioso. Ali estava uma vocação irreversível para o jornalismo mentiroso. Ur dos Caldeus, expliquei ao futuro safado, é uma cidade no sul da Babilônia, de onde teria vindo Abraão. Não existia nos tempos de Adão. Aliás, nem é preciso conhecer a bíblia para saber disto. Basta fazer palavras cruzadas.
Um outro, gorduchinho mas já sofismador, tentou salvar a turma:
— É, mas tem primo casando com prima.
— Sei disso. Nada melhor que namoro de prima em cozinha, diziam os antigos. Mas pai com filhas — e com as duas — me parece um pouco pesado.
— Vamos perguntar ao pastor — responderam num coral improvisado.
O pastor, já inquieto, estava chegando e recolheu a meninada, que atacava este pobre incréu como uma matilha de cães ensandecidos. Orre, bem feito! Quem manda os pais soltarem criancinhas imaturas na fé nas ruas desta São Paulo, infestada de ateus empedernidos? Liberto do cerco, continuei meu caminho, um vago sorriso me perpassando a alma. Havia confundido meia dúzia de crianças e dado trabalho ao pastor. Antes tarde do que nunca. Estava feita minha boa ação do ano.
* 29/12/2000
21 de maio de 2012
janer cristaldo
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