PARTE 2
Os dois mudaram-se depois para o bairro de
Linksfield, onde Kallenbach estava construindo uma casa maior, chamada Mountain
View, sobre a qual Gandhi nutria previsíveis pressentimentos. Uma de suas
missões nesse período consistia em treinar o companheiro na disciplina da
abnegação. Instava-o a desfazer-se de um carro novo e a cumprir o voto de
pobreza que ambos tinham feito, reduzindo seus gastos pessoais. “Espero que
dessa vez não tenhamos simplicidade aristocrática, mas simplicidade simples”,
ele escreveu antes que a obra da casa nova começasse. Durante algum tempo, em
1910, eles moraram numa barraca, no canteiro de obras. O que ele realmente
desejava, percebe-se, é que Kallenbach fechasse seu estúdio de arquitetura, da
mesma forma como ele estava se preparando para abandonar a advocacia, e
voltasse com ele para uma vida de trabalho comunal em Phoenix. “Ao que tudo
indica”, escreveu Gandhi, esperançoso, num perfil laudatório de seu companheiro
no Indian Opinion, “o senhor Kallenbach aos poucos deixará seu trabalho
como arquiteto para viver em pobreza completa.”
Kallenbach diz-se tentado, mas ainda não compra de
todo a ideia. O escritório continua aberto e ativo. Em certo momento, ele
concorre a licitações simultâneas de projetos de uma nova sinagoga, de um
templo da Ciência Cristã e de outro da Igreja Ortodoxa grega. O terreno da
fazenda Tolstói, com seus 445 hectares, que Kallenbach comprou, foi a maneira
de um grande gastador provar que falava sério a respeito de pobreza voluntária.
Ele e Gandhi escrevem a Tolstói, na época moribundo, para lhe falar de seus planos.
A fazenda resolve uma necessidade imediata de Gandhi. Ele agora tem um lugar
onde alojar as famílias de resistentes passivos que foram presos por participar
da enfraquecida campanha de satyagraha, e também treinar novos
resistentes. Além disso, era um lugar onde ele podia testar os preceitos
pedagógicos e microeconômicos que havia acabado de expor no mais importante
trabalho de argumentação que escreveria, o panfleto Hind Swaraj. O
título significa “Autogoverno indiano” ou, mais livremente, “A liberdade da
Índia”. Gandhi escreveu-o rapidamente, em dez dias, ao retornar à África do Sul
em 1909 no navio Kildonan Castle, depois de mais uma tentativa inútil de
pressionar o governo britânico.
“A vida é muito curta; um homem tem de viver de
alguma forma e morrer em algum lugar”, declara o indiano, autêntico ao escritor
britânico em resposta a essa pergunta retórica. “O nível de conforto físico que
um camponês obtém em vossa melhor República não é muito maior do que o meu. Se
não gostais de nosso tipo de conforto espiritual, nunca pedimos que gostásseis.
Ide, e deixai-nos com ele.” Em Hind Swaraj, o personagem habitado por
Gandhi, chamado “o Editor”, se apresenta como esse indiano autêntico.
Chesterton não deu ideias novas a Gandhi, mas lhe mostrou de que forma as
ideias que ele próprio vinha reunindo podiam definir uma persona. O que ele faz
nessas páginas, em breve fará na vida; o Editor se tornará o Mahatma, que doze
anos depois, em sua primeira campanha de não cooperação na Índia, traduzirá em
ação um dos temas do panfleto. “Os ingleses não conquistaram a Índia”, diz o
Editor. “Nós a demos a eles.” Sua resposta é “deixar de desempenhar o papel de
subjugados”. Isso é mais do que um prenúncio das posteriores campanhas de
Gandhi. É uma declaração do tema básico delas.
Ainda que Hind Swaraj tenha sido escrito
enquanto ele viajava para a Cidade do Cabo, depois de uma missão malograda em
Londres em defesa dos direitos indianos no Transvaal, as palavras “África do
Sul” em nenhum momento aparecem no panfleto. Em espírito, ele já começara a se
repatriar para a Índia, onde a obra foi de imediato declarada subversiva e
proibida. Na verdade, ela era mais subversiva em relação ao movimento
independentista indiano anterior a Gandhi, com sua liderança anglicizada e seus
valores importados, do que em relação ao regime colonial britânico. “Não
conhecemos aqueles em nome de quem falamos, nem eles nos conhecem”, afirmava
com ousadia seu autor, que passara na Índia menos de cinco dos últimos vinte
anos, criando implicitamente um desafio para si mesmo. Contudo, sua crítica
pode ser também aplicada, de modo geral, ao movimento que ele liderou na África
do Sul, sobretudo em Natal. Uma parte clara do intuito da fazenda Tolstói era
permitir a Gandhi e a Kallenbach – a primeira pessoa a ver o manuscrito de Hind
Swaraj – fecharem o abismo social entre os indianos que Gandhi enfim havia
reconhecido. Seis meses após sua volta de Londres, Gandhi redige o primeiro de
seus contratos informais com Kallenbach, definindo o que equivale a uma lei
básica para a nova comunidade. “O objetivo primordial da ida para a fazenda no
que se refere a K. e G.”, decreta esse documento, “é se transformarem em
camponeses industriosos.” Quase um ano depois, em maio de 1911, quando a fazenda
estava em pleno funcionamento, Gandhi diz a Polak: “Eu gostaria de escapar ao
olhar público [...] enterrar-me na fazenda e dedicar minha atenção à lavoura e
ao magistério.”A lavoura o leva a reconhecer as aptidões dos africanos e
indianos, como as dos trabalhadores sob contrato, que cultivam a terra. “Eles
são mais úteis do que qualquer um de nós”, ele escreve no Indian Opinion,
comparando de forma explícita os trabalhadores do campo e uma segunda geração
de trabalhadores administrativos indianos que começava a criticar sua
liderança. “Se as notáveis raças nativas parassem de trabalhar por uma semana,
é provável que passássemos fome.”
A fazenda Tolstói, na qual Gandhi atuava como
mestre-escola e diretor médico, tornou-se por algum tempo a razão de sua vida;
a campanha de satyagraha contra as leis racistas no Transvaal, cada vez
mais fraca, foi relegada a um segundo plano. Gandhi levou avante uma
desordenada negociação com Smuts, que agora acumulava os ministérios da Defesa
e das Minas no novo governo da União, mas sua atenção maior se concentrava na
elaboração de um currículo que utilizasse línguas e textos indianos, bem como
dietas e terapias naturais, as alternativas saudáveis à agressiva medicina
ocidental. Kallenbach se envolvia mais nessas “experiências” do que soldados
políticos como Thambi Naidoo e Polak, que viviam casamentos convencionais. Sua
dedicação aos valores de Gandhi, à medida que se desenvolviam, parecia
irrestrita, e não seletiva. Era mais que um acólito, menos que um igual. Nunca,
ao que saibamos, ele representou um desafio intelectual ao explorador
espiritual que se tornou seu companheiro.
O que é fácil passar despercebido, nos relatos da
vida de Gandhi na fazenda Tolstói, é o quanto seus sentimentos em relação a
Kallenbach se tornaram um fator importante na mudança interior pela qual ele
estava passando. Ele não só se empenha em reformar o companheiro, como se
esforça por tornar permanente a ligação entre eles. O arquiteto hesita. Durante
sua estada na fazenda, com Gandhi, também se tornou sionista e um judeu mais
praticante; leva Gandhi à sinagoga na Páscoa e o apresenta ao matzá, ou pão
ázimo. Durante algumas semanas estuda o híndi, como preparativo de uma mudança
para a Índia; em outras, quando reflete sobre o tempo que Gandhi poderá lhe
dedicar num futuro ainda inimaginável na Índia, estuda hebraico, preparando-se
para uma nova vida na Palestina. No dia a dia, o melhor indicador do
inconstante estado de espírito do arquiteto é a língua que estuda, híndi ou
hebraico. Mostra desconsolo, se não ciúme, se Gandhi dispensa admiração e tempo
a outra pessoa. Persistente, Gandhi aceita tudo isso durante mais de dois anos,
buscando sempre preservar a ligação.
Os altos e baixos de Kallenbach podem ser
acompanhados num livro de registros contábeis e anotações que ele manteve em
1912 e 1913 e que pode ser consultado no arquivo do ashram Sabarmati, de
Gandhi, em Ahmedabad. Tanto por economia quanto para manter a forma física,
Kallenbach e Gandhi faziam sempre a pé os 34 quilômetros que levavam da
fazenda, perto de uma parada de trem chamada Lawley, ao Centro de Joanesburgo,
atravessando uma grande área de veldt, ou savana africana, que bem
depois, na era do apartheid, transformou-se no enorme aglomerado de bairros
negros chamado Soweto. Kallenbach sempre anotava o tempo do percurso. Se ele e
Gandhi caminhavam juntos, muitas vezes saindo às quatro da manhã, levavam pouco
mais de cinco horas e meia para chegar a seus respectivos escritórios no Centro
de Joanesburgo; quando sozinho, normalmente Kallenbach reduzia esse tempo em
uma hora. Em todas as menções nessas páginas, Gandhi não é Câmara Alta, e sim
“senhor Gandhi”. A formalidade parece admitir que o relacionamento entre ambos,
como quer que seja entendido, não era de iguais.
Hoje em dia, Lawley ainda é uma parada de trem.
Junto dela estende-se uma favela de chapas corrugadas e casebres de barro que
se comprimem em praticamente todos os cantos de uma antiga fazenda de brancos.
Quando se tentou restaurar a fazenda Tolstói e levantar ali um monumento, os
moradores da favela sem demora deixaram o lugar absolutamente nu. Estive ali em
2008 e não havia mais nem mesmo um letreiro. Tudo o que restava eram uns bancos
tortos de tijolos, os alicerces de uma casa velha, as moradias bem cercadas de
alguns brancos que trabalham numa olaria próxima, eucaliptos queimados e umas
poucas árvores frutíferas, talvez progênie das vintenas delas que Kallenbach
plantou há um século, e, por fim, uma vista de uma Joanesburgo que Gandhi
dificilmente reconheceria, depois dos bairros negros e das barragens de lodo
resultantes da mineração.
Se esse texto fosse uma antiga inscrição
cuneiforme, com certeza não seria mais difícil de decifrar. Estará ele aludindo
ao voto de brahmacharya de Gandhi ou ao voto recente que provocara um
jejum no mês anterior por causa de certos atos carnais que tinham vindo à tona
em Phoenix? (No entender de Gandhi, não existiam brincadeiras sexuais
inocentes. Antes ele se queixara de um caso de “coqueteria excessiva” em
Phoenix.) Nenhum desses dois votos parece ser o que Kallenbach tinha em mente.
É provável que estivesse se referindo a um voto de que só ele e G. tinham
conhecimento. O contexto é obscuro, mas os sentimentos de Kallenbach, uma vez
na vida, saltam da página. Rivalidades e ciúmes desse tipo se tornariam
corriqueiros mais tarde no círculo de Gandhi. Mas Kallenbach é especial. Ao se
mudar de Joburg, Gandhi parece tê-lo deixado para trás, ter-se livrado dele. Na
verdade, tomou essa atitude no começo de 1913, presumindo que o amigo dileto o
seguiria em breve. Notando que Kallenbach estava “em cima do muro”, ele lhe
pede, num tom ao mesmo tempo lisonjeiro e passivo-agressivo, que “pense na vida
em comum que temos vivido”. Mas a indicação mais clara de seus sentimentos é a
seguinte: ao arrumar suas próprias coisas que deveriam ser enviadas a Phoenix,
ele também arrumou e despachou os livros e instrumentos de Kallenbach. Câmara Alta
fica magoado quando Câmara Baixa pede que eles lhe sejam devolvidos. Mesmo
assim, não desiste.
Como veremos, isso não é o fim. Kallenbach mergulha
na última e maior campanha de satyagraha de Gandhi na África do Sul, e
depois dá mostras de recuar de novo, incomodado com o apego de Gandhi a um
clérigo britânico, Charles F. Andrews. “Embora eu ame e tenha quase adoração
por Andrews”, Gandhi escreve, “eu não trocaria você por ele. Você continua a
ser o mais querido e mais próximo a mim. [...] Eu sei que em minha viagem
solitária pelo mundo você será o último a me dizer adeus (ou não dirá isso
nunca). Que direito eu tinha de esperar tanto de você?”
Tanto o quê, é o que tentamos descobrir. A resposta
só pode ser amor, devoção, apoio incondicional. Nas palavras de Gandhi,
Kallenbach era “homem de sentimentos fortes, amplas afinidades e uma
simplicidade infantil”. Em outra ocasião, queixou-se da “sensibilidade mórbida”
do amigo, referindo-se, ao que parece, a seus ciúmes e também a sua
suscetibilidade a outras influências. Três meses antes de deixar a África do
Sul, Gandhi mais uma vez garante a sua alma gêmea: “Você será sempre você e só
você para mim. Eu lhe disse que você terá de me abandonar, e não eu a você.”
Enfim, Kallenbach sucumbe. Viaja com Gandhi quando este deixa o país, com a
intenção, logo frustrada, de acompanhá-lo até a Índia.
21 de maio de 2012
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